31.8.24

Grande Angular - Referendar a imigração

Por António Barreto

Pretender, de um dia para o outro, referendar a imigração, um dos mais complexos problemas de Portugal e da Europa, revela as intenções dos seus proponentes. Que são demagógicas e oportunistas. Oferecer-se para trocar a iniciativa de um referendo por um voto do orçamento exibe a baixeza moral e o cinismo dos seus autores. Felizmente que Ventura e Chega fizeram esta proposta, pois ela acaba definitivamente com as dúvidas que poderiam subsistir quanto aos seus planos. Fazem tudo o que podem e lhes deixam fazer para possuir a democracia, capturar o regime e sentar-se no poder. Nem sequer têm vergonha para esconder as suas intenções: revelam-nas abertamente, na convicção de que a provocação paga dividendos. O que não impede que tenham trazido a público dois problemas importantes. Primeiro: para que servem e como se convocam os referendos. Segundo: a necessidade urgente de uma política de imigração séria e consequente.

 

Os portugueses em geral e a classe política em particular não têm mostrado especial afecto pelo referendo. Foi recusado na Constituição e pudicamente aceite, mais tarde, numa sua revisão. Foi utilizado duas vezes para o aborto e uma para a regionalização. A participação eleitoral ficou abaixo dos 50%, o que é insuficiente: a lei considera o referendo não vinculativo.

 

A grande oportunidade histórica para realizar um referendo, a aprovação da primeira Constituição democrática, foi deliberadamente perdida, os poderes não quiseram e a opinião pública não se importou. Outras oportunidades de semelhante poder simbólico foram as duas mais importantes revisões constitucionais (1982 e 1989), igualmente afastadas. Outra hipótese, bem calhada, era a adesão plena à União Europeia: foi posta de parte pelos partidos e pelas autoridades do seu tempo. As razões pelas quais não se gosta de referendos são difíceis de determinar. Receio de que a opinião pública critique os partidos? É possível. Confiança absoluta nos mecanismos partidários clássicos da democracia representativa? É crível, mesmo sabendo que muitos países com pergaminhos democráticos recorrem ao referendo e à iniciativa popular com frequência. Receio do veredicto popular que possa contrariar os poderes do dia? Certamente. E muitas mais razões. Na verdade, o referendo não é por si próprio um vício. Nem uma virtude. É aceitável que certos temas não possam ser referendados em qualquer situação, por razões de ordem constitucional, legal e até moral. Por exemplo, não se pode referendar a perda de independência. Nem o estabelecimento de ditadura. Nem a declaração de guerra. Mas poderia em teoria referendar-se a maior parte dos grandes temas da política nacional. O que não é o caso entre nós. Na verdade, a Constituição exclui da possibilidade de referendo uma quantidade excessiva de matérias.

 

É frequente ouvir quem tolere o referendo, desde que não se aplique a certas condições. É natural que assim seja. Mas é forçoso pensar que não se deve aceitar o referendo apenas quando não há risco de perder. Quem luta contra o referendo sobre matéria constitucional, a integração europeia, a liberdade religiosa ou a imigração teria o dever de estar disposto a qualquer resultado, favorável ou não às suas opiniões.

 

Outra coisa é a condição concreta. Um referendo sob pressão dos acontecimentos é condenável. Referendar a prisão perpétua ou a pena de morte, depois de crimes hediondos, é demagógico. Referendar qualquer tema no seguimento de factos que comoveram a opinião e que tenham uma qualquer relação com o terrorismo, o conflito social, o crime abominável, a perseguição religiosa, a violência familiar, o tráfico sexual, o racismo e a imigração ilegal é o mesmo que procurar soluções preconceituosas para problemas complexos. 

 

Referendar qualquer princípio ou política a título de compensação política é igualmente negativo. Por isso, é razoável que a legislação preveja condições especiais para realização de um referendo. Por exemplo, entre a apresentação de uma proposta e a sua realização deveria mediar um longo prazo de pelo menos três a cinco anos, para que haja reflexão, debate, estudo e ponderação. E ânimos acalmados. Além disso, uma proposta de referendo deverá recolher pareceres circunstanciados das autoridades parlamentares, governamentais e presidencial, além de apreciações fundamentadas das grandes instituições judiciais, científicas, religiosas e outras. Sobre o conteúdo e a oportunidade.

 

Neste aspecto, o tema da imigração, proposto pelo Chega, é uma aberração. Pretendem os seus autores realizar o referendo o mais rapidamente possível, quando na sociedade há questões de vivacidade excessiva, isto é, a conjuntura não é favorável. Além disso, os seus proponentes não estão interessados nos resultados, nem sequer convencidos da justeza das suas opiniões. Com efeito, eles próprios anunciaram as suas condições, em especial o facto de renunciarem à sua proposta no caso de obterem um ganho de causa na votação do orçamento! 

 

Por outro lado, é sabido que uma parte dos problemas da imigração reside na percepção dos residentes nacionais e dos imigrantes. Há ou não racismo nas instituições e na política? A imigração está ligada ao trabalho clandestino, às más condições de vida e à marginalidade? A imigração é fonte de comportamentos ilegais perante os trabalhadores, as crianças, os velhos e as mulheres? A imigração tem correlação com o tratamento desumano de animais? Há ou não há relações entre as comunidades imigrantes e o recrutamento e treino de actividade terroristas? Em que condições é que os residentes nacionais têm comportamentos desumanos, odiosos e violentos para com os imigrantes? A imigração é fonte de dispêndio excessivo e injusto em saúde e educação? 

 

Nada disto está devidamente estudado. Há opiniões sobre tudo e mais qualquer coisa, dependendo das crenças de quem as exprime. Sobre todas estas realidades, há percepções, desconfiança, generalizações e medos, quase não há factos nem certezas. A ideia de não estudar estes assuntos, nomeadamente de não inquirir a naturalidade, a prática religiosa e a pertença a certas comunidades, constitui erro inadmissível. Deriva de uma boa intenção, a de não estabelecer desigualdades, mas resulta exactamente no seu contrário, aumenta o preconceito e provoca o comportamento irracional.

 

A obscura proposta de Ventura e Chega vai adiar e criar dificuldades à definição de uma política de imigração, necessidade indiscutível.

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Público, 31.8.2024

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28.8.24

À MARGEM DAS REGRAS

Por A. M. Galopim de Carvalho

Em tempo de paz, sem perspectiva de guerra no horizonte, e feita a recruta, a vida no quartel, nos anos em que a vivi (1952-1954), era uma pasmaceira. Cumpridas as tarefas que a todos competiam, o resto do tempo era uma espera para o dia seguinte.
Uma regra de ouro de um miliciano era estar “desenfiado”, um termo militar, muito usado em artilharia, que quer dizer fora do alcance da vista. Outra regra era, no caso contrário, dar a impressão de que se ia em serviço, com passo firme, decidido e, de preferência, com um papel na mão. Estar à vista, parado ou a deambular sem destino, era condição quase certa para que um superior o chamasse e lhe desse uma qualquer incumbência que, na maior parte dos casos, ele havia recebido de um superior dele.

Por exemplo, o comandante do regimento encarregava o segundo-comandante de resolver uma dada tarefa. Este, um tenente-coronel, chegando ao seu gabinete, mandava uma ordenança chamar um major, a quem entregava da sua resolução. Por sua vez, este graduado declinava-a num capitão. E era nesta fase que um subalterno como eu podia ser apanhado, se estivesse à vista, com ar de desocupado.

– Ó nosso alferes!

– Eu, meu capitão?

– Sim, você! Vê aí mais alguém? Vá ao parque auto e confira este inventário.

E agora, das duas uma: ou eu tratava, pessoalmente, do assunto ou, o que era mais certo, chamava um furriel, que sempre descobria um cabo que acabava por fazer o trabalho. Cumprido este, o nosso cabo entregava-o ao furriel e, através da mesma cadeia, mas agora em sentido inverso, o dito inventário, conferido, chegava às mãos do comandante.

Era, pois, sempre em passo rápido, decidido, e com um rolo de papel na mão que, nas muitas tardes de ociosidade, atravessava a parada, a caminho das cozinhas ou da oficina do sargento carpinteiro. Das cozinhas porque aí, de vez em quando, me juntava a meia dúzia de rapazes da minha geração, independentemente das graduações de cada um, para saborearmos uns queijos do Redondo, um tinto das Cortiçadas, um coelho frito trazido pelo furriel Silva, caçador num fim de semana de licença, ou de umas farinheiras assadas vindas do fumeiro dos pais do 127 de 53.
O chefe cozinheiro, um soldado pronto, rapaz com quem eu jogara à bola (de trapo) no grande terreiro dos Salesianos, que participava nestas confraternizações, arranjava-nos um canto resguardado, sendo exímio na preparação dos petiscos, não raras vezes retirados do caldeirão do rancho, condimentados e apurados à parte e a preceito.
Todos sabíamos que aquele convívio era passível de procedimento disciplinar, mas nunca houve uma denúncia e só são boas as recordações desses momentos.

Outra das fugas que, com relativa frequência, fazia dentro do quartel, tinham por alvo a oficina do sargento carpinteiro. Autodidacta em muitos saberes e de uma notada sensibilidade poética, era um artista a trabalhar a madeira, encafuado no seu espaço, para ele um santuário. O quotidiano do quartel, praticamente, apenas o solicitava para trabalhos menos nobres, rudes, tais como fazer um caixote, colocar umas prateleiras, armar um alpendre ou um estrado na parada, em dia de cerimónia militar.
Tudo isto ele fazia de bom grado, com rapidez e perfeito, granjeando a estima dos superiores, restando-lhe muito tempo para dar expressão à sua criatividade e alimento à sua curiosidade intelectual.

Só passada a recruta, com mais tempo disponível, me apercebi que tínhamos ali um exímio marceneiro, restaurador de móveis antigos e, ao mesmo tempo, um filósofo. De estatura mediana, seco de carnes e meio dobrado pelo ofício, usava óculos de lentes cortadas a meio, só para ver ao perto, e lápis atrás da orelha. Ao canto da boca, pendida, estava sempre uma ponta de cigarro, daqueles que se enrolavam à mão, a maior parte do tempo, apagada. A passar constantemente os dedos pelos ralos cabelos, lisos, alourados, a virarem a branco, o mestre, como eu o tratava, andava o dia todo de cabeça descoberta. Perdera o bivaque ou, melhor, nunca sabia onde o deixava nem procurava encontrá-lo. Ao cruzar-se com um superior, levava a mão à altura da testa e, num gesto descontraído, e sem tirar a beata da boca, mesmo assim descomposto, fazia uma espécie de continência, sem parar. Do comandante, aos soldados, todos o aceitavam naquele seu modo de estar. 

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Um dia, um jovem capitão, recém-chegado ao Quartel, imbuído de militarismo. Participou, por escrito, ao comandante, a falta de aprumo militar do sargento, referindo que, ao passar por ele, este lhe prestou a continência com a mesmo desalinho que lhe era habitual. Na , o comandante, um coronel, de há muito na “casa”, chamou o jovem capitão e, pacientemente, explicou-lhe quem era o velho sargento, finalizando, com bonomia e numa bela expressão de caserna. 

– Rasgue lá a merda do papel e dixe o homem em paz.

O sargento carpinteiro era uma espécie de paisano excêntrico dentro do quartel, uma excepção consentida na uniformidade própria da instituição militar

A carpintaria, a um extremo do vasto campo de instrução, era um verdadeiro atelier de artista, cheio que nem um ovo, onde obras finas começadas se misturavam com restauros há muito por acabar. De chão nunca varrido, os montes de serradura e raspas acumulavam-se na base de pranchas e tábuas empinadas à parede onde, suspensa de pregos e escápulas, saltava à vista uma profusão caótica de tudo e mais alguma coisa. Ir para a oficina do sargento carpinteiro, de quem me tornei amigo, tinha o sabor da evasão. Só entrava ali, de tempos a tempos, uma ordenança a transmitir-lhe algum recado ou a chamá-lo, o que era para ele sempre uma interrupção forçada. Mais parecendo um civil, saía, então, do seu canto, com ferramentas e tábuas nas mãos ou aos ombros, em passo rápido, alheio a tudo e todos, só se sabendo ser um militar pelas divisas de segundo-sargento, quase imperceptíveis pela falta de solarine no latão de que eram feitas.
Com fama de bom jogador de xadrez, a chegada de novos aspirantes milicianos trazia-lhe parceiros para jogos intermináveis e entusiásticas conversas aos fins da tarde. A primeira vez que ali entrei trouxe-me à lembrança a oficina do mestre Roberto, onde, como já escrevi por diversas vezes, me iniciei no gosto de trabalhar a madeira, um gosto que nunca perdi.

Os cantares das serras e serrotes, das plainas e garlopas, o som do ferro de pua, qual bicho da madeira, a abrir caminho, o do rebolo de amolar a dar desbaste às ferramentas de corte, voltaram aos meus ouvidos quase duas décadas depois. Também os cheiros das diversas madeiras, os do grude, dos vernizes e outros me trouxeram à memória aquele meu pequeno mundo onde brinquei julgando ser aprendiz. Com ele passei a conhecer muitas madeiras para além do pinho, do carvalho, do azinho ou da nogueira, que me eram familiares. Vinhático, cerejeira, andiroba, pau-santo, acácia, vidoeiro estavam ali para que as pudesse conhecer, algumas delas em antigos móveis restaurados ou à espera de o serem ou, ainda, em restos de outros. O mestre soprava-os do pó, explicava-me as suas particularidades específicas e falava-me das suas características como matéria-prima da sua arte.

– Esta aqui – dizia ele, encorajado pelo meu interesse – é angelim. Resiste ao tempo como nenhuma outra. Só o fogo dá conta dela. Veio da Índia. E esta – deu-me a cheirar – é criptoméria. É oriunda do Japão, mas dá-se muito bem dos Açores.

Foram muitas as horas que passei “desenfiado” neste canto esquecido do quartel, umas dando largas a uma vocação que não tivera continuidade, outras, em longas conversas com o sargento. Curioso dos meus saberes no domínio da preparação académica que era a minha, ensinou-me outros, os que aprendera nos livros e os que a vida lhe facultara.

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27.8.24

O PREÇO DA BORREGA


Por A. M. Galopim de Carvalho

Dito assim, cruamente, o “preço da borrega” era o custo da virgindade de uma adolescente, pago geralmente à mãe da jovem, pelo dono da herdade, pelos favores sexuais que ele esperava que ela lhe prestasse.

Contava a minha mãe que um dado lavrador, bem conhecido na cidade, senhor de muitas terras, viúvo, mas ainda com forças para se mexer, combinara com a mãe de uma jovem trabalhadora, levá-la para casa a pretexto de ela ali trabalhar como criada de servir, como então se dizia. A velha criada, ainda do tempo da falecida, dizia ele, já só tinha forças para tratar da cozinha. 

A mãe da rapariga não desconhecia os propósitos do lavrador, mas a tradicional pobreza que então ainda se vivia nos campos do Alentejo era muita e jogava a favor do patrão. Uma dúzia de conto de reis foi quanto a mãe da rapariga terá recebido pela “honra” da filha, contava a minha mãe. Meses a fio sem trabalho, vivendo do que a terra lhes oferecia e da generosidade da venda, na aldeia, onde os fiados não paravam de crescer (só amortizados depois da ceifa, da apanha da azeitona ou da tiragem da cortiça, quando tal tinha lugar), ter menos uma boca a comer em casa e contar, todos os meses, com o ordenado daquela filha, já era uma ajuda a não desperdiçar.

Com a jovem em casa, o lavrador tinha artes de a seduzir e, num caso ou noutro, em que a jovem engravidasse, havia de encontrar, entre os seus trabalhadores, um homem que a quisesse por mulher. Por essa aceitação o “felizardo” recebia, do patrão, uma casa para morar, entre as muitas que havia no monte, mais um pedaço de terra para cultivar, uma parelha de mulas, uns dinheiritos para começar a vida e a promessa de apadrinhar a criança.

Afilhados dos grandes senhores da terra, nesses anos, dizia a minha mãe, tinham atrás de si uma história deste tipo, vinda de tempos antigos e continuada por alguns terratenentes sobre as suas criadas, uma realidade que se reporta até aos primeiros anos do século que passou.

Ficcionei este drama em “O Preço da Borrega”, na antiga Editorial Notícias, em 1995, com duas reedições na Âncora Editora. Agostinho da Silva, meu amigo, nos últimos anos da sua vida, e Vergílio Ferreira, que conheci enquanto professor no Liceu de Évora, encorajaram-me a publicá-lo. Natália Correia leu-o, gostou, classificou-o de etnografia ficcional e estava a tentar que alguém dos seus conhecimentos o aceitasse para passar ao cinema, quando a morte a surpreendeu.

Foi pena, porque o tema merecia a divulgação que o cinema dá.

Enviei um exemplar ao António-Pedro Vasconcelos, que me escreveu a agradecer, sem, contudo, me dizer se o leu ou não.

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26.8.24

FRANCISCO D’OLLANDA


Por A. M. Galopim de Carvalho

Francisco d’Ollanda, assim se escrevia, viveu entre 1517 e 1585. Foi uma das maiores figuras do Humanismo, um vanguardista apaixonado pela arte da Antiguidade Clássica e um dos mais ilustres tratadistas no Renascimento Europeu. Foi pintor e desenhador, arquitecto, ensaísta, historiador de arte e um dos primeiros e maiores críticos de arte da Europa do seu tempo. Francisco foi isto tudo a um elevado nível de excelência. Filho de um virtuoso iluminista muito próximo da Corte, começou por ser, como o pai, um profissional da iluminura, arte que considerava “soprada por Deus”. 

A pintura foi de todas as artes a mais desenvolvida e a que atingiu maior projeção entre nós, durante este período. Ainda predominantemente religiosa, a pintura começou a ter por clientela, não só o clero, mas alguns nobres e burgueses mais endinheirados. Executada, geralmente, sobre madeira de carvalho, a pintura destinada à clientela fora da igreja constava, maioritariamente de pequenos altares portáteis. A destinada aos altares das igrejas consistia em grandes retábulos ou painéis isolados ou múltiplos, passíveis de serem dobrados em duas, três ou mais partes, respectivamente conhecidos por dípticos, trípticos e polípticos.

Após o terrível terramoto de 1531, D. João III transferiu a corte para o palácio, em Évora e, aí, o jovem Francisco, com 14 a 15 anos, foi moço de câmara do seu filho mais velho, D. Afonso, e beneficiou da proteção da sua esposa, que lhe possibilitou receber, ao lado dos infantes, a melhor educação, na escola criada por mestre dominicano André de Resende. Grande ideólogo do Humanismo e do Renascimento, doutorado em Salamanca, Resende apercebeu-se das capacidades extraordinárias do jovem e encaminhou-o para uma estadia em Roma, como bolseiro da Coroa, a fim de prosseguir a sua formação. 

O século XVI foi, em Portugal, um tempo de absorção do Humanismo renascentista. A Corte teve papel importante nessa realidade, mandando vir, de Itália, humanistas credenciados, para a educação dos príncipes e promovendo a circulação de bolseiros portugueses pelos principais centros da cultura europeia de então. Francisco beneficiou desta política e, entre 1538 e 1540, frequentou o círculo de Vittoria Colonna, marquesa de Pescara, poetisa e personagem notável do Renascimento italiano, onde se relacionou com a elite dos pensadores e artistas europeus do século XVI, entre os quais o grande Miguel Ângelo, que despertou nele o fervor pelo Classicismo, de quem se fez fervoroso discípulo. Foram dois anos intensos a conviver com os grandes intelectuais do Renascimento europeu e a conhecer os maiores artistas desse século. Francisco foi ali testemunha privilegiada do trabalho dos mestres do seu tempo, e dos do passado, da arte italiana que se estava a produzir e da que se produziu no Mundo Antigo que tanto admirava. 

Regressado a Lisboa, continuou a beneficiar da protecção de D. João III. Com pouco mais de vinte anos, iniciou, na corte deste monarca, o “período dourado da sua vida”, cerca de duas décadas, como cortesão, escudeiro e fidalgo, artista reconhecido e intelectual escutado. Pelos muitos desenhos que foi esboçando na sua estadia em Itália, Francisco revelou-se, logo aí, um virtuoso na ilustração de "Antiguidades de Itália", importante manual para o estudo do património arqueológico da Roma antiga e da arte italiana, na primeira metade do século XVI. Foi nesta fase, no auge da intensa criatividade. que produziu o tratado “Da Pintura Antiga”, a primeira grande obra escrita, de que se serviu para valorizar a pintura, como trabalho intelectual, e introduzir o neoplatonismo na Teoria da Arte, ideias que foram recuperadas pelos italianos, meio século mais tarde.

Este importante tratado, que dedicou ao monarca, concluído em 1549, só foi publicado no século XIX. Consta de duas partes, a primeira trata de todos os géneros e modos de pintar; a segunda, intitulada “Diálogos de Roma”, tem Miguel Ângelo por interlocutor. Foi neste tratado que se tornou possível identificar a obra de Nuno Gonçalves. A sua paixão pelo Classicismo está patente neste seu tratado, no qual podemos conhecer o essencial da obra do grande artista italiano e da generalidade da arte que se produzia em Roma no segundo quartel do século XVI. Este trabalho é ainda importante para o conhecimento e apreciação da pintura da época O respectivo manuscrito, o original, levado para Espanha por um dos Filipes, é hoje propriedade da Real Biblioteca de Madrid. 

“Da Pintura Antiga” é considerado como o seu trabalho de maior consistência teórica, onde é visível a influência da obra do humanista, arquitecto, e teórico de arte genovês, Leon Battista Alberti (1404-1472). Eivado de um misticismo doentio e mergulhado nos ideais filosóficos do neoplatonismo florentino, Francisco foi também fortemente influenciado pela obra “Da Hierarquia Celeste”, do teólogo cristão e filósofo neoplatónico, Dionísio, o Areopagita (século I), onde se diz que o artista, desde que se mantenha em pureza, qual um sacerdote, tem o privilégio de expressar, com formas visíveis, as imagens de entidades invisíveis, como os anjos ou o próprio Deus. Francisco afirmava que o pintor se baseia em ideias sublimes, algo divinas, subjacentes à criação artística. Neste tratado, há uma divinização do artista, cuja obra é vista como uma criação de Deus. Deus que ele dizia ser o primeiro pintor. Como apêndice a este tratado, “Do Tirar Polo Natural”, é o primeiro estudo europeu sobre o retrato. Imbuído do ideal estético do Renascimento, Francisco afirmava que o objectivo primordial do artista era o de “incentivar a sua íntima originalidade, e depois seguir a lição da natureza, entendida como puro espelho do Criador.

Entre as suas principais obras, “Os desenhos das Antigualhas que vio Francisco d’Ollanda, pintor português”, com desenhos e aquarelas feitos em Roma, entre 1539 e 1540, é um precioso códice versando a arquitectura, a escultura, os jardins, as fontes, os costumes populares. Outro importante trabalho que realizou, entre 1540 e 1547, foi “Antiguidades de Itália", uma série de desenhos que põem em evidência a sua grande versatilidade intelectual, valioso contributo para o estudo do património arqueológico romano e da arte italiana da primeira metade do século XVI. Entre 1543 e 1573, desenhou “De Aetatibus Mundi Imagines”, um códice com representações espiritualizadas, animadas, com aparências oníricas e flutuantes e grande quantidade de abstrações. Aqui, ele, não só concretiza os princípios que enuncia teoricamente em “Da Pintura Antiga”, como transmite a mensagem bíblica, usando todo um conjunto de imagens visuais com sentido doutrinal, fruto da sua própria reflexão, devoção e experiência contemplativa.

“Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa” (1571) é um seu estudo pioneiro sobre o que falta à cidade de Lisboa, em termos de organização urbana, dedicado a D. Sebastião. É o primeiro ensaio sobre urbanismo publicado na Península Ibérica. Tem considerações inovadoras e muito inteligentes acerca deste problema nesta velha cidade, com projetos de melhoria. Nele, Francisco pretendeu, em vão, chamar a atenção do rei, mas a sua importância na Corte estava já muito apagada.

Por volta de 1545, Francisco começou a trabalhar naquela que foi a sua obra maior, um códice de imagens sobre a Criação do Mundo. Nos desenhos e nas pinturas que aqui nos deixou, ele, como se tem dito, “imitava-se a si próprio”. Aqui ele procurou tornar visíveis as suas convicções e teve, como também se tem dito, “a audácia de propor algo completamente diferente”. Este trabalho, de desconcertante originalidade, só ficou concluído em 1584, pouco antes de deixar este mundo. Após quase quarenta anos de trabalho e já sem o apoio do rei, Francisco de Holanda perdeu importância, viu-se afastado da Corte e passou a ser alvo do olho censório da Inquisição. Por exemplo, em “Da ciência do desenho”, concluído em 1549), a mão censória da Santa Sé corrigiu-lhe as ideias vanguardistas.

Como Arquitecto militar, desenhou, em 1541, a planta para fortaleza de Mazagão, em Marrocos, 

Nota:

Areopagita - Era a qualificação dada aos membros do Areópago, antigo tribunal ateniense, conhecido pela imparcialidade e honestidade com que operava a justiça, cujas reuniões aconteciam a céu aberto na coluna dedicada a Marte, a noroeste da Acrópole, em Atenas.

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24.8.24

Grande Angular - Ao serviço do povo. Ou do público.

Por António Barreto

Antigamente, dizia-se, com orgulho, que a política devia ser feita “ao serviço do povo”. Era sobretudo a esquerda que assim se exprimia, mas também por vezes a direita. Com o tempo e as modas, “serviço público” foi ganhando o favor dos políticos. Povo era mais trabalhador, mais combativo… A merecer atenção. Público ficou a ser mais neutro, mais interclassista, mais “toda a gente” … Mais consumidor e eleitor. O “interesse público” ou o “serviço público” são expressões mais pacíficas e menos reivindicativas. Quase todos os partidos rectificaram a sua linguagem e substituíram povo por “público”. Nos extremos, à esquerda e à direita, ainda se prefere “povo”, mais popular ou mais populista.

 

Assim é que “fazer política” é servir o povo ou servir o público. Em doses variáveis, também pode ser servir os seus amigos, uma classe social, a si próprio ou instituições e empresas. É aqui que surge uma equação ou uma questão dramática. Conquista-se o poder político (os votos e os respectivos mandatos) para servir o povo e o público? Ou serve-se o povo e o público para conquistar o poder político? E quando se está a servir o povo e o público, estamos a falar de quem? Da população? De uma classe social? De um partido? De certas famílias, grupos e empresas? Qualquer político ou todos os políticos responderão de modo equivalente. Dizem que se conquista o poder político para servir o povo e o público. Consideram os seus adversários apenas interessados em beneficiar a sua classe social, os seus amigos e os seus clientes. E reservam para si próprios o estatuto de impoluto servidor. Nada de novo.

 

No entanto, a situação que vivemos é exemplar. Ninguém tem a maioria parlamentar. Ninguém pode, sozinho, aprovar qualquer coisa de jeito. Mas ninguém quer ficar com o ónus sem ter o mérito. Para o PS, aprovar os planos do governo, sem nada retirar, é fonte de angústia. Reprovar os projectos demagógicos do governo não é compreensível pelos beneficiários. Não aprovar os bons projectos do governo também é nefasto para as intenções do partido. Para a oposição, um recurso possível consiste em aprovar as suas medidas que obriguem o governo a fazer o que não quer. Mas isto tem dificuldades, a começar pelo facto de o governo ter meios para adiar as medidas da oposição. Mas também por causa da insuficiência de votos: o PS e o Chega não têm, sozinhos, votos suficientes. Juntar esforços é mau para os dois… 

 

A distribuição de dinheiro é um dos mais velhos expedientes utilizados para ganhar votos e apoios ou para incomodar as oposições que não têm esse recurso. Também é instrumento de demagogia, dado que as oposições não conseguem ou têm dificuldade em votar contra os “bodos aos pobres”. Assim como não lhes é fácil arranjar votos para os seus próprios “bodos”. O PSD e o governo dedicam-se agora a exactamente este exercício: distribuir a fim de mais tarde recolher. Sem tirar nem pôr. Dar o mais possível ao maior número, dar cheques e vantagens, à procura de benefícios ulteriores e na tentativa de retirar argumentos à oposição e aos populistas.

 

Apesar de não ser inédito, nem original, o Chega é um caso à parte. Não quer gerir a democracia. Pretende capturá-la ou destruí-la. Por “dentro” ou por “fora”. Com ou sem eleitorado. Com ou sem protesto nas ruas. Tudo o que este partido faz tem um sentido: incomodar os partidos democráticos, prejudicar o governo, dar voz e força a tudo o que seja protesto, criar fontes de conflito e liquidar as vias democráticas de governo. Isso já se sabe. Todos sabemos. Só que, como sempre acontece nestes casos, o Chega tem razões. Todas as fontes de descontentamento são as suas razões. Todos os protestos são também seus. As reivindicações de todas as populações são suas. Sobretudo quando os governos ou os partidos democráticos não ouvem essas razões e nada fazem para as tratar e resolver. Em vez disso, reclamam contra o Chega e garantem que este é fascista, racista e xenófobo. É possível que o Chega seja um pouco ou muito disso tudo, mas esse não é o ponto. É típico da democracia: reclamar contra o protesto, em vez de tratar das causas do protesto. 

 

Entrámos numa fase da vida política particularmente sensível. A situação internacional é ameaçadora, mas a nacional, por uma vez, não o é assim tanto. Por enquanto. Mau grado as pressões e revindicações sociais, apesar dos perigos populistas, a situação social e económica do país oferece alguma tranquilidade. Desde que os partidos parlamentares e de governo façam o que têm de fazer, cumpram os seus deveres e abdiquem do seu egoísmo interesseiro. Caso contrário, os partidos democráticos serão severamente julgados por não terem criado condições de governo. Por não terem querido tomar as decisões necessárias a assegurar a realização de reformas. Por não terem abdicado dos seus interesses a fim de tratar de forma mais segura da prosperidade do seu povo.

 

Na melhor tradição republicana, o PSD e o PS estão a arranjar lenha para se queimar. Alimentam populismos e protestos. Estão a ajudar a crise em vez de tratar dela. Cada um dos dois está obcecado, no Parlamento e no governo, com o prejuízo que pode causar ao outro. O PS quer tornar o governo incapaz, quer legislar em vez dele, quer ficar com os louros da oposição e denunciar a impotência do governo. E não quer dar os seus votos aos projectos do governo, a começar pelo orçamento, porque não quer ser cúmplice e quer ganhar votos para eventuais eleições. O PSD e o seu governo querem tudo exactamente ao contrário, o que quer dizer, tudo igual.

 

Utilizando os lugares comuns consagrados, o PSD e o PS não estão a servir os interesses do povo, nem os do público, estão a procurar satisfazer os seus. Hoje, o PSD e o PS não procuram o poder político para servir o povo, antes tentam satisfazer o interesse público para ganhar o poder. Ninguém é totalmente cínico ou sincero, ninguém é absolutamente velhaco ou bondoso. Todos têm de tudo um pouco. Em cada um, a verdade é a proporção de bom e de mau. No caso presente, sabendo o que sabemos, com as ameaças internacionais, com um governo minoritário, com os perigos do populismo, perante a previsão de dificuldades sociais, estes dois partidos têm a mais estrita obrigação de encontrar a solução de governo estável, sólido e competente.

 

É assim que se serve o povo. Ou o público.

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Público, 24.8.2024

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23.8.24

UMA VIDA EM 366 PALAVRAS

Por A. M. Galopim de Carvalho

Cada vez com mais frequência, dou por mim a reflectir sobre o encurtar do horizonte de vida, em particular pela falência acelerada do corpo, bem sentida fisicamente a cada dia que passa, e bem consciencializada pela lucidez do pensamento, como é, felizmente, o meu caso, quanto à inevitabilidade desta descida na “curva de Gauss” que é nossa condição da vida.

Quando olho para o espelho não vejo o adulto maduro e cheio de energia que ainda trago comigo e rege a minha maneira de estar e de conviver. Vejo um rosto que não conheço, que não condiz com o que vejo quando olho para dentro de mim. Mentalmente mantenho a curiosidade, a ousadia e a força anímica da juventude, caldeadas pela ponderação, tolerância e paciência dos velhos.

Devo dizer que esta realidade não me assusta minimamente. Felizmente, a medicação regular que tomo assegura-me a qualidade de vida que me permite ocupar o dia-a-dia com salutar alegria de viver e continuar a trabalhar intensamente como até aqui. Já aqui o disse, quando estou, como agora, bem sentado, frente ao monitor do computador, não tenho idade nem as múltiplas maleitas e limitações que se apoderaram do meu corpo.

Neste percorrer de uma longa caminhada, para além das múltiplas experiências vividas e presenciadas na infância, na adolescência e no tempo que cumpri como miliciano ao serviço do Exército, dei particular atenção às vividas e presenciadas como aluno e, mais tarde, como docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e como director do Museu Nacional de História Natural da mesma Universidade. A estas experiências, sobre as quais tenho reflectido e que tenho relatado em livros e em muitos outros meios de comunicação, acrescento as muitas que vivi e presenciei como cidadão interventor, sobretudo, na árdua defesa e valorização da geologia e do nosso património natural, numa sociedade cinzenta, onde, para vergonha dos responsáveis, assisto à degradação e, em alguns casos, destruição do património natural, à falência da Educação e ao descrédito da Justiça. Sociedade cinzenta onde a escola dá diplomas, mas não dá cultura e onde o conhecimento científico e humanístico continuam arredados da grande maioria dos nossos decisores, aos vários níveis da administração.

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17.8.24

Grande Angular - Para que servem os Pactos de Regime?

Por António Barreto

A pergunta em título é de resposta múltipla. a) Para nada. b) Para disfarçar. c) Para enganar. d) Para adiar. e) Para evitar escolhas difíceis. f) Para transferir culpas por incompetência própria. g) Para responsabilizar os adversários. h) Todas as acima. A resposta certa é a última!

 

O “pacto de regime” é um mantra da democracia. O mais actual de todos. Já foi a educação. Cada vez que um político não sabia o que dizer, muito menos o que fazer, a saída era imediata: a escola! A frase começa por “a escola é muito importante para…” e termina com a identificação: a cidadania, a tolerância, o clima, a ecologia, a moral, os costumes e o civismo. Inventaram-se slogans agora com menos fulgor: “Educação para a saúde”. “Educação para a cidadania”. “Educação para o Património”. Com frases destas, evita-se a reflexão e a responsabilidade. E dá-se um ar de seriedade. Uma versão parecida era, por exemplo, “a cidadania começa na escola”. A fórmula dava igualmente para tudo. O que permitia culpar as gerações anteriores por defeitos e erros, ao mesmo tempo que remetia as soluções para as gerações futuras. Um “mantra” é coisa mágica. É feitiço. 

 

Agora, o mantra é o “Pacto de regime”. É antigo, mas tem cada vez mais saída e adeptos. Já houve tentativas no passado, nunca se chegou bem a vias de facto e o que se conseguiu falhou. Mas não retirou validade à bruxaria. O “pacto de regime” para a saúde é hoje o mais falado, o que tem mais adeptos, mas não é único. A educação, a luta contra a pobreza, a imigração e novamente a justiça estão entre os temas a que mais se alude para o referido “pacto”.

 

Como se trata de mágica, não é necessário tratar dos aspectos práticos. Mas tal é necessário. Na verdade, essas questões põem em causa o valor fundamental do “pacto”.  Como se faz um “pacto de regime”? Assinam todos, Presidente, Primeiro-ministro, Ministro da pasta, líderes dos partidos e presidentes dos grupos parlamentares? Não parece possível encontrar tal unanimidade. Nem responsabilidade. Como se pode tomar compromisso por longos períodos, sem ter em conta as gerações e as mudanças? Se é “de regime”, quem fica de fora? Se alguém ou alguns não querem assinar, já não é bem regime, mas quase. Tem o mesmo valor?

 

E a sociedade civil, trabalhadores, patrões, académicos e técnicos? Sem estes, um “pacto de regime” mais parece um acordo entre políticos, só entre “eles”, o que dá imediatamente mau aspecto. São sempre “eles nas costas do povo”. O que enfraquece a ideia de “pacto” e de “regime”. Mais valia recorrer a um dispositivo clássico chamado “referendo”, que aliás em Portugal tem má reputação e os partidos detestam.

 

Se o mais importante do “pacto” for a presença dos partidos políticos, dado que são eles que fazem os governos e os parlamentos, as perguntas óbvias são simples. A assinatura do líder partidário de hoje vale quanto tempo? Quantas legislaturas? E se a direcção de um partido, ou de vários, muda? Os novos líderes partidários ficam obrigados às assinaturas e aos pactos dos líderes anteriores? E se for um novo Ministro ou um novo Primeiro-ministro? Pode contrariar os “pactos” já assinados? Ou tem a obrigação de os seguir, como se fosse a lei do país? E se um novo governo entende, com a força do seu eleitorado, mudar o “pacto” e os seus dispositivos, como deve fazer? Mas se um governo pretende fazer a política nova, tem de pedir autorização aos restantes signatários dos “pactos”?

 

A acção legislativa fica, entretanto, limitada? Um parlamento não pode aprovar novas leis que contrariem os “pactos” precedentes? Mas não parece acertado limitar a soberania e a liberdade de um parlamento eleito, desde que as suas leis sejam legais e aprovadas pela maioria. Fica-se com a impressão de que um “pacto” tem duas possíveis existências. A primeira é autoritária e antidemocrática, obrigando as gerações futuras, os governos e as maiorias a respeitar decisões prévias. Decisões que nem sequer têm força de lei, muito menos de Constituição. São regras morais, ou crenças filosóficas e boas intenções que teriam mais força de lei do que as leis propriamente ditas. A segunda é de absoluta inutilidade e de mera propaganda. 

 

Não é por acaso, mas as ideias de “pactos de regime” surgem sempre em momentos estranhos. Com governos minoritários. Com oposições impotentes. Com presidentes hiperactivos. Com partidos egocêntricos. Em momentos de indecisão e transição. Surgem sobretudo quando um ou mais partidos se recusam a fazer o que deveriam, isto é, alianças parlamentares e coligações de governo, formais, duráveis e programáticas. Quando os partidos não querem fazer governo estável de maioria e de legislatura. Isto é, a ideia de “pacto de regime” surge sempre em momento de fraqueza, de indecisão, de cálculo interessado e de fuga à responsabilidade. 

 

O mais importante “pacto de regime” que se conhece tem um nome, Constituição. Esse é o “pacto”. Respeitado por todos. Só alterado em condições muito especiais, a fim de não mudar todos os dias. Suficientemente maleável para permitir viver em tempos diferentes.  Mesmo absurda em tantos aspectos, a nossa Constituição foi pacto que deu uvas. Um verdadeiro milagre. Permitiu 50 anos de vida, assim como sobreviveu a várias revisões, duas das quais atingiram a alma e o essencial, e ainda bem, pois vivíamos um quadro constitucional insuportável. Foram essas duas grandes mudanças (incluindo o essencial das estruturas económicas e o poder político) que permitiram que a Constituição sobrevivesse até hoje sem desastre de maior. 

 

Além da Constituição, há uma espécie de “pactos de regime” silenciosos, invisíveis, mas que têm sido muito eficazes. Nunca tratados como tal, mas discretamente aceites. Um é o que considera irrevogável a presença de Portugal na União Europeia. Nem todos aceitam, vários momentos vivemos nas últimas décadas em que a saída de Portugal da União ou do Euro foi defendida publicamente em campanhas eleitorais. Sem grande êxito, aliás. Também a participação de Portugal na NATO, de que é fundador e membro desde 1949, é tão sólida com um “pacto de regime” (e mais ainda, de dois regimes…), nunca foi objecto de assinatura formal entre partidos, mas quase todos a aceitam, com as reservas habituais dos comunistas que entendem que o país deveria sair. Um especial respeito pelas Forças Armadas faz também parte destes pactos invisíveis. Respeitados, em geral.

 

Pactos já temos. Falta é governar bem. Com maioria.

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Público, 17.8.2024

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16.8.24

UM ESCLARECIMENTO

Por A. M. Galopim de Carvalho

Foi muita a curiosidade que sempre tive por uma grande panóplia de assuntos. Na profissão, como docente do Departamento de Mineralogia e Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa, pertenci à última geração dos docentes que tinham de ministrar o ensino de quase todas a “cadeiras” (disciplinas) do Departamento, da Cristalografia à Paleontologia, passando pela Mineralogia, Geologia, Estratigrafia, Geomorfologia e outras. No doutoramento (que fiz nesta Universidade, em 1968), para além da dissertação a defender perante um júri, alargado a todos os professores catedráticos da Faculdade, o doutorando era interrogado sobre dois temas de entre todos os incluídos no universo científico e pedagógico do Departamento. 

Como investigador, uma actividade complementar (eu diria obrigatória) da docência, a tempo inteiro, enveredei pela dualidade Geomorfologia apoiada pela Sedimentologia, um mundo que me abriu as portas à Geografia e me alargou os horizontes de uma ciência milenária. Foi assim ao longo de décadas, numa dedicação exclusiva, por vezes obsessiva, pelo que pouco tempo tive para sondar e, muito menos, enveredar por outros saberes.

Na sequência da jubilação, aos 70 anos, o Estado fez aquilo que é costume: atribuiu-me uma pensão e, como já escrevi, colocou-me na prateleira dos pensionistas, corria o ano de 2003. Só que eu não quis lá ficar. A meu pedido, ainda tive autorização para continuar por mais dois anos na direcção do Museu Nacional de História Natural, mas, depois, rua!

 

Há 21 anos que sou senhor do meu tempo e entendi continuar a servir o meu país e é público que o tenho feito em duas vertentes: 

-1 valorização e defesa do nosso património geológico, numa árdua “luta” contra a insensibilidade e desinteresse (leia-se ignorância) das administrações (há excepções, claro). Com o avançar da idade e as limitações físicas decorrentes, tenho diminuído consideravelmente esta “luta”, que felizmente não esmorece porque há continuadores;

 

- 2 divulgação científica pela palavra falada e escrita. Por decisão consciente, tendo em mente o que entendi ser um meu dever cívico, afastei-me da especialização que foi a minha, no meio académico (um saber que, com o passar dos anos, se foi naturalmente desactualizando) e enveredei pelo caminho da divulgação. Como divulgador que me assumo, direi que sou um generalista curioso de muitas “artes”. 

Fazendo humor, lembro um dito, cuja autoria desconheço: «O especialista é aquele que sabe cada vez mais de um tema cada vez mais restrito, até saber tudo acerca de quase nada”. No campo oposto “o generalista é aquele que pouco ou quase nada sabe acerca de quase tudo»

“São muitos os leitores que comentam simpaticamente a diversidade de temas que encontram nesta minha página do Facebook.”

A propósito destes saborosos comentários sinto o dever de deixar aqui um esclarecimento.

Começo por dizer que uma coisa é “estar a léguas de possuir um conhecimento enciclopédico”, o que é o meu caso, outra coisa é ter uma curiosidade, quase obsessiva, por muitos domínios do saber, sejam eles: eruditos (como filosofia, história de tudo ou quase tudo e artes das mais diversas, sociologia, política) ou vulgares e, aqui, há uma “infinidade” de tecnologias, ofícios e artesanais que, desde sempre, estiveram na mira dessa curiosidade.

Como é natural, ao “meter a foice em seara alheia”, sempre que ouso falar de um assunto que não seja aquele em que fiquei profissionalmente rotulado, sujeito-me a reparos por parte dos cultores desse assunto. Neste aspecto devo esclarecer que a imensa maioria dos saberes sobre os quais gosto de escrever, está nos livros, noutros documentos ao meu alcance e na Internet que, criteriosamente, sei consultar. A experiência de quarenta e três anos a estudar para poder ensinar, habilita-me e encoraja-me neste caminhar que tem sido o meu, para quem, fins-de-semana, feriados ou dias de férias deixaram de fazer sentido como tal.

A minha sabedoria é, pois, a que fui adquirindo ao longo da vida, mais toda a que tenho acesso, numa infinidade de fontes ao dispor de qualquer um. 

Posso, assim, escrever sobre tudo o que me der prazer.

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10.8.24

Grande Angular - Os culpados habituais

Por António Barreto

As políticas públicas têm, entre nós, resultados muito variados. Há, ao longo dos anos, êxitos indiscutíveis, como nos casos dos serviços domésticos, da mortalidade infantil, da alfabetização e do desenvolvimento da ciência. Vamos admitir que os responsáveis por estes feitos são os governos (uns mais do que outros), as autarquias (com diferenças entre elas), a Administração Pública, as empresas e os cidadãos. É o que se chama uma história feliz. Todos contribuíram para o bem de todos.

 

Mas também há resultados negativos. Ou seja, erros, falhanços, ineficácia, injustiça e corrupção. Os responsáveis serão mais ou menos os mesmos, dos cidadãos aos governos, passando pela empresas e pelas autarquias. Só que há algo mais a dizer. Cada um culpa os outros pelos erros e atrasos. Cada partido, com anos de governo, culpa os anteriores e os sucessores. Os partidos sem experiência de governo culpam os outros. As autarquias culpam os governos e a Administração central, além dos partidos das suas oposições. Os cidadãos culpam quase todos: “eles”.

 

Será sempre assim. É muitas vezes assim.  O eleitorado lá vai fazendo distinções, por vezes acertadas, por vezes ilusórias, mas sempre verdadeiras pois são as suas escolhas. É frequentemente difícil apurar quem foi responsável pelos erros e pela inércia. A democracia é assim. Por isso a “não democracia” culpa tudo e todos, com os chavões habituais: “são uns inúteis”, “ladrões” ou “corruptos”. Não se vai lá muito longe com esta disposição de espírito, mas a democracia é assim. Bom é saber guardá-la, com as suas imperfeições e as suas insuficiências.

 

Este relativismo sereno não pode ocultar os casos mais sérios. Há na verdade situações e falhanços que merecem análise atenta. Não propriamente para designar o culpado e encostar o responsável no pelourinho. Mas para perceber porquê. Só depois disso será possível fazer melhor.

 

É difícil eleger os casos mais graves e que melhor nos podem servir para aprender. Mas, nos tempos que correm, o primeiro parece ser o Serviço Nacional de Saúde. Aquele que foi, para muitos e durante anos, a pérola da democracia portuguesa e o caso mais brilhante das políticas públicas, transformou-se, diante de todos, com notícias sucessivas, no caso mais flagrante e no insucesso mais cruel. O fiasco das urgências, das maternidades, da obstetrícia e das cirurgias ultrapassa os limites do entendimento. Dinheiro? Investimento? Previsão? Organização? Vencimentos? Ganância? Concorrência? Mudança de costumes? Alteração da procura? Tudo pode ser invocado. Mas tudo era previsível. E para tudo havia recursos. O que faltou? O que falhou? Por que razão PS e PSD, ao longo de décadas de governo, não souberam gerir, não conseguiram corrigir, falharam as previsões, descuraram o sistema e deixaram o SNS entregue ao acaso e aos profissionais que, contra o vento, tentam fazer muito mais do que os seus deveres?

 

Segundo caso de incompreensível incompetência, o do aeroporto de Lisboa. Após dez, vinte, trinta anos de hesitação, de promessas, de estudos, de contradições, de certezas, de garantias e de demagogia, ainda estamos nas vésperas das decisões, na antevéspera dos concursos e longe de certezas sobre a dimensão, a localização, o equipamento e a modalidade. Ao longo das décadas, vários líderes do PS e do PSD, Primeiros-ministros dos dois partidos e diversos ministros de ambos, anunciaram convicções e tomaram decisões. Contradisseram-se e desmentiram-se. Negaram o que fizeram e mudaram de opinião. E não foram só os partidos, os governos e a Administração pública, foram também as mesmas empresas de auditoria, de projecto, de consulta, de advogados, de engenharia e de lobby. O aeroporto já teve pelo menos cinco localizações, três variantes e quatro modalidades. Com frequência, as mesmas pessoas ou as mesmas instituições disseram, em poucos anos, o que se devia fazer e o seu contrário.

 

Terceiro caso de inegável incompetência, de absoluta insensatez e de incompreensível falhanço: o caminho-de-ferro, a rede de comboios, o sistema antigo, as novas linhas e o famigerado TGV. O que se passou realmente nestes trinta anos durante os quais todos os governos e os seus dois grandes partidos, PS e PSD, prometeram renovar, revalorizar, equipar, modernizar, aumentar e melhorar as redes existentes e construir novas e todos, sem excepção, fizeram exactamente o contrário? Fecharam centenas de quilómetros de linhas. Apodreceram outros tantos. A “grande velocidade” foi adiada décadas. Os equipamentos ficaram obsoletos. O sistema actual é um verdadeiro escândalo de desconforto, de insegurança e de ineficácia.

 

Quarto caso a merecer análise, o estado a que a justiça chegou. A morosidade é proverbial. A tendência para a prescrição inscreveu-se nas tradições nacionais. A luta entre corpos profissionais, agressivos e auto-suficientes, atingiu cumes inéditos. O uso e abuso de escutas telefónicas e a gestão das mesmas ao longo do tempo e em conformidade com as qualidades dos “escutados” ou de suas vítimas desesperam qualquer pessoa ciosa do Estado de direito e dos direitos dos cidadãos. A divulgação de segredos e de conteúdos de escutas é hábito que distorce o direito e o sentimento de justiça. A evidente desigualdade social que a justiça portuguesa confirma e dilata é indiscutível. A corrupção continua a minar impunemente os alicerces da democracia. A incapacidade de adiantar e terminar processos que envolvam muito dinheiro, políticos reputados e ricos poderosos começa a ser lendária. A perda de confiança na justiça, por parte de tantos cidadãos, é notória e perigosa. A justiça vive em desequilíbrio profundo, favorecendo alguns profissionais, certos corpos e os poderosos. Com uma característica especial: como toda a gente depende da justiça, como quase todos aspiram a justiça e como muitos receiam represálias, estabelece-se uma crença: não é assim tão grave, a justiça ainda faz muito, são só uns casos excepcionais… Verdade é que parece ser o caso mais flagrante de impotência do legislador, de fraqueza do soberano e de incapacidade dos reformadores. 

 

PS e PSD têm de comum uma história de serviços prestados ao país e à população. Essa história é indiscutível. Mas também têm de comum uma enorme ineficácia e um estranho hábito de uso e abuso do poder político. Como têm de comum terem deixado decapitar a inteligência e a capacidade técnica do Estado, deixando-o à mercê da demagogia e dos vampiros habituais.

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Público, 10.8.2024

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4.8.24

João Paulo Guerra, um "Senhor"!

Durante algum tempo, o João Paulo Guerra, que agora nos deixou, deixando saudades, foi "autor convidado" do "Sorumbático", estando as suas saborosas crónicas acessíveis escrevendo aqui o seu nome na "Caixa de Pesquisa" — têm a "Etiqueta" JPG.

Infelizmente, e apesar de sermos vizinhos quando eu morava em Lisboa, conheci-o muito mal, tendo nós apenas trocado "mails", e tomado café uma única vez.

Aqui deixo imagens do lançamento do "Romance de uma Conspiração", na Livraria Barata, onde eu estive em 20 de Outubro de 2010.

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3.8.24

Grande Angular - Pesadelos dos dias de Verão

Por António Barreto

É uma das ideias mais sinistras, ou talvez apenas hilariante, da história da democracia portuguesa! O Parlamento “chama”, convoca ou solicita ao Presidente da República que se apresente numa Comissão de Inquérito Parlamentar! A ideia, se é que se lhe pode chamar assim, foi do partido Chega. O regimento diz que um partido com número suficiente de deputados pode impor uma comissão de inquérito sem que esta tenha de ser aprovada pela maioria. Aquele partido tem essa quantidade. E como é seu hábito, utiliza os meios postos à sua disposição pela democracia para inviabilizar, ridicularizar e eventualmente destruir a mesma democracia. O plano é inteligente. Mas tão facilmente desmascarável que surpreende que os outros partidos, alguns dos outros partidos se deixem embalar.

 

O Parlamento não pode nem deve convidar ou convocar o Presidente da República! Se o fizer, deverá simplesmente ser mandado à escola ou ao sanatório. O Parlamento também tem o dever de cumprir a Constituição e as leis, tem a obrigação de não convidar ou convocar o Presidente da República. O Parlamento não tem essas competências.

 

O Presidente da República não deve ir ao Parlamento prestar declarações ou sequer esclarecimentos, não deve hesitar em responder, não precisa de ponderar na resposta, nem sequer de medir as palavras. Não é não! O seu dever é não ir ao Parlamento e dar à Comissão de Inquérito uma ensaboadela constitucional.

 

Já são conhecidas as opiniões de gente competente, de esquerda e de direita, da academia e da política, de funções públicas e privadas, para que se perceba que a questão nem sequer é realmente polémica. Estamos perante uma provocação medonha de carácter político e constitucional.

 

É, todavia, curioso ver os comportamentos dos outros partidos. Parece cada vez mais evidente que estes, alguns destes, conforme as ocasiões, não se importam de utilizar o Parlamento, as hesitações regimentais, as provocações do partido Chega e as tentações pecaminosas dos outros partidos para incomodar o Presidente da República, o Governo, os partidos da oposição…

 

Já com os casos da banca e da TAP, agora com as gémeas, se tinha percebido que o partido Chega utilizaria este e outros dispositivos para pôr em crise o Parlamento, o Governo, o Presidente e Constituição. Até agora, a habilidade tem funcionado. Ainda por cima, os pequenos partidos, com especial brilho para o Bloco, aproveitam ao máximo o dispositivo e as iniciativas dos outos. O caso das gémeas só chegou àquele estado de deliquescência, de má-criação demagógica e de hostilidade porque os outros partidos deixam correr, contribuem com perguntas e questões, ajudam à missa e são mesmo por vezes tão agressivos quanto os autores da iniciativa.

 

Dizem que o Verão político é propício à coreografia e a jogos florais para passar o tempo. Como há quem diga que é esta a estação do disparate. Tudo isso é possível e talvez verdade. O certo é que não estamos em tempo adequado a essas cenas. O mundo e a Europa estão em mau estado e sob ameaças diversas, convinha que estivéssemos preparados para organizar o nosso futuro colectivo. Ora, aquilo a que assistimos são exercícios de rasteiras e chicanas com o fim de aumentar as sondagens e de evitar ou incitar a convocatória de novas eleições.

 

O governo do PSD está a sair-se melhor do que se pensava, mas tem o seu futuro apertado: ou se mantém por impotência da oposição, à espera de aumentar os votos; ou é impedido de governar e fica à espera de ganhar votos como vítima. O PS está a sair-se pior do que se esperava. Vê-se na cara que estão entalados entre a oposição que pode derrubar o governo e a doce oposição de Sua Majestade que o pode encostar às cordas por muitos anos. O partido Chega está a sair-se como se esperava, ágil, arruaceiro e irresponsável como é o seu carácter, à espera que a democracia lhe ofereça tudo o que não merece: tribuna e importância. De qualquer modo, já conseguiu algo de valioso para si: os grandes partidos democráticos não sabem como se comportar diante de um brigão que utiliza a paz que lhe oferecem. Quanto aos pequenos partidos, pouco ou nada se espera, a não ser uma voz de vez em quando. Pena é que se deixem tantas vezes absorver pelas manobras demagógicas dos debates e dos inquéritos parlamentares.

 

Entre os partidos e neste Parlamento alguém ouviu ou presenciou alguma discussão séria sobre a posição de Portugal na Europa, diante dos problemas que se abrem todos os dias, das dificuldades francesas e alemãs, das provocações húngaras, dos problemas polacos, da tragédia ucraniana e da reforma da NATO? Alguém esteve presente diante de um debate sobre a evolução da política americana depois das eleições de Novembro? Alguém deu conta de uma reflexão pública e partilhada entre os partidos, o governo e o Parlamento sobre a enorme crise em curso no Próximo Oriente e no Mediterrâneo com o terrorismo islâmico e o massacre israelita?

 

Vindo mais para casa, onde está a acção conjunta, que envolva vários partidos ou instituições, a propósito de situações urgentes que não se resolvem com flores de estilo e manobras habilidosas? Já se assistiu a um debate sério sobre as Forças Armadas quase em vias de extinção? Já alguém ouviu falar de um debate e de uma acção de órgãos de soberania e de partidos sobre a tão crítica justiça? Já se reparou que as filas de espera nas ruas e diante dos serviços de imigração ou das Lojas do Cidadão não se resolvem com minorias de governo, com duodécimos nem com inquéritos parlamentares armadilhados? Já alguém assistiu a uma discussão séria e produtiva no Parlamento e nas instituições sobre as reformas urgentes do Serviço Nacional de Saúde e sobre a decadência dos cuidados de saúde pública ao longo dos últimos dez ou vinte anos? Já alguém pressentiu um qualquer debate ou uma conversa sobre a possibilidade de encontrar uma solução política maioritária e capaz de olhar para o que falta? Já alguém ouviu rumores e reflexões sobre os problemas e não sobre manhas e tropelias?

 

Infelizmente, o que parecem ser pesadelos de noites de Verão são sinais profundos e factos reais de crise séria, que não se compadece com coreografia, nem com pezinhos de dança e bailado artístico, nem com o habitual cinismo. Por que esperam os partidos democráticos? Por mais uma sondagem?

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Público, 3.8.2024

 

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