Por António Barreto
Com a chegada dos dias santos de Setembro
a Novembro, começam as comemorações. Na Praça Vermelha, em Moscovo, com pouco
lustro e ainda menos entusiasmo. Na Praça Kim il Sung, em Pyonyang, com aprumo
e disciplina. Na Praça da Revolução, em Habana, com rum e saudades de Fidel. Na
Quinta da Atalaia, na Festa do “Avante”, com música e bifanas. E pouco mais. A
Grande Revolução Russa está à beira de desaparecer das agendas do presente. O
Comunismo, seu principal herdeiro, deixou rastos de dor, nunca se saberá se
mais ou menos do que o nazismo.
O século XX ficará talvez na
história como o mais sangrento. Duas guerras mundiais, uma dúzia de guerras
coloniais, dezenas de guerras regionais, ainda mais guerras civis e algumas centenas
de milhões de mortos por violência política. A técnica de extermínio foi elevada
a cumes nunca vistos, no Goulag soviético, nos campos nazis e na revolução
cultural chinesa, sem falar nas execuções sistemáticas do Ruanda e do Camboja, entre
muitas outras. Foi neste século que se generalizou a tortura e se inaugurou a guerra
biológica e química, assim como a explosão de bombas atómicas. Foi este o
século em que os alvos deixaram de ser essencialmente militares e passaram a
ser civis. De Londres a Estalinegrado e Dresden e de Pnom Pen a Alepo a Mossul,
a geografia do horror de massas deixa poucas esperanças e nenhumas dúvidas.
Também é verdade que foi neste
século que uma centena e meia de países adquiriram a sua independência, que o
capitalismo dominante se comprometeu com a democracia, que os direitos do homem
fizeram caminho, que o racismo como sistema recuou e que o desenvolvimento
científico, económico e social mais progrediu. Sim. Neste balanço do século, o
melhor vai para a ciência, a democracia e talvez a cultura. Mas o horror foi
muito e nunca visto antes.
O pior, pela dimensão, pela
violência, pelo número de vítimas e pela duração, vai para o comunismo. Ou é
partilhado com o nazismo. É seguramente um dos mistérios do século, ou antes,
um dos problemas difíceis de resolver: por que razão ainda há comemorações? Por
que motivos ainda há quem se intitule orgulhosamente comunista? O que faz com
que o antifascista seja um herói e o anticomunista um selvagem? Como é possível
que, ainda hoje, universidades, escritores, políticos, intelectuais,
sindicalistas e trabalhadores aceitem que o comunismo tenha sido um avanço na
história da humanidade?
A guerra civil, a execução de
aristocratas e “russos brancos”, o assassinato de rivais, a eliminação de democratas,
os massacres de milhões de camponeses, de judeus, de cossacos e de tártaros, o
Goulag contra toda a gente, a perseguição de “cosmopolitas”, intelectuais e
liberais, a censura, os trabalhos forçados, a fome programada e a destruição
espiritual e física de todos os que não se submeteram são os pergaminhos de um
dos mais tenebrosos sistemas políticos que a história conheceu. Mas os idiotas
úteis continuam a dizer que o comunismo tinha desculpa, porque era em nome do
povo! Que não foi assim tão mau, porque era contra o capitalismo. Que cumpriu a
sua função, porque desenvolveu a Rússia!
As sociedades democráticas conseguiram
compor com o capitalismo, que, com o tempo, se foi separando da ditadura. O que
nunca aconteceu com o comunismo. Este e a ditadura associaram-se sempre, sem
excepção. O convívio do comunismo com a democracia nunca aconteceu. Nem sequer
na China, onde o comunismo conseguiu compor com o capitalismo, mas não com a
democracia.
O fim do comunismo impressiona
pela sua fragilidade (François Furet), pela rapidez com que desapareceu, pela
maneira como ninguém veio ao seu socorro. O comunismo dependeu do regime
soviético. Acabado este, acabou aquele. O que sobra hoje é um pequeno conjunto
de caricaturas: a Coreia do Norte, Cuba e o PCP…
O que os exércitos não
conquistaram, a Rússia, foi obtido pelo capitalismo. O que o nazismo não
conseguiu, derrotar o comunismo e a União Soviética, foi alcançado pela
liberdade e a democracia. É esse o aniversário a comemorar. Por muitos anos!
DN, 13 de Agosto de
2017
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