13.1.25

“A LUZ DA CAL”


Por A. M. Galopim de Carvalho

“A Luz da Cal” é o título de um belo livro com texto de Urbano Tavares Rodrigues, e fotografia de António Homem Cardoso: Evoca as casas caiadas de branco dos campos do Alentejo. 

Para haver cal é preciso haver caleiros e nós conhecíamos um que, não só a fabricava como a vendia de porta em porta. Todos os anos, umas semanas antes da Páscoa, percorria as ruas da cidade numa carrocita puxada por uma mula e coberta por um toldo, servindo uma clientela sempre certa.

Fazer caianças em casa nos primeiros dias de sol, findo o Inverno, era uma tradição do Alentejo rural que muitas famílias da cidade continuavam a respeitar. Nos montes, as paredes exteriores e interiores das casas, quase todas térreas, eram caiadas de pincel na mão até à altura do estender do braço e com o dito na ponta de uma cana, daí para cima. 

Na cidade, com prédios de dois e mais andares, a caiança dos exteriores era entregue aos cuidados de caiadores, acrobaticamente empoleirados em grandes escadas de encostar à parede, e com os pincéis sabiamente amarrados na extremidade de compridas canas, estes profissionais de trabalho incerto e arriscado, não dispunham de qualquer protecção. Trabalhavam por conta própria e, em caso de acidente, não havia seguro que lhes valesse. 

Nas residências das famílias mais desafogadas, havia pinturas dos interiores e esse trabalho era entregue a profissionais, considerados artistas e habitualmente designados por pintores. Nestas pinturas a base da tinta era sempre a cal, sendo que as cores pretendidas se obtinham misturando-lhes com mestria certas anilinas à venda nas drogarias. Nas da generalidade da população não havia pinturas, havia simplesmente caianças e essa tarefa, quase um ritual, era feita pelas mulheres da casa, com a cal que compravam ao caleiro.

Sentado no varal da carrocita, o Júlio caleiro, de há muito conhecido da minha mãe, parava sempre à nossa porta pois sabia ter ali freguesa certa. À semelhança do que era regra nos montes, muitas famílias da cidade faziam as suas caianças uns dias antes da Páscoa. Mandava o brio das alentejanas que, entre os Ramos e o Domingo de Festa, tudo reluzisse de brancura.

Na caleira que herdara do pai, o Júlio arrancava a pedra a tiros de dinamite e partia-a a guilho e a golpes de marreta, até terem o tamanho adequado a encher o velho forno. Empilhada a preceito, esta montanha de calcário transformava-se em cal-viva, branca de neve, pela acção do fogo intenso de feixes de lenha, sabiamente metidos na base. Esta cal, bem seca era guardada num barraco, protegendo-a de eventuais chuvas e depois era só encher a carroça, tantas vezes quantas as necessárias para servir a numerosa freguesia.

- Cal branca! – Ia apregoando. – Arre mula! Anda Violeta!

Não raras vezes, começando manhãzinha cedo, carregado à medida da força do animal, chegava ao meio-dia com o carro vazio.

O tempo chuvoso era mau para o negócio, A humidade estragava-lhe a cal, mesmo a que estivesse ao abrigo da chuva.

A minha mãe comprava-lhe sempre umas pedras de cal que metia num pote de barro próprio para esse fim, a que depois juntava a quantidade de água necessária. .Esta operação que despertava grande curiosidade, emitia um som de água a ferver e libertava calor, um processo químico que, só mais tarde, compreendi, quando me foi explicado numa aula do liceu o que era uma reacção química exotérmica. No outro dia a cal de caiar estava pronta a ser usada.

- É boa a sua cal, este ano, senhor Júlio? – Perguntava a minha mãe. – Olhe que a do ano passado já não tinha força. Estava meio-morta.

- Foi do tempo, Dona Adília. Toda a gente se tem queixado. Choveu a maior parte do ano. Quase não tivemos Verão e não ganhei para o trabalho que tive. Mas esta, este ano, é da melhor que já fiz. Está bem viva. Vai ver quando a derregar.

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5.1.25

20º ANIVERSÁRIO do SORUMBÁTICO

 

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4.1.25

Grande Angular - Ao serviço de todos

Por António Barreto

São conhecidos os motivos de luta política. O poder, puro e simples, pessoal ou de grupo. A luta das classes, entre o trabalho e o capital. A luta entre Estados. A luta entre religiões, sempre pronta a ressuscitar. A luta entre etnias. A concorrência entre empresas. A luta entre o centro, geralmente a capital, e a periferia, habitualmente interior. A luta entre o interesse público e os interesses privados.

 

Há quem diga que tudo isso se reduz à luta das classes, a mais importante, a que resume os diferendos. É mentira, mas é um argumento interessante. Como há quem diga que já não há luta das classes, que agora são outras lutas, como entre produtores e consumidores ou entre gerações. Também é mentira, mas também é argumento interessante.

 

Um olhar atento para os debates parlamentares, assim como, nova maneira de viver a democracia, para os discursos feitos à saída do restaurante ou à entrada do asilo, revela que a luta das classes não está no centro de coisa nenhuma. Nível de vida, salários do sector público, pensões, saúde, educação, imigração, racismo, segurança e defesa nacional parecem hoje estar no topo das preocupações.

 

A vida política resume-se, hoje mais do que nunca, a dinheiro. Europeu ou nacional, público ou privado, mas dinheiro. O Governo quer aumentar as pensões, os salários dos grupos profissionais do Estado e o salário mínimo. Tal como quer diminuir impostos. A oposição quer aumentar tudo ainda mais, assim como diminuir impostos muito mais. Ambos querem dinheiro para distribuir pelas autarquias, pelas empresas e pelas profissões. Ambos querem investir muito, nem sempre se sabendo onde nem em quê. O debate político orienta-se cada vez mais para esta grande cornucópia dos dinheiros públicos. Mais dinheiro para quê, para quem, como e para onde?

 

natureza humana é, em geral, assim. E a dos Portugueses também. É pena que, assim, o debate político, que deveria ser claro, formador e informativo, se tenha transformado nesta espécie de contabilidade em que o mais importante é saber quem gasta mais. Fica a perder o sentido do gasto. Ficam a perder o rigor, a racionalidade e a eficácia. O que o Estado gastou, nas últimas décadas, com a TAP e o aeroporto, com os comboios e os transportes urbanos, com o serviço nacional de saúde e a educação, com a electricidade e as grandes empresas falidas, é enorme, mas também é ineficaz, inútil e de muito duvidosa moral.

 

Não há, em Portugal, Tribunal de Contas, tribunais administrativos e de justiça, inspecções de finanças, reguladores sectoriais, conselhos gerais e outras entidades fiscais, que cheguem para responder a esta simples pergunta: por que se gastou tão mal tanto dinheiro? Será mesmo verdade que se gastou mal? Que não se avaliaram os resultados? Que não se corrigiu o caminho do desperdício? Que se prestam tão poucas contas? 

 

A melhor medida é a dos serviços públicos. A do atendimento. A das relações entre pessoas e entidades. A da maneira como não se defende os interesses dos consumidores, dos clientes e dos utentes diante de outrem, Estado, autarquia ou empresa privada. Actualmente, a grande miséria nacional não está nos bairros de lata, nas barracas, nos campos despovoados, nos solos abandonados ou nas instituições culturais. Não. A miséria é a dos serviços públicos, a maneira como os utentes são tratados, o modo hediondo como os consumidores são atendidos, a incompetente prestação de serviços e a desprotecção dos que recorrem aos serviços públicos.

 

As autoridades têm ao seu serviço, para redigir leis e estratégias nacionais disto e daquilo, dezenas de “Observatórios”, de “Conselhos consultivos", de “Entidades reguladoras” e de “Inspecções” quase absolutamente incapazes de prever, de organizar com cuidado, de fomentar a cortesia no trato e de aumentar a eficácia no atendimento. Só não acredita quem não viu as filas de espera no serviço nacional de saúde, as maternidades e as urgências que fecham aos fins de semana, as ambulâncias que não chegam a tempo, as escolas que não têm professores e as que não abrem a horas. Só quem não sabe o que é ser enganado pelas entidades que usam a “fidelização” para explorar os crédulos e as pessoas de boa fé. Só quem não presenciou as filas de espera diante dos serviços de imigração, dos tribunais e das lojas do cidadão. Só quem não se interessa pela maneira como os cidadãos, os utentes e os consumidores são feitos pagantes mudos e reféns passivos das grandes empresas e dos serviços de gás, electricidade, água, telefones e televisão. Só quem não percebe as técnicas dos salteadores do “small print” dos contratos de serviços.

 

Esta situação de degradação nos serviços públicos e de desprotecção dos cidadãos deve-se aos dois partidos que asseguraram o governo durante as últimas três décadas. PS, com 22 anos de governo, e PSD, com 8, tomaram conta, decidiram, melhoraram aqui e ali o estado da nação, mas desperdiçaram tempo e dinheiro, deixaram correr, não se preocuparam com o estado dos serviços, com a amabilidade e a eficácia no tratamento das pessoas, nem com o aumento das zonas de livre escolha e de decisão informada.

 

É verdade que, ao longo das últimas décadas, muita coisa melhorou. Não na justiça, mas em quase todos os outros sectores. É verdade. Mas não mudou o suficiente. Não melhorou à altura da despesa feita e das necessidades dos cidadãos. Mas sobretudo não melhorou na eficácia de tratamento e na humanização do atendimento. O modo como são tratados os velhos, as crianças, os pobres, os imigrantes, os desempregados e os doentes é um bom retrato desta espécie de democracia de pacote.

 

Senhores ministros e senhores secretários de Estado: olhem bem para os rostos dos vossos concidadãos à espera dos comboios ou nas paragens de autocarro à chuva. Olhem para a tristeza das filas de espera na Segurança Social. Vejam bem os corações e as cabeças dos que batem inutilmente à porta da maternidade e dos que esperam pela ambulância. Reparem nas caras de desespero de quem espera 9 horas pela urgência médica, semanas pela consulta ou meses pelo exame. Sintam o desânimo de quem é explorado pelas agências de telecomunicação. Compreendam a triste resignação de quem tem quase medo de viver sem protecção dos seus direitos perante as empresas de serviços domésticos. Percebam os que já consideram normal a espera, a destituição de direitos e a exploração da passividade.

 

Se perceberem, se sentirem, saberão o que fazer.

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Público, 4.1.2025

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