Agora já não restam dúvidas: o modelo que a RTP ofereceu a Marcelo Rebelo de Sousa para as suas crónicas dominicais, não serve.
Sou, desde sempre, fidelíssimo beneficiário das charlas do Professor, mesmo quando acontece que delas discordo ou acho menos fulgurantes. Todos temos as nossas marcas distintivas e os nossos dias piores. Mas este Marcelo Rebelo de Sousa, agora na madureza aprazível que só a idade confere, oferece-me labor de preparação nos assuntos que trata, perspicácia servida com elegância, a clareza e a simplicidade da gente culta e um poder de comunicação que tem tanto de dom como de “métier”. Devo-lhe muitas horas de autêntico prazer e proveito. Estou-lhe grato por isso.
Eis por que, regressado de umas férias bem longe, não falhei o comentário de domingo passado na RTP, também na esperança de ver corrigidos alguns infaustos erros da estreia. Desiludi-me.
O modelo que a RTP concebeu para acolher o prof. Marcelo Rebelo de Sousa tem equívocos, tanto mais gravosos quanto já passou tempo suficiente para a sua emenda.
Começando pelo que está bem: a clara separação entre os comentários e o telejornal, que termina formalmente antes das “Escolhas”, o que não sucedia na TVI. Aplaudo também (com as reservas de que falarei) a definição de uma duração para os comentários, não os deixando alongar-se para além do razoável, como algumas vezes sucedeu na TVI (onde aconteceram mesmo “autorizações” de prolongamento, anunciadas sorridentemente pelos apresentadores). E muito bem o “décor”, moderno e austero, em tudo contrastante com a gritaria de feira que rodeia o telejornal, com o seu balãozinho faiscante pairando no estúdio.
E os equívocos? Desde logo, o formato de entrevista para o que não é uma entrevista. Por maiores que sejam hoje a permissividade e a confusão de géneros no vale-tudo de algumas televisões, uma notícia é uma notícia, uma crónica é uma crónica, uma entrevista é uma entrevista. Cada qual com as suas regras definidas. A entrevista pressupõe, entre outras características, um jornalista que coloca perguntas a um entrevistado, que as desconhece previamente e lhes responde. Não é o que se passa aqui, como já não se passava antes, na TVI. O prof. Marcelo Rebelo de Sousa está ali para falar do que quer, do que decidiu escolher, gerindo o tempo que ele próprio atribui a cada assunto. Ele é o dono do jogo. Preparou um discurso bem articulado, que não tolera interrupções sob pena de se confundir e perder. E é isso mesmo o que o espectador quer receber e espera receber. Ou seja, exactamente o oposto do que se passa numa entrevista, onde o jornalista é quem selecciona e hierarquiza as questões, ditando-lhes o ritmo, atalhando, contrapondo, aproveitando marés inesperadas, mudando rumos ou deixando navegar. Insisto, a entrevista vive da tensão do inesperado e do encanto da surpresa, que é sempre mútua, nunca nenhum dos interlocutores podendo prever o que virá do outro, por palavras, gestos ou silêncios, e aí reside a força e a verdade da entrevista.
Sabe-se que, nas “Escolhas”, os temas são previamente anunciados por Rebelo de Sousa à produção do programa, desde logo para a preparação das imagens que ilustram cada tema no pálido e escusado monitor encravado ao fundo da mesa. A própria Ana Sousa Dias disse, numa entrevista, que recebia do Professor informação atempada para poder preparar a conversa (que acaba por não existir…).
Mas se não é uma entrevista – e não é - então o que faz ali uma das boas jornalistas entrevistadoras que temos na televisão? No seu “Por Outro Lado”, Ana Sousa Dias fez a ruptura com uma tradição de agressividade e protagonismo do entrevistador perante o entrevistado, trabalhando a tranquilidade e o envolvimento, apagando-se sem nunca perder o comando das situações, manuseando os tempos em proveito das ideias do seu convidado. Que mau vento inspirou quem a seduziu para as “Escolhas” e a deixou ser seduzida para caminho tão excêntrico ao seu? No domingo passado foi confrangedor vê-la balbuciar meias frases, prontamente interrompidas por Rebelo de Sousa, tentar introduzir perguntas num discurso cujo vigor o não consentia, tornar-se presente a todo o custo, justificar-se por estar ali. Ana Sousa Dias não merece esse papel decorativo a que a RTP a remeteu e ela própria consentiu. Não é justo nem bom para ela.
Mas também não é bom para Marcelo Nuno Rebelo de Sousa. Homem de berço e sociedade, faz por disfarçar o incómodo que lhe causam as frustradas tentativas de intervenção da senhora que tem na frente. Não quer perder (e não perde) o fio à sua meada, mas fá-lo à custa de uma contrita renúncia aos seus princípios de boa educação e cavalheirismo. (Ó minha senhora, deixe-me seguir, não me interrompa!) E cá fora nota-se bem. Estava mais à vontade na TVI, onde os apresentadores, simpáticos e bons rapazes, cumpriam o papel de “vira folhas” das pautas dos solistas em concerto, sem ninguém se incomodar por isso. Com Ana Sousa Dias é diferente.
Enfim, a saudável mas nada lusitana rigidez de duração imposta às “Escolhas”. A presença de Marcelo tem tempo fixo ao minuto, nem um a mais. É bom porque a televisão castiga os que nela se extasiam e não sabem que o auditório português sai do canal de 3 em 3 minutos quando a mensagem enfada (nos Estados Unidos a fasquia é de minuto e meio e em França é de dois minutos e meio). Só que esta imposição, na e pela RTP, é simplesmente caricata. Ali onde os programas, tradicionalmente, não entram à hora certa porque os noticiários e os demais programas de informação podem durar o que durarem, esticados ao bel-prazer dos soberanos editores, ali não se poderia impor a um convidado de honra que se submetesse a ditames que mais ninguém pratica na informação. Não pode Marcelo Rebelo de Sousa subverter a “grelha” com a robustez de uma dissertação contagiante e inteligente, mas podem os editores dos telejornais aboborar a antena com intermináveis depoimentos de treinadores e futebolistas, de vítimas de acidentes na estrada e outras inutilidades semelhantes.
Disciplinado, Rebelo de Sousa faz por cumprir o seu tempo. Deram uma pista de cem metros a um campeão de maratona e ele aceitou-a, o que é mais um equívoco deste modelo. O resultado é um discorrer ofegante, crispado, contra-relógio, sem o luxo das pausas e silêncios eloquentes com que Marcelo tantas vezes enriquecia as suas melhores prestações na TVI. Ele sabe que pode fazer muito, e muito bem feito. Agora, das duas, uma: ou o maratonista encurta as pernas, submete a corrida à exiguidade do trilho e emagrece o repertório dos temas para os tratar com desafogo, ou insiste em carregar a Betesga para o Rossio e continuaremos, nós todos, a chegar ao final de cada programa tão exaustos como o Professor.
Uma nota final, ao jeito das suas:
Ao tratar a sucessão papal, Marcelo socorreu-se da sua cultura canónica, do seu conhecimento da História do Vaticano e da sensibilidade própria de um homem político que também é um católico convicto e declarado. Mas preferiu ser contido. Estou em crer que só por isso não contemplou a hipótese de um papa norte-americano. Exactamente: Um homem que venha assegurar a ordem do novo império no coração de poder mundial que é a Santa Sé, como já acontece no coração de poder militar que é a OTAN e no coração de poder financeiro que é o Banco Mundial. Uma reparação pelo incauto alinhamento de João Paulo II com o “Eixo do Mal” quando condenou a invasão do Iraque. (“Either you are with us, or you are against us”, sentenciara o imperador.) Uma vitória contra todas as evidências e todas as lógicas da velha Europa e da Ásia nascente. Ou ainda, para acolher a convicção dos crentes como Marcelo Rebelo de Sousa, a prova divina de que o Espírito Santo, pairando sobre o Conclave… está finalmente com George W. Bush!
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Crónica para «A CAPITAL» de 08 Abril 2005
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