Por António Barreto
As grandes obras são o “filet mignon” de certas políticas: a dos interesses e a que se julga acima da ciência. As grandes obras e os grandes equipamentos são em geral as jóias da coroa dos poderes autocráticos. Hitler, Estaline, Mao, Mussolini e até Franco e Salazar viviam momentos de rara volúpia diante das suas barragens e dos seus estádios. Eram deles os palácios da justiça, da cultura, dos trabalhadores ou do povo! E até democratas como Roosevelt e Mitterrand não deixaram de se sentir tentados pela epopeia da “obra pública”.
Na verdade, barragens, portos, linhas de caminho-de-ferro, aeroportos e redes de telecomunicações, de energia e de água, assim como aquisições especiais de fragatas, submarinos, aviões e locomotivas, são investimentos e obras que valem milhares de votos e milhões de euros. São obras que condicionam a economia e a sociedade durante décadas. Que criam emprego em quantidades inacreditáveis. Que dão lucros em volumes impensáveis. Que oferecem oportunidades para cunhas, empenhos, luvas, comissões e corrupção em valor inimaginável. As grandes obras condicionam a sociedade e a economia por largos anos: qualquer erro paga-se muito caro e pode ter consequências negativas nas vidas das pessoas e no endividamento de um país!
Um aeroporto novo de raiz, como o de Alcochete, ou grande desenvolvimento de estrutura anterior, como o de Montijo, têm profundos efeitos a longo prazo no futuro das populações, das áreas afectadas e até do país: pontes, viadutos, auto-estradas, linhas de comboio e de metropolitano, estruturas de cargas e descargas, oficinas de reparação e manutenção, instalações de serviços de grande porte, escritórios, hotelaria, segurança, estacionamentos, abastecimento, alimentação, etc. Um nunca mais acabar, com milhares de expropriações, muitos milhões na aquisição de terrenos, licenças de construção e urbanização e autorizações para edificação. Um aeroporto é uma cidade que condiciona as outras cidades, que determina uma parte do crescimento futuro, que tem efeitos negativos e positivos para milhões de pessoas e dezenas de anos! Percebe-se que são decisões difíceis e complexas, sem perfeição absoluta e que necessitam de muito estudo e muita inteligência! Mas não são estes factos ou estas exigências que justificam que uma decisão demore mais de cinquenta anos e que mude de local escolhido quatro vezes, como é o caso do futuro aeroporto de Lisboa!
Acrescente-se que, nos tempos contemporâneos, estas decisões são ainda mais difíceis. A democracia dá voz a toda a gente e a todas as opiniões, legítimas e ilegítimas, sérias e fantasiosas. Surgem todos os dias novos problemas, sobretudo os relativos à qualidade de vida, à ecologia e às alterações climáticas. Há seguramente contradições fundamentais entre criação de emprego, adequação do investimento público, oportunidades para investimento privado, segurança dos cidadãos, poluição sonora e do ar, destruição da flora e da fauna e desenvolvimento da economia em geral e do turismo em particular. Mas sabemos que não há decisões perfeitas e que um aeroporto terá sempre amigos, inimigos e adversários. Como tudo na vida.
Em democracia, não há aeroporto sem polémicas, interesses, lutas, protestos, devaneios tecnológicos, ameaças ambientalistas e horrores ecológicos. Não é difícil encontrar quem pense que os voos e os aviões têm os dias contados, que as pessoas não deveriam viajar e que o turismo necessita de um “numerus clausus”. Todos conhecemos quem entenda que deveríamos eliminar a poluição sonora, sobretudo a que resulta do sobrevoo de cidades e de zonas de habitação. Ainda recordamos batalhas e controvérsias em Heathrow, Frankfurt, Berlim ou Paris. Nos Estados Unidos, no Japão e no Brasil.
Mas em quase todas as controvérsias houve sempre ou quase sempre um momento em que os ânimos acalmaram, que se introduziu alguma racionalidade e se fizeram correcções aos projectos iniciais. E que se tomaram decisões e se fez obra. Foi nesses momentos que se sentiu que havia centros de competência e racionalidade, grupos de pessoas qualificadas e interessadas, empresas ou associações ou universidades isentas e independentes. Foi nesses momentos que se sentiu que, além dos trafulhas habituais, mau grado os pesos pesados dos interesses e do produto, havia também gente honesta e preparada!
Lamento dizer, mas, em Portugal e para o novo aeroporto de Lisboa, temos tudo, menos isso, honestidade e competência, isenção e independência. Se existem essas qualidades, não as vemos ou foram silenciadas. Ou a essas o governo não recorre.
O Estado continua a revelar a sua falta de capacidades intelectuais, técnicas e científicas, assim como a ausência de “ethos” isento e independente. Em tudo o que cheire a grande obra, o Estado aparece sempre e cada vez mais capturado, impotente e incompetente…
Foi este Estado que, durante décadas e alternadamente, hesitou e decidiu, eliminou e escolheu Ota, Rio Frio, Alcochete e Montijo. Mas também Alverca e Sintra. E já agora Monte Real e Beja. Foi o Estado português, sucessivamente salazarista, marcelista, gonçalvista e democrático que, desde os anos sessenta, isto é, há cinquenta anos, vem pensando em construir um aeroporto desde sempre considerado urgente! E muda de opinião com a firmeza dos ignorantes e a certeza dos interesses. A perda de capacidade científica independente do Estado é uma das mais graves falhas das últimas décadas.
É frequente encontrarmos as mesmas pessoas, as mesmas universidades, as mesmas empresas, os mesmos bancos, os mesmos promotores e os mesmos especialistas em vários projectos e várias soluções. Há ministros e secretários de Estado que estavam em funções quando foram tomadas duas ou mesmo três decisões contraditórias. Também se conhecem profissionais, engenheiros, economistas, consultores e construtores que apoiaram decisões opostas, talvez até com os mesmos argumentos!
As esquerdas, auto-suficientes, exauriram o Estado competente, técnico e inteligente, para o transformar em agente político e já agora em sua coutada. As direitas, cúpidas, esvaziaram o Estado sabedor, capaz e independente, para entregar poderes e competências aos negócios e aos privados. O Estado, hoje, é alfobre de negócios, tapada dos partidos, autoritário como os ignorantes, convencido como os déspotas! E ao serviço da política mais barata, a dos interesses. Bonito serviço!
Público, 10.11.2019
Etiquetas: AMB