Por Ramalho Ortigão
VEJA-SE como em cada legislatura se propõe e se discute uma das poucas questões graves de que o parlamento ainda se ocupa. Referimo-nos à coisa a que, no calão oficial em que tem degenerado a língua pátria, se chama — a questão da fazenda.
Reunidas as câmaras e aberto perante elas o orçamento do Estado, começa-se invariavelmente por constatar, num trémulo elegíaco de sinfonia fúnebre, que continua a existir o déficit. Cada um dos três governos [ou, daqui em diante, 'partidos'?] a quem a coroa [ou, daqui em diante, o P.R.?] alternadamente adjudica a mamadeira do sistema encarrega-se de explicar aos taquígrafos essa ocorrência — aliás desagradável, cumpre dizê-lo — mas de que ele, governo em exercício, não tem a culpa. A responsabilidade cabe ao governo transacto, bem conhecido pelos seus esbanjamentos e pela sua incúria.
Para cada um desses três governos sucessivamente encarregados de trazerem o déficit ao regaço da representação nacional, o governo que imediatamente o precedeu nesse mesmo encargo é o último dos imbecis.
Tal é o conceito formidável em que cada um dos referidos três governos tem os outros dois!
A coroa pela sua parte — e é este o mais augusto do todos os seus privilégios — é sucessivamente da opinião de todos os três ministérios; e depois de haver retirado, com sincero nojo, a sua confiança aos imbecis do grupo n.º 1, n.º 2 e n.º 3, a coroa torna a restituir a citada confiança, com uma efusão de júbilo tão sincero como o nojo anterior, a cada um dos grupos de imbecis já referidos mas colocados cronologicamente em sentido inverso daquele em que estavam, ou sejam, por sua ordem, os imbecis n.º 3, n.º 2 e n.º 1.
Trocadas as descomposturas preliminares sobre a questão da fazenda, decide-se que é indispensável, ainda mais uma vez, recorrer ao crédito, e faz-se um novo empréstimo. No ano seguinte averigua-se por cálculos cheios de engenho aritmético que para pagar os encargos do empréstimo do ano anterior não há outro remédio senão recorrer ainda mais uma vez ao país, e cria-se um novo imposto.
Fazem-se empréstimos para suprir o imposto, criam-se impostos para pagar os juros dos empréstimos, tornam-se a fazer empréstimos para atalhar os desvios do imposto para o pagamento dos juros, e neste interessante círculo vicioso, mas ingénuo, o déficit — por uma estranha birra, admissível num ser teimoso, mas inexplicável num mero saldo negativo, em uma não existência, — aumenta sempre através das contribuições intermitentes com que se destinam a extingui-lo já o empréstimo contraído, já o imposto cobrado.
Assim como os alforges dos antigos pobres das feiras e das extintas ordens mendicantes, o déficit tem dois sacos, um para diante outro para trás, ambos destinados a receber o vácuo. Num dos sacos mete-se a dívida flutuante, no outro mete-se a dívida consolidada. De quando em quando há um relâmpago de júbilo, porque parece por um momento que o alforge do déficit está vazio, isto é, que está sem vácuo dentro: é a dívida, que se achava em estado de flutuação no saco da frente, que passou no estado de consolidação para o saco de trás.
A alegria fugaz mas intensa que provém da ilusão desta gigajoga vale o dinheiro que custa, mas custa sempre alguma coisa, porque de todas as vezes que eles mexem na dívida, seja para o que for, mesmo para a mudar de saco, ela cresce.
Pela parte que lhe respeita o país espera. O quê? O momento em que pela boa razão de não haver mais coisa que se colecte, porque estará colectado tudo, deixe de haver quem empreste por não haver mais quem pague.
No entanto o problema de aumentar a riqueza — único meio de prover aos encargos — é considerado como absolutamente estranho à questão da fazenda. E todavia nem toda a gente ignora que a riqueza não aumenta senão pelo desenvolvimento progressivo do trabalho e que este se acha ligado aos progressos da indústria. (...)
«As Farpas» (Vol. 6) - Junho de 1882
Etiquetas: autor convidado (a título póstumo...), R.O.