Por António Barreto
No século XX, desde o fim da segunda guerra, o desenvolvimento político e social deu gradualmente vitórias aos trabalhadores e às esquerdas. A onda já vinha de antes, mas tinha sido interrompida por uma década de fascismo e de nazismo.
Apesar dos governos reaccionários, os vencedores da história do século XX, até quase ao fim, foram as democracias, as esquerdas, os socialistas, os comunistas, os povos colonizados e outros grupos de pessoas até aí dominadas e dependentes. Podemos enumerar os trabalhadores e seus sindicatos, as mulheres e os jovens, os intelectuais e os artistas, os cientistas e as profissões liberais. Quase todos ficaram a ganhar. Em muitos casos, com excepção dos países comunistas, as liberdades individuais aumentaram também.
Partidos de trabalhadores e de sindicalistas, de socialistas e de comunistas, de liberais e da classe média tiveram acesso às eleições e aos parlamentos. Fizeram-se governos de esquerda democrática. E alianças ou alternância entre esses partidos e os de centro e de direita, as classes altas e de proprietários, as tecnocracias e conservadores de vários tipos, incluindo liberais. Vitória também a das esquerdas em cerca de vinte países, onde os comunistas conquistaram o poder só para eles e comportaram-se mais ou menos como fascistas e nazis, só que com outra ideologia aparente.
Quem não tinha, ganhou o direito de voto, isto é: mulheres, jovens, soldados, padres, analfabetos, pobres, desempregados, camponeses, emigrantes e até estrangeiros. As mulheres arranjaram emprego, casa, educação, profissão, dinheiro e pílula. Os jovens obtiveram mesadas, autonomia, direitos, viagens, cultura, roupas e bebida. Os povos colonizados ganharam um Estado, polícia, exércitos, petróleo, direitos internacionais e acesso aos circuitos internacionais de bem-estar, luxo, tecnologia e saber.
As democracias vingaram em cinquenta países desenvolvidos. Quase toda a gente estudou, arranjou emprego, tem conta no banco e vai de férias. Criaram-se Estados de protecção social, organizaram-se sistemas de saúde e de educação para todos. As desigualdades sociais esbateram-se. Em poucas décadas, na Europa, as populações viram os seus rendimentos crescer cinco e seis vezes. Foram décadas de vitórias sucessivas, aqui e ali interrompidas, mas em última instância retomadas. Além destes, uma centena de outros países, mesmo sem o ser, reclamou-se da democracia. As Nações Unidas reconheceram toda a gente e a todos concederam estatuto e direitos. Os proprietários de matérias-primas, sobretudo petróleo, chegaram em poucas décadas aos conselhos de administração do mundo inteiro. Árabes, asiáticos, africanos e latino-americanos, antes considerados gente de segunda, depressa chegaram aos paraísos do poder.
Tudo isso mudou! Desde finais do século XX, as transferências de poder e fortuna tiveram o sentido contrário. As crises financeiras perturbaram aquela nova configuração do mundo. Se, globalmente, as desigualdades diminuíram, dentro de cada país, recomeçaram a crescer. As diferenças de rendimento entre os Estados Unidos e a China ou a Índia são hoje menores. Mas, dentro de cada país da Europa, as desigualdades são maiores. O Estado -providência começou a ter problemas de solidez. Muitos dos que, há meio século, eram considerados como pertencendo ao mundo dos danados e dos explorados aparecem agora, ao lado dos poderosos, com petróleo, armas e rendimentos obscuros. As sucessivas crises de petróleo, de finanças, de guerras locais e regionais, assim como os comportamentos dos grandes grupos económicos, têm produzido resultados quase sempre no mesmo sentido: transferência de poderes, rendimentos e recursos para os antigos vencidos. Essas transferências beneficiam o capital, os proprietários, os Estados desenvolvidos, as classes ricas, os partidos de direita e centro-direita, os gestores, as grandes empresas e conglomerados, os grupos financeiros, a banca… É o que está a acontecer!
As grandes transferências em curso seguem caminhos visíveis. Dos países pobres para os ricos. Dos devedores para os credores. Das classes trabalhadoras e médias para as classes altas. Dos consumidores e dos produtores para a banca. Dos produtores para a distribuição. Da economia para as finanças. Do Sul para o Norte. Até o saber e a competência correm para os países líderes. Ao mesmo tempo, o emprego sai dos países desenvolvidos para os países de mão-de-obra barata.
E Portugal? É do Sul. É devedor. Está endividado. Tem pouca indústria. Não tem petróleo. Tem um sistema bancário feito em fanicos. Uma população envelhecida. Um enorme caudal de emigração. Uma cavada desigualdade social. Uma direita que ora pensa que é liberal, ora julga que é social-democrata. Um partido socialista que deixou de saber o que é. Um partido comunista que vem directamente da idade do gelo. Um sistema político de guerra aberta entre o governo e o presidente. Uma elite económica fraca. Uma elite política medíocre. Não se recomenda!
DN, 27 de Dezembro de 2015
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