30.7.19

Colaboração no "Correio de Lagos" de Julho de 2019 - 4

Quando, há uns anos, divulgámos fotos da “nossa” Magirus, escreveu-nos um leitor, a residir na Alemanha, manifestando perplexidade pelo facto de esta verdadeira preciosidade (uma belíssima “Drehleiter DL 25”) estar exposta ao sol, à chuva, ao vento, ao ar do mar, quando não, mesmo, ao vandalismo, acompanhando o texto com fotos de outras, devidamente preservadas, «que só saem à rua para exposições, desfiles e em dias de festa». Entretanto, os anos foram-se passando, e a degradação da “nossa” autoescada aumentou, fazendo-nos pensar que, se o problema é a falta de dinheiro para a recuperar, certamente os lacobrigenses poderão fazer alguma coisa — a avaliar pela estima que têm pela sua corporação de bombeiros e o carinho que sempre manifestam quando se fala deste verdadeiro ‘ex-libris’ da Cidade.

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29.7.19

PERGUNTA DE ALGIBEIRA:

Há aqui qualquer coisa que não está bem. O que é?

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28.7.19

Grande Angular - Descentralização, uma reforma perdida

Por António Barreto
 Embora tenha sido apresentada quase em fim de legislatura, a descentralização deveria ser uma grande causa e não menor realização deste governo. Mas as coisas não começaram bem. Era tarde de mais. Os outros partidos da aliança de esquerdas não estavam ao corrente e queriam mais. O maior partido da oposição, o PSD, também não estava muito pelos ajustes. A reforma ficou logo marcada pela intenção escondida de regionalização. Os trabalhos preparatórios continuam, uns já conhecidos, outros em curso e com entrega adiada. O que até agora mais merece atenção é o facto de o governo, António Costa e Eduardo Cabrita terem alterado a sua estratégia: deixou de ser brutal e para ser gradual. Passou sobretudo, nas suas cabeças, a ser furtiva, como, há muitas décadas, queriam Robert Schuman e Jean Monnet para a Comunidade Europeia.
A regionalização fica, pois, adiada para a próxima legislatura. Logo se verá. A Constituição impõe um referendo, o que os seus defensores receiam. O Presidente Marcelo era, em seu tempo, contra. Rui Rio já foi contra e depois a favor. Os pequenos partidos da esquerda são a favor, o Bloco mais ou menos, o PCP muito. O PS já foi contra e defensor, agora é moderadamente a favor. No seu programa eleitoral, os socialistas querem descentralizar, mas evitam o termo regionalizar. Na verdade, querem exibir uma virtude, mas não pagar o preço.
Um estudo da cartografia portuguesa dos últimos dois séculos é revelador. As divisões em distritos ou províncias foram as mais variadas. Nos escritórios, fizeram-se e desfizeram-se entidades regionais a bel-prazer. Com esquadro, como em tempos, para desenhar impérios em África, se fazia em Berlim ou Paris. A região do Douro, por exemplo, já teve uma dúzia de configurações diferentes, já incluiu o vale do rio, a bacia hidrográfica, o Minho, Trás-os-Montes, parte da Beira Alta, o Douro Litoral, só o Alto Douro, com e sem Trás-os-Montes, até a Beira Litoral esteve incluída! A história cartográfica define bem o espírito que presidiu aos recortes: a estratégia política.
E é curioso notar que praticamente todos os partidos já defenderam a descentralização, mas, no Governo ou no Parlamento, pouco fizeram. Muito do que os próprios partidos reclamam, assim como os autarcas, os agentes económicos e os cidadãos, já poderia ter sido concretizado há décadas, caso houvesse empenho na causa. Fica-se com a impressão de que esta promessa é uma profissão de fé, cujo cumprimento pode ser eternamente adiado.
No nosso país centralizado e “macrocéfalo”, como se dizia antigamente, a descentralização é provavelmente útil, mas teria de ser feita primordialmente para as câmaras municipais e as freguesias, entidades com história e identidade. E com funções reais nas comunidades. Também deveria ser feita em benefício das instituições públicas como as escolas, as universidades, os hospitais, os centros de saúde e tantas outras repartições.
A vantagem da descentralização é que não implica transferência de poderes para entidades híbridas, criadas artificialmente, com eleitos, representantes e nomeados. Com excepção dos Açores e da Madeira, em Portugal não há regiões. História, tradição, identidade e reconhecimento: sem esses requisitos, não há regiões. O que é uma região Centro, como é proposto? E uma região Norte?
As tendências actuais de reforma administrativa visam reforçar as regiões e a União Europeia, esbatendo os poderes dos governos nacionais e reduzindo as competências das autarquias locais. São tendências anti-democráticas. A democracia está a ser apertada por uma tenaz, cujas lâminas são a União e a Região. Quase todos os dispositivos de financiamento pela União Europeia estão orientados para regiões. O mercado da solidariedade regional é hoje um dos mais florescentes. A regionalização compra-se a peso de ouro.
Não está demonstrado que a regionalização seja um instrumento de desenvolvimento. Os Açores e a Madeira foram casos excepcionais e não replicáveis. Nunca foi provado que a regionalização seja meio de desenvolvimento do interior e de fixação da população. O mapa das regiões pobres na Europa, com raríssimas excepções, é hoje o mesmo de há décadas. Se a regionalização fosse um meio privilegiado de desenvolvimento, não se compreende que a Região Norte junte o Douro litoral desenvolvido a Trás-os-Montes e Alto Douro subdesenvolvido! Nem se explica a existência de uma Região Centro, com a junção da Beira Litoral à Beira Alta ou Beira Interior.Em Portugal não há outros Açores nem mais Madeiras.
Está por provar que as autonomias sejam trunfos para reforçar a coesão e lutar contra a desigualdade. As regiões mais ricas, muitas vezes, desejam a autonomia, justamente para não ter de pagar o ónus da solidariedade. Existe um regionalismo dos ricos. Não é verdade que a regionalização seja uma reivindicação das regiões mais desfavorecidas.
A regionalização feita de cima para baixo é errada. Não há hoje movimento para a regionalização. Nem por parte de populações, nem com origem em instituições ou empresas. Ainda há pressão pela descentralização, mas muito menos pela regionalização, quase só defendida pelos partidos, geralmente em benefício próprio.
Recentemente, graças ao tema da Protecção civil, percebeu-se que um traço marcante do comportamento governamental é o da desresponsabilização. Se algo corre mal, a responsabilidade é dos outros. A regionalização é o mais seguro caminho para desresponsabilizar governantes.
regionalização não é “neutra” em procedimentos, orçamentos e funcionários. Não se sabe bem quanto, nem como, mas é seguro que a regionalização acrescenta os poderes dos órgãos intermédios, assim como aumenta os procedimentos, os orçamentos e os funcionários. A regionalização não parece estimular o aumento de cuidadores, médicos, enfermeiros, professores e educadores, mas amplia certamente o número de burocratas e administradores.
O Estado nacional democrático é responsável por alguns dos valores mais importantes da vida em comum: autonomia, segurança, justiça, democracia e liberdades individuais. A garantia e a âncora de qualquer destes valores dependem do Estado nacional, não da União nem das regiões.
O regresso dos nacionalismos e suas ameaças, de que tanto se fala e que pode ser real, é tão perigoso quanto o desaparecimento das entidades com identidade e geografia, como os Estados nacionais e as câmaras municipais.
Público, 28.7.2019

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27.7.19

BOAS INTENÇÕES...

«BOAS INTENÇÕES COM MÁ INFORMAÇÃO É A RECEITA CERTA PARA O DESASTRE»
(Michael Crichton).
O que se vê em 1.º plano são duas TORRES DE REFRIGERAÇÃO que estão a emitir vapor de água para a atmosfera — ou seja: ÁGUA PURA, que o autor da notícia nos apresenta como poluição.
Nestas centrais térmicas, a poluição, que de facto existe (óxidos de enxofre, de azoto, fuligem, cinzas, etc), é emitida pelas chaminés cilíndricas, que a foto NÃO mostra.

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PASSÁMOS À FRENTE OU PASSÁMOS AO LADO?

«Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante»
G. Orwell

1 - Elogiei a intervenção no 10 de Junho do jornalista e cronista João Miguel Tavares, cujo estilo irreverente e frontal acho útil e aprecio. Critico hoje um seu artigo recente no Público em que defende uma tese que redutora, universal e intemporal como se apresenta é insustentável, exemplo incluído: A da SUPERIORIDADE DE UMAS CULTURAS” (*) SOBRE AS OUTRAS, concretamente a superioridade global do que designa “cultura ocidental” sobre as outras (sem precisões de época, de aspectos, de duração...). É uma visão pouco informada, simplista. Nessa sua crónica JMT confirma a asserção popular de que o sapateiro não deve ir além da chinela. Como de facto foi. Cronista arguto e corajoso, controverso também, o que é bom, JMT não revela na especialidade a formação necessária e suficiente para se aventurar, com rigor, a tais domínios, e sobretudo para se atrever à generalização ingénua que fez. É natural, aliás, pois não se pode saber tudo de tudo. Não se devia ter atrevido a tanto, portanto. Por hoje, apenas duas ou três interrogações... se JMT se dignar pensar nelas. Culturas superiores... globalmente? Sempre? À luz de que critérios? Haverá um critério único que permita uma avaliação global, intemporal, extensiva... definitiva? Que critérios, repito? Por exemplo: uma cultura em que os homens e as religiões se matem umas às outras é superior a outra em que as religiões convivam pacificamente? Uma cultura cheia de artefactos tecnológicos em que uma grande parte da população se consuma numa velocidade existencialmente incompreensível, logo, porventura, injustificada? Se gaste no stress, na angústia, no medo do futuro, na dependência de antidepressivos e drogas? Será superior a outra em que a vida é vivida dominantemente de modo oposto, os conflitos e as depressões resolvidas sem perda? Uma cultura que quis converter e dominar as outras culturas, que permitiu que se afirmassem e dominassem os maiores monstros da História, que gerou e permitiu a emergência das ideologias mais assassinas da História, que teve meios para atear e ateou as chamas que incendiaram o mundo todo como nunca tinha acontecido, é superior a uma cultura não invasiva, não dominadora, não escravizadora das outras culturas? Uma cultura que perdure durante milhares de anos é inferior a outra que inundada de realizações tecnológicas se auto-destrua e conduza o mundo á auto destruição? Uma cultura regulada pela ética é inferior a uma cultura regulada pela polícia? 
Reparem que não estou a concluir nada, não estou a concluir sobre generalizações não fundamentadas, a dar como absoluto nada que evidentemente o não é, sem referência de critérios de apreciação e juízo. Se o fizesse isso seria uma manifestação ignorante elementar igual à de JMT. As interrogações que coloco pretendem apenas sugerir que a tese de JMT, tal como é apresentada e com a radicalidade como é aplicada, não faz qualquer sentido. Para não falar, claro, no facto de JMT demonstrar ignorar a inter-acção entre culturas, a permanente reelaboração de todas elas (mesmo as mais fechadas) e, fait divers en passage, o facto da cultura a que chama europeia ser na verdade, nas suas origens e desenvolvimentos, eurasiática. O que ela bebeu na civilização do Extremo-Oriente, particularmente! Tal como o Extremo-Oriente veio “cá” importar agora. Selectivamente... Leia, pelo menos, o livro de Ernest Jones, O MILAGRE EUROPEU, a obra de referência-base citada por todos os que depois dele escreveram sobre estes temas. (Da Gradiva, claro... uma obra que me foi ainda sugerida pelo melhor leitor, A. Sedas Nunes). Coimo é natural, João Miguel Tavares experimenta dificuldades quando o tema e a análise são mais finos. Impõe-se-lhe, por isso, self control. 
2. “Onde surge o perigo nasce salvação” (**). A Europa terá chegado ao liberalismo, aos valores liberais, adoptado a democracia liberal, para se defender... de si própria! E durante muito tempo esses valores foram só para consumo interno, pois continuou a matar, a roubar, a condicionar os outros como fizera antes. É por isso que os dirigentes chineses ficam sempre muito irritados quando os Ingleses lhes falam em direitos humanos. É bem revelador de uma visão diferente, essa sim superior, do mundo e da História o facto de terem superado (sem esquecer como não deve ser esquecido), por exemplo, o horror da imposição cruel do consumo do ópio pela Inglaterra. É sempre oportuno lembrar que a formalização dos Direitos Humanos na liberal Declaração Universal do Direitos Humanos é para todos! (***) 
3. A ciência e a tecnologia mudaram o mundo e elevaram a qualidade da vida humana até níveis inimagináveis, sobretudo nos prodigiosos últimos 100 anos. E convém notar que as dificuldades e ameaças criadas pela tecnologia só podem ser resolvidas, serão resolvidas, com mais ciência e melhor tecnologia. Mas sem a reflexão ética e moral a ciência e a tecnologia conduzirão o homem e o mundo à autodestruição. Por isso Carl Sagan insistiu tanto no imperativo dessa reflexão ética e moral. E ainda não se estava no ponto a que agora se chegou... Receio o futuro que se prefigura se não forem vencidos os demónios que voltam a infestar o mundo. 
-
 * Uso a expressão “cultura”, mas deveria ser usado com mais precisão termo “civilização”, “civilizações”, estas com um mosaico inumerável de culturas. 
 ** A pensar sobretudo nas escolas e nos pais, a Gradiva editou recentemente um livrinho com a história da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Venderam-se 85 exemplares! Culturas superiores, JMT, maldita hubris, que cega o homem. 
 *** Tradução livre de um verso de um poema de Holderlin.

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Colaboração no "Correio de Lagos" de Julho de 2019 - 3

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26.7.19

007 vai ser uma menina de pele escura

Por Joaquim Letria
O James Bond do próximo filme vai ser uma mulher negra! Adoro o politicamente correcto e mais politicamente correcto do que isto não há: mulher para satisfazer as diferenças de géneros e negra para assegurarem a não discriminação das minorias étnicas. A Money Penny, antiga secretária de M, o patrão dos serviços secretos onde Bond trabalha, ficaria bem (digo eu) se passasse a ser representado por um travesti bissexual.
Imagino que Ian Fleming, o autor desta personagem e das suas empolgantes histórias, deve estar às voltas no túmulo, arrependido de não ter ficado em Portugal quando por cá passou a espiar o III Reich, nos anos 40 do século passado, a jogar roleta e baccarat no velho Casino do Estoril.
A actriz britânica Lashana Lynch vai substituir Daniel Craig no próximo filme e ficará com a licença para matar e o código de 007. Craig será chamado a Londres interrompendo a reforma na Jamaica ainda como James Bond e 007, para uma última missão, mas perderá o papel e o título.
Que saudades vou ter do Sean Connery, do Roger Moore e do Daniel Craig, figuras de respeito naquele papel de puro entretenimento, longe da inteligência e do talento das obras do John Le Carré, aos calcanhares de quem Fleming nunca chegou.
Ao fim e ao cabo, esta revelação não é uma surpresa. Vivemos na era do politicamente correcto que é encarado como uma nova religião. Veremos se o casting do 26º filme de Bond irá acender disputas e divisões não só no meio internacional do “show business” mas também na própria comunicação social.
Para os apreciadores, aquele estilo de agente ao serviço de Sua Majestade, no seu Aston Martin, com os seus martinis, stir not shaken, e a Beretta certeira que era a cereja no topo do bolo da parafernália do engenhoso armamento que Q lhe preparava, era um papel que qualquer homem de anteriores gerações não se importava de representar na vida real. Vê-lo entregue a uma menina de pele escura vai para muitos ser difícil de assimilar.  
Publicado no Minho Digital

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25.7.19

Professores raianos da Beira Alta – Crónica

Por C. Barroco Esperança

(Dedicada ao velho condiscípulo, grande amigo e excelente professor, Alberto Vilhena)

A ditadura pagava mal aos funcionários do Estado, e também exigia pouco ao ensino público. Carneiro Pacheco, ministro que transformou o Ministério da Instrução Pública em Ministério da Educação Nacional, dizia, e pensava, que era função da escola ensinar a ler, escrever e contar, saberes mais avançados corrompiam a alma de gente simples, e eram desnecessários. Salazar, ele próprio, respondeu a Carvalhão Duarte, presidente da União dos Professores Primários, antes da dissolução das associações e da proibição dos sindicatos, que sabia que os professores não ganhavam de acordo com a categoria, mas, não podendo aumentá-los, faria com que a categoria ficasse de acordo com a remuneração. Depois do cinismo, veio a extinção das Escolas Normais.
Muitos professores dedicavam-se à agricultura e, em especial, à vinicultura, que dava de comer a um milhão de portugueses, dizia o ditador, e aliviava a sede dos próprios.
Já no 3.º quartel do século XX, o Zé André, largou o curso de Direito para se dedicar ao magistério primário e ao vinho, voltando à terra natal. Entrava na escola com o garrafão atestado e saía com ele vazio. Certo dia, um inspetor, de visita à sua escola, em Vale de Espinho, concelho de Sabugal, aludiu ao garrafão de 5 litros que jazia sob a secretária, e o Zé André desculpou-se por não lhe ter oferecido uns goles, facilmente, se necessário, mandaria um aluno revezá-lo.
A esse colega perdi-o de vista no início da década de sessenta e por lá deve ter morrido com o fígado desfeito ou conservado em álcool.
Hoje lembrei-me de professores do concelho de Almeida que nasceram no século XIX e ainda conheci.
O professor Rodrigues, um velho republicano, era o único a censurar a saudação fascista dos alunos quando entrava nas salas de colegas, depois de se levantarem, a obediência aprendia-se cedo e era usual, com a expressão que o celebrizou, “baixa a pata, burro!”, com laivos pedagógicos impróprios na forma, mas certeiros na substância. Duas netas suas foram minhas colegas na Escola do Magistério da Guarda, e dele guardo apenas o respeito pela coragem de quem tornava audível o repúdio do fascismo.
Os três professores que ora evoco, Abel, Amândio e Peixoto, eram grandes amigos, do peito e do copo. Reuniam-se nos exames da 4.ª classe (2.º grau), a cujos júris presidiam, e, depois de afixadas as pautas, eram os copos que lhes preenchiam as tardes e algumas noites inteiras. O professor Peixoto vinha da Miuzela do Coa e o Amândio da Junça, ficando hospedados na única pensão da vila. O professor Abel dava aulas em Almeida, onde tinha casa junto à escola e amanhava uns terrenos fora das muralhas.
Naquelas duas semanas de exames da 4.ª classe a sede parecia aumentar e o jardim e os seus bancos eram as testemunhas das noites de convívio e da robustez dos estômagos, à prova de azia. Depois, era a despedida e o regresso do professor Amândio à Junça, perto da sede do concelho, e do professor Peixoto à Miuzela, onde matavam a sede com outros amigos ou na pacatez do lar, sem desmerecerem o respeito que as populações lhes tributavam.
O professor Abel lá voltava à faina agrícola, cheio de vigor, de tal modo que uma tarde, ainda lavrava uma courela, com o arado puxado por um macho e um burro, com o sol a extinguir-se no horizonte, quando o burro deu sinais de exaustão. Faltavam dois ou três regos para arrotear a terra quando substituiu o burro na canga ordenando ao criado “toca lá o macho, que eu não preciso”, e assim acabou a faina do dia que se extinguia.
Um dia o pai de um aluno foi perguntar-lhe como ia a aprendizagem do filho, não que o interessasse o aproveitamento escolar, pela falta que lhe fazia na lavoura. Ao contrário das meninas, apenas obrigadas à 3.ª classe, os rapazes tinham de frequentar a escola até fazerem o exame da 4.ª ou atingirem os 14 anos de idade.
O professor Abel disse-lhe que, nesse ano, não contasse que lhe propusesse o filho a exame, é muito fraquinho, não abrange, faz-me muita diferença senhor professor Abel, precisa de mais um ano e, descoroçoado, o pai lá foi, de chapéu na mão, a deitar contas à vida e a pensar na falta que lhe fazia o rapaz, mais um ano, a pensar como acudir aos trabalhos agrícolas e à guarda do gado.
Pouco tempo depois, antes da semeadura das batatas, lembrou-se de oferecer dois carros de estrume ao professor. Disse-lhe que tinha muito, os animais eram um sorvedouro de palha para as camas, mas uma fábrica de fazer estrume, ia oferecer-lhe duas carradas, onde queria que as descarregasse.
Alegrou-se o professor e logo lhe indicou duas propriedades onde as queria, desejo que no dia seguinte foi satisfeito.
Umas semanas mais tarde voltou à escola a repetir a pergunta, como ia o filho, e…, sem terminar, o professor Abel logo lhe respondeu:

- Olha, abriu…!

Coimbra, julho de 2019.

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24.7.19

O INCÊNDIO DE MOSCOVO... e os nossos


QUANDO chega a “época dos fogos”, a conversa é sempre a mesma e inclui, invariavelmente: as alterações climáticas, o desordenamento florestal, os pirómanos, os “negócios do fogo”, a Protecção Civil, o SIRESP, os concursos para os meios aéreos, a actuação dos bombeiros, as mais diversas descoordenações e incompetências, os eucaliptos... — e tudo o mais que nós sabemos, incluindo as intermináveis reportagens das TV, pontuadas por intervenções de políticos que, entre uma e outra lágrima de crocodilo, nos garantem que “a culpa é do governo anterior”. Mas só raramente se diz o óbvio: tudo aquilo arde, porque não pode deixar de arder: as árvores estão lá, mas não os seus donos; o mato está lá, mas não quem o roce; já não há cabras, essas eficazes sapadoras; o alarme, quando é dado, é tardio, porque já não há quem o dê a tempo; os que acorrem em pessoa já são poucos e idosos — e por aí fora, porque o país, como sucede no mundo todo, deixou de ser “rural”: os poucos que ainda não morreram estão sem forças, e os outros há muito que debandaram dessas paragens. 
Trata-se de uma realidade que conheço bem — não como turista, mas como pessoa que, por motivos familiares e profissionais, passou décadas a percorrer o país de-lés-a-lés, residindo meses (e, por vezes, anos!) nos mais variados e remotos lugares do chamado “Portugal profundo” — e, infelizmente, parece-me óbvio que nada do que atrás referi vai ser revertido.

Vale a pena, por sinal, ver as semelhanças com o que Leon Tolstoi escreveu em “Guerra e Paz”, faz agora 150 anos, acerca do famoso incêndio de Moscovo, quando, em finais de 1812, Napoleão ocupou a cidade:

*
OS FRANCESES atribuem o incêndio de Moscovo ao patriotismo feroz de Rostoptchine, os russos à selvajaria dos franceses. Na realidade, as causas do incêndio de Moscovo não podem imputar-se concretamente a ninguém. Moscovo ardeu porque se encontrava colocada em tais condições que qualquer outra cidade construída em madeira devia arder de forma análoga, independentemente de poder ou não recorrer às suas cento e trinta bombas. Moscovo devia arder porque os habitantes partiam. Era tão inevitável como a inflamação dum monte de aparas sobre o qual, durante vários dias, caíam faúlhas. Uma cidade construída de madeira, na qual, mesmo quando ali se encontravam os proprietários e a polícia, se produziam todos os dias incêndios, não podia de maneira alguma deixar de arder quando já não havia habitantes e nela se alojavam os soldados, fumando cachimbo e fazendo fogueiras na praça do Senado com as cadeiras do palácio, para prepararem as suas refeições diárias

Em tempo ordinário basta que as tropas se alojem nas aldeias para que o número de incêndios aumente logo. Em que grau deviam, pois, aumentar as oportunidades de incêndio numa cidade construída de madeira, vazia, ocupada por um exército estrangeiro? O patriotismo feroz de Rostoptchine e a selvajaria dos franceses não entram aqui para nada. Moscovo ardeu por causa dos cachimbos, das cozinhas, das fogueiras, da falta de cuidado dos soldados habitantes mas não proprietários das casas. Mesmo se houve incendiários - o que é muito duvidoso, porque ninguém tinha motivo para incendiar, sempre era muito perigoso - não é possível pô-los em causa, porque, sem eles, teria sido a mesma coisa. Por lisonjeiro que seja para os franceses acusar a ferocidade de Rostoptchine e para os russos a barbaridade de Bonaparte, ou, mais tarde, pondo um facho heróico nas mãos do seu povo, não se pode deixar de ver que tal causa imediata de incêndio não podia existir, porque Moscovo devia arder, como deve arder toda a cidade, fábrica ou casa cujos amos partiram, e onde se introduzem, para lá viver, pessoas estrangeiras. Moscovo foi queimada pelos habitantes, é certo, mas por aqueles que partiram e não por aqueles que ali ficaram. Ocupada pelo inimigo, não permaneceu intacta como Berlim, Viena, etc., por isso que os seus habitantes não deram o pão, o sal e as chaves aos franceses, mas preferiram abandoná-la».
.
«Guerra e Paz» - Livro Terceiro, Cap. XXVI
Ed. Editorial Inquérito

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23.7.19

Colaboração no "Correio de Lagos" de Julho de 2019 - 2

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21.7.19

Grande Angular - A União vira o disco

Por António Barreto 
Começou a preparar-se o próximo governo da Europa. Nada é seguro, mas o início está aí. Vão ser necessárias semanas para completar a Comissão. Ofendido, o Parlamento tentará vingar-se. O mais provável é que não seja capaz de resolver o que alguns esperam dele e da Comissão. As tarefas importantes dependem dos Estados, não destes organismos vistosos e impotentes.
A escolha de von der Leyen para presidente da Comissão cumpre vários requisitos. É mulher. É alemã. Faz a ponte entre Este e Oeste e entre esquerda e direita. É protestante, depois de vários católicos. E garantiu uma manutenção barata do bloco central europeu.
Segue-se o arranjo macedónico da Comissão. A solução agora tentada desagradou às esquerdas, que acreditavam ser possível cozinhar um arranjo “à portuguesa”. Também desagradou aos seráficos europeus que esperam que a União se transforme numa instituição democrática. Merkel entrou vencida e saiu vencedora, apesar de fraca. Macron provou existir, sem mais. Costa começou como ganhador, acabou derrotado. Sánchez mais ou menos. Húngaros, Polacos e Italianos saíram felizes.
Como é sabido, os eleitores portugueses e europeus votaram com entusiasmo: tinham de escolher entre Weber, Timmermans,  Zahradil, Vestager, Cué e Keller, como se fossem seus conhecidos. E foram enganados, porque lhes saíram na rifa outros, combinados entre partidos, como deve ser. A solução adoptada não estava prevista na campanha eleitoral. Como antes.
Os descontentes não têm razão de queixa. Fez-se o que sempre se fez. Nem pior nem melhor. Representatividade? Transparência? Direitos do Parlamento europeu? Estamos a falar de ficção, não de realidade. Alguém pensa que os anteriores presidentes da União tiveram um vestígio de democracia? Esta senhora foi eleita como os anteriores, Juncker, Barroso, Santer, Delors e outros: os Estados, os poderes mais fortes e as economias mais robustas ditaram as soluções. Custa aliás imaginar que deveria ser de outro modo. Num continente como o europeu, com a sua história e a sua diversidade, não se vê como poderia funcionar a democracia tal como os querubins desejariam, com eleições directas e globais. Não existe uma democracia europeia, muito menos uma cidadania europeia.
Não foi possível virar a página, ainda bem. Pior ainda é se a União vira o disco e toca o mesmo. O que já não é possível. Depois do Brexit, dos gestos persecutórios dos governos italiano e húngaro e das ameaças do grupo de Visegrado, o que vem a seguir não se sabe se é igual ou é diferente. Mas pode ser mais um passo na direcção da implosão. De qualquer modo, a principal lição a retirar desta eleição é a de que as eleições europeias ou federais não são a solução para nenhum problema real da Europa ou da União. É aos Estados, aos governos e aos parlamentos nacionais que compete encontrar soluções.
A eleição da presidente resultou de discussões secretas, intrigas, relações de força e soluções de recurso. Como sempre! O facto de terem sido anunciados, previamente, nomes de candidatos nada muda. Na União, foi sempre assim: as soluções são negociadas e a força dos principais Estados é decisiva. A estrutura da União não é democrática, nunca foi. Resulta da democracia, mas não é democrática. Os que sonhavam com uma solução “portuguesa” para a União, um arremedo de negociações à esquerda, contra o PPE e contra a Alemanha, eventualmente contra a Itália, a Polónia e a Hungria, obrigando Macron, que não é de esquerda, a portar-se como se fosse, sonhavam com noites de Verão à beira mar.
As negociações para a distribuição dos despojos foram fenomenais. Falou-se de pessoas, negociaram-se pessoas. Falou-se de partidos, negociaram-se lugares. Discutiu-se distribuição, repartição e benefícios partidários. Nunca, que se saiba, se discutiu a Europa, as estruturas de decisão, a federação, a uniformidade, a imigração, os refugiados, as relações com a China ou os Estados Unidos. Não se debateu a defesa. Houve umas vagas alusões às questões de direitos humanos. E discutiram-se as longínquas mudanças climáticas. A Europa e a UE acabam de dar ao mundo um sinal de que não se libertarão tão cedo: este é um negócio de Estados!
A Europa e a União foram longe de mais. Furtivamente. Durante anos, foram pequenos passos, muitos pequenos passos, mas acabou por ser um enorme percurso, demasiado, como se vê. Não existe uma coisa chamada “cidadania europeia”. Existem cidadanias nacionais na Europa. E é assim que deve ser. A União não tem força suficiente para evitar ou tratar das forças centrífugas. Estas aumentam cada vez mais que se aumenta a integração.
A União não enveredou por uma via democrática pela simples razão que não podia nem devia. Felizmente que assim é. Outra coisa é pensar que a União está bem. Não está. Encontra-se em crise essencial. Os próximos anos podem facilmente ser a oportunidade para mais uma ou outra ruptura, um ou outro abandono. Os fanáticos, os aficionados e os crentes não reconhecem os seus próprios erros, acusam os inimigos da Europa, os fascistas, os racistas, os xenófobos, os “soberanistas” e os nacionalistas. Como sempre, cometem um dos mais velhos vícios da política e dos jogos: a culpa é dos outros. Contra os virtuosos, os outros são bandidos. Contra os democratas imaculados, os outros são nacionalistas. A culpa dos populismos, por exemplo, é dos fascistas, do capitalismo e dos racistas. A culpa do nacionalismo é do populismo. A culpa dos problemas de imigração é do populismo e do nacionalismo. Já se percebeu que a qualidade e o rigor dos debates que resultam destes pontos de partida estão abaixo de zero.
Onde nasce, o que faz o populismo? Os populistas, com certeza. Os seus interesses, lícitos ou não, com o objectivo primordial de destruir os sistemas de governo e afastar os partidos que os alimentam. Mas têm ajudas decisivas. A confusão entre União e democracia é uma delas. A incapacidade de olhar com realismo para as migrações é um sólido contributo para a xenofobia. O globalismo também. A permanente tentativa de liquidar as identidades nacionais e promover o federalismo é um dos principais factores de promoção do nacionalismo de direita ou de esquerda, sobretudo do primeiro. E vale a pena recordar um velho princípio: os nossos erros são alimento e força dos nossos inimigos. Mas os anjos europeus não acreditam nisso. Não vêem os seus erros.
Não há muitas dúvidas: está-se melhor na Europa do que fora. Mas é necessário ter presente que a Europa não protege, integra. Reforça, mas não legitima. Ajuda, mas não defende.

 Público, 21.7.2019 

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20.7.19

Colaboração no "Correio de Lagos" de Julho de 2019 - 1

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19.7.19

A Terra Mais Feliz do Mundo

Por Joaquim Letria
Eu gostaria de ser governado por gente que desejasse a nossa felicidade colectiva e respeitasse a nossa ânsia de afirmação patriótica, de paz e de bem estar as quais nos são roubadas ainda antes da adolescência.
No fundo, esta gente podia continuar a corromper, a desfalcar, a estragar e a desperdiçar, mas menos do que faz, e sem nos entristecer ou levar-nos a ir trabalhar para a terra dos outros para vivermos um pouco melhor do que podemos viver cá e sem vermos tanta pouca vergonha.
Agora falam muito em descentralização e na necessidade de a instituir no nosso país de modo a fazer crescer as máquinas dos partidos e arranjar benesses e sinecuras para aumentarem as receitas das suas famílias partidárias. Mas a pouca vergonha já está descentralizada, fácil de ser encontrada em muitas fatias do estado central e nos tentáculos das suas empresas públicas, bem como espalhada em muitas autarquias.
Olhando para o sistema financeiro, para os sectores mais importantes da democracia, podemos dizer que estamos entregues aos bichos. Poderão alguns bem pensantes dizer que isto é populismo. Não é. É apenas a verificação dos factos decorrentes da governação de 10 milhões de seres humanos na União Europeia, em plena Europa ocidental, muitos menos gente do que as populações de algumas cidades geridas por alcaides, mayors ou prefeitos que podemos encontrar em todos os continentes.
Mas deixemo-nos de geopolítica ou de considerações. E restrinjamo-nos a uma área pequena e nossa conhecida: a Galiza e o Alto Minho, para atentarmos nas diferenças essenciais. Lembremo-nos da escandaleira do prédio Coutinho, no modo de tratar idosos fragilizados e de deixar descobrir depois as trapalhadas com que se envolvem em ateliers de arquitectos. Uma vergonha que vem dos camaradas de há 20 anos e agora até tem a juntar ao coro uma ária na voz do ministro do ambiente, que não foi ainda capaz de consertar Pedrogão e Mação nem sequer deitar abaixo uma única barraca ilegal na praia da Fonte da Telha, mas que ameaça os velhos residentes do Coutinho, em Viana do Castelo.
Deixemos esta porcaria e passemos a fronteira em Caminha, tomemos o “ferry”, atravessemos para A Guarda e paremos em Oia. Naqueles 83 quilómetros, a autarca Cristina Correa criou a Vereação da Felicidade, juntou-lhe a Vizinhança, Cultura e Serviços Sociais e anunciou que Oia é a terra mais feliz do Mundo, como dizem os seus moradores, uns que deixaram Vigo  para gozarem esta felicidade à beira mar, outros que vêm de longe aterrar no Porto para irem passar temporadas felizes em Oia.
Em Oia, além do peixe mais fresco do planeta, há quem leia livros a doentes e a analfabetos, quem dê explicações gratuitas a jovens estudantes com dificuldades e quem crie actividades desportivas e culturais para diferentes idades. Como dizem alguns residentes, entre os quais o cidadão Naro que trocou Vigo por OIa, “não digam a ninguém que esta é a terra mais feliz do Mundo”. Também acho, não vá o diabo tecê-las…
Publicado no Minho Digital

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18.7.19

A deriva reacionária das Igrejas e a extrema direita_2

Por C. Barroco Esperança
A deriva reacionária da Europa tem na religião uma das suas fortes componentes. Não sendo a única, é especialmente relevante.
Em Itália, Salvini tem o apoio da maioria dos católicos praticantes, e dos bispos que se opõem ao Papa. Salvini, o mais poderoso político italiano e cada vez mais abertamente fascista, ordenou ontem a realização de um relatório sobre os acampamentos de ciganos no país para localizar aqueles que estão ilegais e “preparar um plano de desalojamento”, lamentando que talvez tenham de ficar os nascidos em Itália.
Na Rússia, o clero ortodoxo apoia o autoritarismo de Putin que, por sua vez, apoia os partidos populistas e de extrema-direita da UE, com quem tem afinidades ideológicas.
Na Polónia e Hungria, tal como na década de 30 do século passado, a Igreja católica, em surdo confronto com o Papa, é o sustentáculo e promotor dos líderes que desrespeitam os direitos humanos e fazem da democracia uma caricatura.
Aqui ao lado, em Espanha, depois de alguns anos de vergonha e relativo silêncio, nota-se a nostalgia clerical de Franco, indiferente às centenas de fuzilamentos do genocida e ao seu silêncio ou apoio deliberado, com o seu ativismo favorável à exaltação de Franco e contra a exumação do Vale dois Caídos.
Em relação à igualdade entre homens e mulheres, à autodeterminação sexual da mulher e à sua saúde reprodutora, bem como à falta de respeito pelas liberdades individuais, os bispos voltaram a ser a voz da reação, os guardiões da Falange e os ideólogos da moral que querem impor, indiferentes à dignidade individual e aos direitos humanos.
O arcebispo de Burgos, Fidel Herráez Vegas, em carta publicada nas páginas da Internet da diocese e do Opus Dei e no Diário de Burgos, pede às vítimas da violação, mulheres, claro, que resistam “até à morte” para preservarem a castidade.
Carlos Osoro, cardeal arcebispo de Madrid, sucessor do cardeal fascista Rouco Varela, defende que os “donos da vida” não são os homens, só Deus e, portanto, quem tem a capacidade de dar e tirar a vida, esquecido do silêncio unânime dos bispos espanhóis perante centenas de milhares de fuzilamentos de Franco, depois da vitória contra o governo legal.
Esta posição surge quando está a ser julgado o marido de María José Carrasco, acusado de delito de cooperação no suicídio da mulher, doente com esclerose múltipla, dores intoleráveis e enorme degradação física.
Os bispos, como todos os cidadãos, têm o dever de defender o direito à vida, embora careçam de autoridade moral, o que não têm é o direito de a impor quando já não há esperança e essa vida se torna um fardo insuportável, contra a vontade de quem a sofre.

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17.7.19

As pedras...

As pedras são os livros onde estão escritas as histórias da Terra e da Vida. 
E as letras dessa escrita são, sobretudo, os minerais e os fósseis, mas também os elementos químicos e os isótopos.

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16.7.19

MIL CENTO E QUARENTA VEZES A HISTÓRIA DE PORTUGAL

Por A. M. Galopim de Carvalho
(do meu livro “COMO BOLA COLORIDA – A Terra, Património da Humanidade”, Âncora Editora, Lisboa, 2007).
No dia-a-dia, o tempo mede-se em horas, minutos e segundos nos mostradores dos nossos relógios de pulso. Na História, mede-se em anos, séculos e milénios, usando, para tal, pergaminhos, tabuletas de barro, papeis e outros documentos com significado cronológico. Na Pré-história do Homem faz-se outro tanto com base em utensílios e outros objectos e fala-se de milhares e, nalguns casos, de milhões de anos.
A escala do tempo dilata-se ao historiarmos o passado geológico e ainda mais se recuarmos aos começos do Sistema Solar e do Universo, onde os milhares de milhões de anos marcam as etapas percorridas com uma imprecisão que se esfuma nessa “eternidade”. Mil milhões de anos a mais ou a menos, nos primórdios da matéria de que somos, representam o mesmo grau de imprecisão do milhão de anos a mais ou a menos no tempo dos dinossáurios, do mais ou menos um ano na história do velho Egipto, ou do mais dia - menos dia, mais minuto - menos minuto, no tempo que estamos a viver, mais segundo-menos segundo nos cronómetros dos corredores desportivos.
No decurso da nossa existência revemos, sem dificuldade, o nosso tempo, o dos avós e até o da História, mas é com esforço que abarcamos ou evocamos a vastidão do tempo geológico, com cifras que só encontram paralelo na imensidão das distâncias astronómicas.
Como na História, também a Geologia necessita de documentos e esses temo-los nas rochas, quer sejam os fósseis, quer alguns dos seus minerais contendo isótopos radioactivos. Entre as variáveis susceptíveis de serem correlacionadas com o tempo, apenas duas têm lugar de forma irreversível, uma vez que, qualquer destes dois processos se desenvolve apenas num sentido: a evolução biológica e a desintegração radioactiva natural.
Porque de uma história se trata, a Geologia tem no tempo um dos seus pilares, sendo aí encarado sob duas perspectivas distintas: a de tempo relativo e a de tempo absoluto.
Na de TEMPO RELATIVO procura-se saber se um dado evento ocorreu antes, depois ou em simultâneo com outro, isto é, se lhe foi anterior, posterior ou contemporâneo. De há muito que as relações geométricas, observáveis no terreno, entre os diversos corpos rochosos aflorantes, têm sido utilizadas no estabelecimento da ordenação cronológica dos acontecimentos geológicos de que são testemunhos. Uma tal ordenação é particularmente evidente nas rochas estratificadas, nas quais os estratos ou camadas se sucedem numa imediata sugestão de sequência no tempo.
Tal ordenação é a mesma patenteada numa pilha de papéis na secretária de um burocrata. A relação entre o empilhamento dos estratos rochosos e o curso do tempo chamou a atenção do dinamarquês Nicolau Steno, no século XVII, constituindo uma das primeiras ideias fundamentais da geologia, conhecida por Princípio da Sobreposição, segundo o qual, “numa sequência estratificada não deformada, qualquer camada é mais moderna do que as que lhe ficam por baixo e mais antiga do que as que se lhe sobrepõem”.
Evidente à luz dos conhecimentos actuais, este princípio representa um avanço notável para a época em que foi enunciado. Nele se relacionam, pela primeira vez, as rochas estratificadas com o processo de deposição progressiva dos sedimentos que as integram, a que corresponde uma ideia de sucessão no tempo.
Como marcos cronológicos, também os fósseis, escalonados na cadeia evolutiva da biodiversidade, nos permitem uma abordagem do tempo relativo. No que se refere à evolução biológica, desde há muito que se constatou, através dos fósseis, que as espécies animais e vegetais do passado foram surgindo ao longo da história da Terra, se mantiveram durante períodos mais ou menos longos, acabando, quase sempre, por se extinguir, não voltando a aparecer.
Leonardo da Vinci (1452-1519) foi o primeiro a reconhecer os fósseis como testemunhos de outras vidas em épocas passadas. Até então e mesmo depois dele, os fósseis eram vistos como caprichos da natureza. Só no século XVIII se estabeleceu definitivamente a sua interpretação como restos de seres vivos do passado.
Os fósseis representam os elos de uma cadeia de complexidade crescente. Neste entendimento, e graças ao muito trabalho dos paleontólogos, sabemos, por exemplo, que as camadas de rochas sedimentares com fósseis de trilobites são mais antigas (Paleozóico) do que as que conservam ossadas de dinossáurios (Mesozóico) e que estas, por sua vez, são anteriores às que serviram de jazida aos mamutes ou aos australopitecos (Cenozóico), nossos avós. Este raciocínio, aqui exemplificado para grandes intervalos de tempo, ao nível das eras geológicas, faz-se correntemente para intervalos mais curtos, como são os representados pelos sistemas (períodos), séries (épocas), andares (idades), subandares e outros ainda mais reduzidos.
O mesmo tipo de conhecimentos habilita-nos a considerar geologicamente contemporâneas todas as rochas que, em quaisquer lugares, contenham os mesmos fósseis. Aplicável a muitíssimas espécies fósseis conhecidas, estes raciocínios têm vindo, a partir do século XIX, a permitir escalonar no tempo o conjunto das sequências de rochas sedimentares (e também em rochas metamórficas, num grau de intensidade relativamente baixo, como é o das séries paleozóicas de Norte a Sul de Portugal), onde se encontra o essencial do registo fóssil de toda a biodiversidade que nos antecedeu.
Na outra perspectiva, a do TEMPO ABSOLUTO, passível de quantificação, esta variável tem o sentido de duração e, assim, refere o intervalo que medeia dois acontecimentos ou o que decorreu entre um deles e o momento presente, isto é, a sua idade. Uma das vias mais frutuosas na medição do tempo geológico nasceu com a descoberta da radioactividade por Henri Becquerel, em 1896, e ganhou corpo com os trabalhos sobre a constituição e funcionamento do núcleo atómico levados a efeito por Marie e Pierre Curie e muitos outros físicos. Tais avanços da ciência, com reflexos na medição do tempo, foram sabiamente aproveitados por vários investigadores, entre os quais o geólogo inglês Arthur Holmes, que “só não foi prémio Nobel porque a Geologia não figura entre as disciplinas contempladas no respectivo regulamento”.
Executadas por rotina em muitos laboratórios de todo o mundo, as determinações de idade isotópica (baseada no comportamento natural de alguns isótopos radioactivos) de alguns minerais (feldspatos potássicos, moscovite, biotite, entre muitos outros) permitiram-nos enquadrar, em termos de cronologia absoluta, as grandes etapas da história da Terra a da Vida, muitas delas, de há muito definidas em termos de idade relativa. Sabemos hoje que a Terra se formou há aproximadamente 4540 Ma (idade ainda em discussão), que os “dinossáurios não avianos” (as aves, hoje aceites como descendentes de um certo grupo de dinossáurios, são, assim, “dinossáurios avianos”) fizeram a sua aparição há cerca de 235 Ma e que desapareceram, de vez, há 65 Ma. Sabemos que o granito do Porto tem 560 Ma, que o das Beiras tem à volta de 300 e que o de Sintra, apenas 85 Ma. E a lista de rochas e de acontecimentos de que conhecemos a idade absoluta é imensa e não para de crescer.
O trabalho monumental empreendido pelos paleontólogos, ao longo dos séculos XIX e XX, permitiu, como se disse, um aceitável escalonamento no tempo, baseado nos fósseis, e o estabelecimento de eras, períodos, épocas e outras divisões temporais mais finas. Posteriormente, mercê dos avanços no conhecimento geológico e dos progressos da física dos isótopos e das tecnologias de análise, dispomos hoje de uma escala cronostratigráfica na qual, com pormenor sempre melhorado, as divisões temporais, baseadas nos fósseis, estão agrupadas em intervalos de tempo de diferentes hierarquias, cotados por valores numéricos referidos à unidade de tempo geológico adoptada, isto é, o milhão de anos, nada menos do que dez mil séculos, uma enormidade no horizonte temporal das nossas vidas, mil cento e quarenta vezes a história de Portugal, mas uma migalha no tempo da Terra.

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15.7.19

UM DESAFIO EXALTANTE

Por Guilherme Valente
Sejamos família dos que não têm família, pátria dos que não têm pátria.
João Paulo II
Que fazer com os migrantes? A interrogação mais dramática do nosso tempo 
Kamel Daoud, é um intelectual argelino combatente por um islão iluminista que continua a viver entre Ouran e Paris, apesar de condenado à morte por um imã. Ensaísta e romancista (Meursault,Contra Investigação,Editora Teodolito) assina no semanário Le Point uma crónica. escrita quase sempre “no fio da navalha”, que respigo e divulgo neste meu artigo.
Perante o afluxo de refugiados, de migrantes, o que fazer? É a interrogação de consciência que Daoud coloca (28/6/18), dizendo ser a pergunta que mais teme lhe façam. É de facto o grande desafio para o mundo, a grande interrogação nos dias que vivemos.
A vaga de migrantes, determinada por circunstâncias muito concretas que se conhecem, marca o fim de uma época em que o emigrante “era viajante, nómada, descolonizado, inconformado com o destino sem saída na sua terra, aventureiro, para passar a ser hoje vitima, desespero, grito, cativeiro, trunfo eleitoral”. 
A pergunta pressupõe uma outra, mais dramática para as consciências: o que devemos fazer perante os migrantes que “nos entram em casa”? Prendê-los, separá-los e tratá-los como criminosos, à maneira de Trump? Deixá-los morrer, no Mediterrâneo, mar de coragem e aventura, que nos trouxe Europa e é agora um mar de cadáveres? O que devemos responder... eu, nós, tu?
Não é um problema apenas do Ocidente, coloca-se por toda a parte, no Magreb, “junto da minha casa, em Oran”, denuncia Daoud, e no resto do mundo: os migrantes não estão a chegar apenas à Europa ou aos EU, enchem as ruas da Argélia, de Marrocos, da Tunisia, da Jordânia. “E reage-se ali como em todo o lado: com rejeição, ou medo, desconfiança, indignação, protesto, racismo ou compaixão, caridade desorganizada”
“A tradição na África é a de acusar o Ocidente pelos males que a atormentam, julgar a Europa em nome do politicamente correcto, porque foi colonizadora pregando a moral universal. Mas essa acusação deve ser alargada ao mundo árabe”. assume o intelectual argelino.
“Reduzir a questão migratória a Trump, Salvini ou Orban é esquecer os camiões de reconduções desumanas em massa dos migrantes sub-sarianos pela Argélia. É ignorar o racismo nos outros Estados do Médio Oriente”, escreve. 
E porque é, ou deve ser, para cada um de nós tão difícil responder à pergunta? 
Porque é fácil dizer que acolher é um dever moral, mas não será legítimo ter medo de receber um migrante maliniano na minha cidade, no meu país? Pensar em invasão, insegurança, ameaça, crime? 
É fácil dizer frases bonitas, manifestar intenções nobres, mas difícil passar aos actos que possam implicar a segurança dos meus bens, dos meus filhos, o meu conforto.
“Há páginas inteiras na imprensa do Médio Oriente e da África e também da Europa sobre o racismo, a rejeição e a discriminação na Europa. Mas que dizer das expulsões em massa de “africanos”, como os designa a imprensa islamista da Argélia, que são reduzidas no Médio Oriente a faits divers,a um combate contra ´doenças estrangeiras´, “meras” manifestações dedelinquência e criminalidade”.
"Se apelo para que os outros abram os braços, então tenho de abrir os meus. Se peço contas ao Ocidente por se fechar, então tenho de pedir contas à Arábia Saudita e à Argélia por fazerem o mesmo”. “Não existe solução para mim: ter medo é legitimo, mas recusar que este medo seja paralisante é um dever, acolher é uma responsabilidade de todos”. “Como posso exigir ao Ocidente aquilo que não quero exigir a mim mesmo, o acolhimento e a solidariedade?” Interroga frontalmente Daoud.
E quando esse medo não condiciona e paralisa os governos, reverte em benefício dos populismos, isto é, de novos fascismos que usam os migrantes para agitar os fantasmas da raça ou da segurança. A questão dos migrantes, explorada pelo radicalismo político à esquerda e à direita, unido no anti-europeísmo, está a alimentar o sentimento anti-europeu e a fomentar o regresso “às nações”. Um medo que poderá precipitar a Europa para cenários imprevisíveis. “Os medos de hoje fabricam os crimes de amanhã”.
A pergunta transforma-se então noutra, mais concreta: que fazer com o migrante? Deixá-lo morrer? Mas a morte do outro... é a morte de nós.
Os Europeus devem ter presente a matriz da nossa Europa, uma região do mundo cujo mito fundador é um mito da emigração.
É esse o tema da Eneida,um herói que não tendo conseguido salvar a sua Tróia, no Médio Oriente, parte cumprindo a vontade dos deuses em busca de uma outra pátria. Viaja, atravessa o mar, não no regresso ao conforto da sua Ithaca como Ulisses, mas para fundar uma pátria nova. E é assim que nasce... Roma. Um mito fundador que o governo italiano devia ser o primeiro a não esquecer. Todos nós europeus, portugueses, somos herdeiros de recém-chegados. O grande desafio do nosso tempo é organizar uma uma política da emigração justa, viável, bem recebida, aceitável pelos europeus.
Para nos reencontrarmos com o espírito europeu, devemos encontrar também neste caso, in extremis,“um equilíbrio dinâmico entre a insensibilidade, que nalguns casos será mesmo crueldade, a compaixão, a generosidade, a inteligência. Por agora os insensíveis parece terem a iniciativa. Chega-se mesmo a afirmar querer expulsar 500.000 migrantes.
Ora não é assim que se defende a Europa, não é com uma política de expulsões e de deportação em massa absolutamente revoltante e incompatível com a sensibilidade europeia.
A solução revela-se, então, num registo diferente, mas óbvio: evitar que haja migrantes.
O que é imperativo é adoptar uma nova política externa europeia de intervenção nos países de partida, para dissuadir a migração, estancar a hemorragia do capital humano, vital, afinal, para o desenvolvimento próprio, para o futuro dessas regiões agora devastadas. E, antes de mais, acabar com as intervenções de lesa-humanidade, como a que governos dos Estados Unidos e da França fizeram designadamente na Síria e na Líbia. Obama já o terá reconhecido.
Um único refugiado na Alemanha custa aos contribuintes alemães 20.000 euros por ano; com um quinto dessa importância poderiam ser criados postos de trabalho no local de origem que permitiriam viver a uma dezena de pessoas, refere o filósofo alemão Peter Sloterdijk num seu livro sobre a crise europeia, (Après le dilugePayot). Mas para isso é preciso que a Europa tenha uma posição comum, espírito e determinação de solidariedade – que é também revitalizadora do projecto empolgante de uma pátria comum europeia. É preciso, também para este objectivo incontornável e edificante, mais Europa.
Para isso a esquerda, a esquerda liberal e democrática, tem de regressar aos seus valores universalistas fundadores, libertar-se do contágio identitarista e obscurantista que agora a debilita e também ameaça correntes da direita liberal, também seduzida pela moda.
A questão dos migrantes não pode ser resolvida com o fechamento das nações, que também entre nós a extrema esquerda militantemente anti-europeísta deseja.
O fechamento não permite resolver, aliás, nenhum dos outros grandes problemas do nosso tempo, todos globais, só resolúveis no quadro do entendimento e da acção concertados de todos os Estados  do Planeta.
A questão dos migrantes prova aos europeus (aos que não estão cegos pelo ressentimento e a ideologia) a necessidade de fronteiras exteriores comuns. Melhor e mais Europa, é o que os Europeus e o Mundo precisam. Não há felicidade sem bondade, dizia Lacan. Uma Europa fiel ao espírito universalista e humanista europeu. Uma Europa em que nos orgulhemos de viver.
Publicado no “Observador”

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14.7.19

Uma ofensa ao espírito europeu

Por Guilherme Valente
O artigo de Fátima Bonifácio publicado no passado fim-de-semana no Público, e que deu origem a enorme polémica, assenta em ideias e pressupostos errados. Diz da Europa e de Portugal o que não são. Vê as culturas, a História, os africanos e as suas aspirações, a sua presença secular em Portugal, a realidade cultural e demográfica do país, o espírito e o modo da nossa terra, como não são. Encerra perversamente os seres humanos num destino fatídico, como a História inquestionavelmente não permite. O resto são banalidades óbvias e estados de espírito. 

O ‘nós’de Fátima Bonifácio não é o ‘nós’ europeu, da herança grega e cristã. É o seu oposto. Não é o ‘nós’ de Erasmo, Voltaire, Condorcet, Goethe ou Churchill, de S.Tomás e Francisco, nomes que  agora me ocorrem. Das grandes figuras do Renascimento, do Iluminismo e da Modernidade, da solidariedade humana,  de Beethoven e Bach, da grande literatura e arte europeias, que espelham o cosmopolitismo, universalismo e humanismo que fizeram a Europa – e que a Europa levou ao mundo, até à Índia.  

O artigo de Fátima Bonifácio é o oposto. Lembra o pior da Europa. O pior que no passado venceu com o sacrifício de milhões de europeus. E assim se foi fazendo mais Europa. O artigo de Fátima Bonifácio sugere (ou remete para) o que a essência da Europa não é. Pelo que pressupõe, ofende o espírito e o sonho europeus - hoje, de facto, confrontado com o desafio singular da torrente de migrantes. Que sobretudo ao Ocidente se deve. 

O artigo de Fátima Bonifácio ignora o que é a Europa, o que fez a Europa, de onde veio a  Europa, de onde chegaram os europeus, de onde viemos todos nós. Leia-se  a Eneida!

O que informa o artigo da doutora Fátima Bonifácio não é a História, não é conhecimento sociológico, não é exercício de razão, não é sequer um mero olhar sem preconceito da realidade do país e da cidade, das ruas por onde circula, das pessoas com quem se cruza, da vida à sua volta. 

Ao contrário do que sugere, milhares de cidadãos portugueses africanos, com filhos e netos tão portugueses como os filhos e netos da autora do artigo, trabalham honestamente em todas as áreas profissionais. Dos mais qualificados, alguns, a uma maioria menos qualificada, porque a maior parte deles terá nascido na pobreza, nos guetos de exclusão e violência, onde os pobres e os negros se confundem. Vieram, todos eles, para se integrar. Desejam todos eles, consciente ou inconscientemente, ter acesso às mesmas oportunidades oferecidas aos que nascem noutros ambientes. Igualdade de oportunidades - as mesmas, pelo menos, que a autora do artigo teve.

Porque as quotas – que considero, aliás, inúteis e perversas – não são apenas as que agora se pretendem atribuir, errada e americanamente, a negros e ciganos. São também ‘quotas’ porventura social e nacionalmente mais devastadoras: as vantagens iníquas de que outras minorias beneficiam – nascimento, estatuto, relações políticas e académicas, dinheiro, amiguismo, nepotismo, etc. Não é preciso ser doutor, historiador, sociólogo, para o saber e ter visto. E o tal facilitismo, como o artigo o descreve, tem obviamente ‘beneficiado’  esmagadoramente os ‘brancos’. 

O artigo da doutora, historiadora, socióloga Fátima Bonifácio parece ignorar muito sobre a História e tudo sobre as culturas – que considera petrificações imutáveis, que não são.

Ignora as relações interculturais, e a imensa literatura sobre a permanente reelaboração das culturas e a integração dos que as transportam; e as dramáticas excepções disso (caso dos ciganos) não permitem a generalização radical que o artigo faz. 
Ignora a história e a demografia de Portugal, onde, entre migrantes de todo o planeta,  desde o século XIII, milhões de africanos se integraram e cruzaram, sendo hoje  parte constituinte da população do Portugal que somos.  

Bastaria a  doutora Fátima Bonifácio ter lido a História da Cultura em Portugal, de António José Saraiva - incontornável para uma doutora em História –, para não veicular a ignorância e a arrogância  doutorada que caracteriza o artigo. 

O artigo de Fátima Bonifácio é, nalgum grau, o reverso equivalente, esperado, dos artigos do activismo negro, melhor, negro-muçulmano islamista - dito anti-racista, mas racista, de facto - a que as direcções do Público vêm dando espaço e voz.
Dou apenas dois exemplos. Os artigos e a divulgação enfática de afirmações do senhor Mamadou Ba - um ‘Fátima Bonifácio negro’, equivalente, no seu grau e  forma próprio, diferente no objectivo concertado que é o dele. E uma Carta ‘racista’, subscrita por dezenas de nomes, aparentemente de negro-muçulmanos estrangeiros, intitulada ‘Não queremos um museu contra nós’. É uma peça da campanha contra um Museu dos Descobrimentos, momento da tentativa de chantagem que tentaram fazer com o passado histórico de Portugal - realização admirável, com as sombras da época e da obra humana, mas glorioso motivo de orgulho para toda a humanidade. Tanto quanto me lembro, nenhum dos subscritores dessa Carta era identificado pelo jornal. Uma carta anónima, portanto, grau zero do jornalismo. Para além de mim, não me lembro de ter ouvido ou lido qualquer outro protesto. 

O objectivo desse activismo ‘anti’- racista – numa aliança que, com nuances, é em França designada islamo-esquerdista – é gerar conflitos étnicos na sociedade portuguesa. Usando como carne para canhão a gente frágil que procurou paz e futuro em Portugal, querendo mantê-la no gueto de miséria, inferioridade e violência em que vive. Gueto de que o Estado e todos nós temos de fazer mais para que eles possam sair. 

Não tendo - penso - a intenção organizada desse activismo negro muçulmano esquerdista, as generalizações e a ignorância patente no artigo da doutora Fátima Bonifácio são cúmplices objectivos dela, alimentam-na, dão-lhe pretexto e força. 

Duas palavras sobre o patético editorial da Direcção do Público. Intrigante é parecer ignorar que não é publicando ‘lixo’ negro e branco, dos vários quadrantes políticos, que o jornal passa a ser (volta a ser...) como diz que é. Lixo é lixo. Venha ou não envolto em todos os diplomas imagináveis de suposta excelência e na arrogância triste mais do que suspeita. 

Mas ainda bem que esse artigo e os reversos  idênticos dele foram publicados. Se não forem contagiantes e podendo ser contestados, é útil que os medos, os ódios, as frustrações e as pulsões se revelem. Que purguem... se a purga for com palavras.
Publicado no "Sol" de 13 Jul 19

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