31.12.22

Grande Angular - Provavelmente, a pior crise…

Por António Barreto

Guerra na Europa? A inflação mais elevada das últimas décadas? Uma persistente pandemia que não se reduz à ínfima espécie? A dificuldade em desenvolver o investimento privado? O encerramento de urgências de obstetrícia e de maternidades, vários dias por semana ou por mês, em múltiplas localidades? O aumento do custo de vida e dos preços dos bens alimentares a ritmos raramente vistos? Não! Nenhum destes factos, nenhuma destas dificuldades, nenhum destes problemas provocou a presente crise política, provavelmente a pior de todas desde a bancarrota de 2009. O que foi então? O que se passou para que as demissões se sucedam, os partidos exijam a demissão do governo, os grupos parlamentares apresentem moções de censura e se fale em sucessão no governo e no partido como se fosse para amanhã?

 

Passaram-se várias coisas. São várias as ocorrências. A primeira é a verificação que este governo não sabe governar. Distribui o que pode. Arranja financiamentos europeus. Dá uns subsídios. Adia uns problemas. Cria mais umas comissões. Mas não sabe governar. Gaba-se do que não fez e esquece o que é culpa sua. O que depende da Europa, da economia internacional e da empresa privada vai melhorando ou aguentando. O que depende do governo, como a saúde e a educação, ou das autoridades nacionais, como a justiça, não melhora nem aguenta.

 

A segunda é o desenvolvimento da luta das classes e o aumento de movimentos de protesto. O custo de vida está a atingir níveis inesperados. Os salários não aumentam nem sequer para cobrir a inflação. Distribuir cheques de 100 ou 200 euros não compensa o aumento dos preços dos alimentos, dos combustíveis, da energia e das rendas de casa, sem falar nos juros bancários. De admirar seria a hipótese de nada acontecer. Mas o governo não estava à espera. Ministros e secretários de Estado ficaram nervosos. No partido, há inquietação.

 

A terceira é a entrada em vigor, com redobrada energia, da confusão entre despotismo e ética republicana. Os nossos governantes consideram que, com votos e boas intenções podem fazer o que quiserem. Nepotismo no governo? Favoritismo na administração pública? Privilégios nos ajustes directos? Emprego de familiares? Encomendas a correligionários? Cruzamento entre funções políticas e laços familiares? Indemnizações indevidas, vencimentos duplicados e subvenções desviadas? Tudo parece permitido a quem tem os votos.  Os valores que permitem erradicar os costumes de antigamente constituem o que vulgarmente se designa por ética republicana. Mais ainda: servem para excluir os inimigos da República. O pior é que, entendida como é entre nós, a ética republicana legitima a ideia sinistra de que os votos do eleitorado e a pertença ao partido legitimam todos os comportamentos. 

 

A quarta é a falta de competência para uma das tarefas mais interessantes e mais exigentes de qualquer governo: a junção entre o imediato e o longo prazo. Entre a questão prática e a estratégia. Entre o caminho que está diante de nós e o destino do percurso. Os casos mais inquietantes de que se fala hoje são reveladores. Ao encerramento das urgências de obstetrícia e das maternidades, o governo responde com declarações sobre os problemas estruturais. Aos estrangulamentos crescentes do Serviço Nacional de Saúde, o governo garante que se trata de problemas estruturais e que só com reformas a longo prazo se poderá ver o melhoramento. A dificuldade de recrutar e distribuir professores e médicos justifica-se com a existência de problemas estruturais. A infâmia do trabalho imigrante clandestino e do tráfico de mão-de-obra resulta de deficiências estruturais. Da água às florestas, dos preços dos alimentos aos custos de electricidade e gás, tudo depende de questões estruturais e só se resolverão com tempo e reformas estruturais. E sustentáveis, como dizem. Assim se adiam e deixam de resolver problemas concretos. Perante a falta de enfermeiros e diante do trabalho ilegal nas culturas intensivas, os governantes sentem-se desarmados e julgam que os problemas são sempre estruturais e de longo prazo. O primeiro reflexo consiste em criar uma superestrutura, um Observatório, uma Comissão, um Conselho e uma Autoridade. O que exige que previamente se deva elaborar uma sofisticada estratégia, assim como um plano a médio e longo prazo. O que só fará sentido com uma visão “holística” dos problemas. Ou uma abordagem “global, transversal, multidisciplinar e sustentável”. Com tantos anos em funções, os governantes não se dão conta de que estes argumentos já não convencem. A sua presença à frente dos ministérios transformou-se num problema estrutural.

 

A quinta é a falta de percepção das dificuldades dos cidadãos perante os serviços públicos, as autoridades, as instituições, as grandes empresas de serviços e os órgãos de governo. O melhor exemplo desta insuficiência governamental é o do gás e da electricidade. As facturas são absolutamente incompreensíveis. A explicação dos enormes aumentos é hermética. É difícil encontrar um cidadão que tenha percebido o que se passou com estes serviços e com a existência de dois ou mais mercados paralelos, com preços dispares e muito diferentes.

 

A sexta é a revelação de uma evidência: o governo não sabe o que fazer com uma maioria absoluta. Na ideia dos governantes e em poucas palavras, esta última resume-se a um princípio ou uma norma: quem tem os votos, manda. E faz o que lhe apetece.

 

A sétima reside na agitação partidária que se instalou tão rapidamente. Parece ter sido dado o recado: está aberta a sucessão, estão em jogo empregos e cargos, recomeçou o leilão de adjudicações directas e dos concursos com fotografia. Alguns membros do governo e dirigentes do PS estão a revelar-se mentirosos, covardes e velhacos como raramente se viu na história recente. A competir em cinismo e crueldade com os famosos “barões do PSD” de há duas ou três décadas. Fogem às suas responsabilidades, escondem-se atrás de biombos, deixam cair acusações discretas contra os seus colegas e instalam verdadeiras armadilhas com meias palavras, fugas e omissões. A luta pela sucessão atingiu graus de violência política quase inéditos. O combate pelas nomeações de amigos e familiares faz-se à vista de todos. A sofreguidão e a ganância transformaram-se em razões para governar.

 

Esta parece a crise das paixões menores de alguns políticos.

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Público, 31.12.2022

 

 

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29.12.22

Crónica – Memórias da juventude


Por C. B. Esperança

Quando em 1961, ido da Guarda, fui colocado no Bairro dos Penedos Altos, na Covilhã, logo surgiram os habituais convites destinados aos professores.

O primeiro, com tratamento de V. Ex.ª, que me faria duvidar do destinatário, não fora a coincidência do nome, foi recusado. E os seguintes. Não me interessavam e eram pouco recomendáveis as origens.

Em abril de 1963 o Papa João XXIII tinha publicado uma encíclica destinada não só aos fregueses, mas a todos os homens de boa vontade, as mulheres não mereciam referência. Recebi o convite para um colóquio, como todos os 16 docentes daquela escola, onde era eu o único homem, com alusão ao tema a discutir, a Encíclica PACEM IN TERRIS.

Dessa vez, por razões que o Diabo explicará, compareci à hora e no local que o convite, subscrito por um padre S. J., indicava. Um padre, culto e comunicativo, dissertou sobre a encíclica, em termos encomiásticos, e pôs o tema à discussão.

Retivera que o Papa pedia aos países ricos que ajudassem os países pobres e, logo que tomei a palavra, perguntei se tal pedido era ingenuidade papal ou hipocrisia, sabendo-se que os ricos só ajudariam os pobres se obtivessem vantagens.

Foi urbana a resposta do preletor que contestou a minha afirmação, e a plateia foi rude e inamistosa. Havia de me acontecer muitas outras vezes na vida.

Só não esperava ser chamado uma vez mais, por ordem do tenente Gaspar, ao comando da PSP, para me dar conselhos durante a noite, devia sofrer de insónias, e só terminar a caridosa prédica às cinco ou seis horas da madrugada com o habitual conselho, V. Ex.ª, este era o tratamento para todos os cidadãos da Oposição ao regime, está a prejudicar o seu futuro, o senhor Dr. Raposo de Moura, que muito prezo, é companhia que prejudica V. Ex.ª, tenha uma boa noite.

Não tardou que de Castelo Branco viesse um agente da Pide a ouvir o Delegado Escolar e outros professores de confiança, a meu respeito, pois o padre Morgadinho, irmão de outro pide, comunicara que havia na Covilhã “um professor novo, atrevido, com cara de idiota, que precisa de ser vigiado”.

Já era professor efetivo na Lourinhã, e desgostou-me o padre Morgadinho a chamar-me ‘novo’, já com vinte anos e a terminar o segundo ano de docência.

Aliás, a Pide vigiava-me há dois anos e o execrável governador civil da Guarda andava inquieto, comigo e com a minha mãe. 

O governador, Mário Bento Soares, de tanto odiar o homónimo da oposição, irritava-se se o tratassem por Dr. Mário Soares. Deixou cair o apelido paterno e assumiu, para todos os efeitos, o nome de Mário Bento. Como se vê.


Apostila - Há anos que procuro trazer aqui um texto semanal. A consideração pessoal e estima para com o Eng.º Medina Ribeiro transformou o hábito em obrigação e esta converteu-se em motivo de stress que um octogenário deve evitar.

Assim, esta será a última crónica no dia certo. Aproveito para desejar aos leitores, se acaso os tenho, ao Sorumbático, aos outros contribuidores, em especial ao amigo Medina Ribeiro, um feliz Ano de 2023.

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28.12.22

No "Correio de Lagos" de Nov 22

 

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26.12.22

No "Correio de Lagos" de Nov 22

 

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25.12.22

Natália e os policiais - *No Lar com uma Santa (?) Filomena

Por Antunes Ferreira

Três malas Samsonlite grandes, uma mais pequena de trólei, uma credência também pequena estilo manuelino em nogueira com portas de vidro fabricada e Paços de Ferreira, a capital do Móvel e um oratório igualmente vidrado com santos dentro e bem assim a sua mala de mão – eis a bagagem levada pela Senhora Don Natália Margarida de Sousa Ferreira e Montenegro, para o Lar de Santa Teresa do Menino Jesus no dia 13 de Dezembro de 2917.

 

Filha única, viúva do brigadeiro Vasco Manuel Grave Silva e Montenegro, mãe do advogado Aurélio Vasco Ferreira e Montenegro que começara a traçar uma carreira que se antevia auspiciosa. Dona Natália nascera e crescera em Paços de Ferreira na mansão do Ferreiras clássicos adversários dos Sousas ao longo da História local e nacional. Estudiosos reclamavam para o local a sua ancestralidade retomando-a ao Neolítico. Aliás o Dolmen da Leira Longa atestava-o. 

 

Acompanhando o “defunto” (como ela lhe chamava após vinte e oito anos de matrimónio) andou pelo Ultramar – ali era Portugal – Montevideu e Atenas onde ele fora adido militar nas respectivas embaixadas e assim, dizia ela, conhecera Mundo. E as suas podridões, pois não há gente  e terra tão boas como as nossas. Com algumas excepções, reconhecia.

 

Aurélio viera para Lisboa para cursar Direito e o Vasco passara à reserva, mas um cancro no pâncreas levara-o em sete meses com quimio e rádio debalde. Tinha comprado um T5 na alameda Afono Henriques num prédio quase junto à Fonte Luminosa (o militar gostava de dar festas e convidava muita gente daí o espaço da casa) onde depois do seu óbito ficaram a morar apena três bocas.

 

Mãe, filho, que se mantinha solteirão sem preocupações com cama, mesa e roupa lavada e a criada/governanta Conceição, natural de Meixomil que servia desde gaiata na casa dos Ferreiras e com eles viera para a capital. Mas eis que surgira o busílis da questão: talvez pelo pouco – ou nenhum – hábito da cidade, ao atravessar uma rua fora da passadeira Conceição fora atropelada e morrera na ambulância do INEM.   

 

Dona Natália experimentar uma cabo-verdiana: deu para o torto, roubava na dispensa. Veio depois uma georgiana: nãos entendiam no falar; foi-se. Conversaram, Aurélio profissionalmente ia de vento em popa. Tinha a sua própria firma de advogados com sede na rua do Ouro: Montenegro, Nabais e associados seguiam colectando clientes exibindo uma sentença de Martin Luther King: : “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça por toda  parte.”

 

Não admirava, portanto, que Natália pudesse ficar sozinha naquele casarão. Voltar para Passos? Nem pensar. Adquirira novos hábitos, não pensava sequer viver na pasmaceira ainda que já classificada de citadina. Postos os prós e os contras ambos os Montenegros chegaram à concussão: um Lar para a Terceira Idade de preferência em Lisboa, quando muito nos arredores – mas próximos. 

 

Doutor Aurélio iniciou uma via-sacra, visitou tudo o que lhe pareceu viável, mas, por isto ou por aquilo, nada o conseguia satisfazer. Ainda hesitou num que descobriu no Algueirão, porém ao falar com o director do empreendimento entendeu que ali o que interessava era o dinheiro e por conseguinte afastou igualmente a hipótese esfumando-se-lhe cada vez mais a esperança de encontrar uma solução breve.

 

Mas contra a expectativa, na manhã que se seguiu à frustração mencionada a menina Florinda, sua secretária, que estava a par do problema, pediu-lhe a tarde para assistir ao velório duma tia-avó e informou-o que com a morte da velhota abrira uma vaga no Lar em que se encontrava acamada e que era na rua do Crucifixo. Mais ainda: era um primor, mas não era barato. Talvez ele…

 

Meu dito, meu feito. Num ápice nem foram precisas grandes negociações, aliás nem grandes nem pequenas. Rapidamente Aurélio chegou a um acordo com a freira laica D.ª Maria de Fátima Menezes que dirigia o Lar; este era servido por quatro irmãs dominicanas e cinco empregadas civis para tratarem dos vinte e sete internados: dezassete senhoras e dez cavalheiros.

 

Dona Natália aceitou de bom grado a proposta e foi ver as instalações, detendo-se, naturalmente, no quarto que seria o dela. Como tudo na baixa lisboeta, o prédio era de traça pombalina e tinha até uma placa de bronze onde podia ler-se EDIFFIFICADO POR ENCARGO DE SUA EXCELLEMSSIA O ENGENHEIRO EUGENIO DOS SANTOS.

 

Mas os interiores tinham sido completamente mudados a fim de dar aos utentes toda a espécie de comodidades. Foi Aurélio quem a apresentou à directora e esta por sua vez o fez o médico Dr. Alexandre Coimbra que vinha uma vez por semana, geralmente aos sábados fazer o que chamava a sua “visita de saúde”. Entretanto, com a ajuda de duas empregadas Dona Natália começara a arrumar os seus pertences.   

 

Com o passar dos dias os hábitos foram-se sedimentando e os residentes adoptaram a nova habitante tanto mais que Natália tudo fazia para s ambientar; só num pormenor destoava: não alinhava nas tardes de bingo nem nas e monopólio. Na maioria das vezes era vê-la sentada a um canto da sala de convívio, ignorando o ecrã plasma da televisão, antes agarrada a um livro geralmente policial.

 

Esse era o seu calcanhar de Aquiles: as obras dedicadas aos crimes e a quem os descobria. Na credência, arrumada cuidadosamente nas prateleiras estava toda a colecção Vampiro “os mestres da literatura policial” podia ler-se na capa de cada um dos volumes. Joia da colecção era o seu número um: “O Assassinato de Roger Ackroyd” da Agatha Christie, rubricado pela autora que Natália comprara numa feira de rua no Pireu quando voltava dum cruzeiro pelas lhas gregas.

 

Além desses bens preciosos outro havia que lhe preenchia as medidas e tinha lugar de destaque no pequeno oratório: uma imagem da Santa Filomena. Com ela passava-se uma cena próxima do policial: para uns continuava a ser santa; para ouros não passava de mais uma fraude religiosa. A discussão arrastava-se ao longo das décadas e nenhum dos defensores da “sua” verdade arredava pé. Era santa com direito a missa? A Santa Sé, especialista em ambiguidades assobiava para o lado e fingia que era de outra estória.

 

Foi por isso que estoirou a bernarda. A Senhora Dona Laurinda (cujo quarto era ao lado do da Dona Natália) ao ver a reverência que a vizinha devotava à (duvidosa) santa perguntou-lhe qual a sua opinião sobre o desentendimento. “Mas qual desentendimento, Dona Laurinda? Isto é como nos livros policiais, O criminososabe-se logo quem é. Só falta descobrir o detective. Neste caso, garanto-lhe que não é o Vaticano!” Falou e disse.

 

 

   

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24.12.22

Grande Angular - Ainda há tempo

Por António Barreto
Foi certamente um dos piores anos da nossa história recente. Ainda a pandemia não tinha acabado e já outras dificuldades dramáticas se ergueram. A doença exigiu um colossal esforço, em primeiro lugar das pessoas atingidas, milhares delas vítimas mortais, cujo número superou os das guerras em África ou da participação portuguesa na primeira guerra mundial. Depois, dos familiares. Em seguida dos profissionais de saúde, médicos, farmacêuticos, enfermeiros e auxiliares. E ainda, de milhares de pessoas nas autarquias, nos serviços de bombeiros e de transportes, e em dezenas de serviços, incluindo a administração pública, que viram as suas vidas atingidas e perturbadas. Ainda é preciso falar dos recursos financeiros, enormes, sem retorno, gastos nesta medonha voragem. Ou dos milhares de empresas obrigadas a reduzir actividade, despedir pessoal, suspender negócios, fechar portas e desistir. Ou da produção, do comércio e do consumo de bens e produtos adiados, suspensos e terminados. Ou dos pobres, que são sempre quem mais sofre. Ou dos trabalhadores, quem mais paga. Ou das classes médias, com destinos adiados e projectos perdidos. Ainda está por fazer o balanço sanitário, demográfico, social, económico e político de uma das maiores tragédias do tempo presente. O que, aliás, se pode dizer do mundo inteiro. Mas muitas circunstâncias fizeram com que se tivesse transformado em calamidade inevitável, quase natural, algo que era muito mais do que isso. O tempo virá em que se saberá mais e melhor o que se passou (está a passar), as suas causas e as suas consequências.

 

A meio da pandemia, começou a guerra na Ucrânia. Ou antes, para ser mais preciso, a invasão da Ucrânia pela Rússia. É um dos actos mais medonhos da moderna história europeia. A violência e a destruição já conhecidas, frias e premeditadas, alcançam níveis de horror raros. A cooperação mundial foi posta em causa e tão cedo não conhecerá estabilidade. A segurança internacional está, na era contemporânea, sob inédita ameaça e não se vê melhoramento à vista. Dos países em guerra aberta, civil ou internacional, permanente ou intermitente, chegam números inquietantes de mortes (centenas de milhares) e refugiados (milhões), capazes de envenenar ainda mais os conflitos internacionais. Os nomes desses países são citados todos os dias nos jornais, já pouco significam, de tal modo nos habituámos, mas que ninguém duvide de que se trata de outras tantas tragédias: Síria, Sudão, Somália, Afeganistão, Iémen, Moçambique, Iraque, Palestina, Nigéria e Centro-africana vêm à cabeça. Os equilíbrios da Guerra Fria morreram, só agora estão a ser substituídos por novos e provavelmente mais perigosos arranjos, que, para já, deixam o mundo suspenso.

 

Portugal não pode escapar às ameaças nem aos perigos evidentes. Não pode contrariar, sozinho, a inflação e o aumento do custo de vida. Não conseguirá, individualmente, opor-se ao recuo da globalização que ameaça o comércio internacional. Não está ao seu alcance resolver os problemas de subsistências e de matérias-primas que vão inevitavelmente surgir. Não terá qualquer meio de contribuir eficazmente para a solução das guerras de África e do Próximo-Oriente. Não poderá dar um contributo real para o fim da guerra na Ucrânia e do imperialismo russo. Nem terá influência na reconstrução dos equilíbrios internacionais, com especial relevo para a ascensão chinesa e os novos confrontos entre a América, a Europa, a Rússia e a China, sem falar na India e no Japão. Tudo isso está fora do nosso alcance.

 

Certo. Mas nada disso pode ser motivo, desculpa ou justificação para a maior parte das nossas dificuldades internas. Mesmo contando com tudo o que de mau vem de fora, clima, doença, guerra, conflito, terrorismo e êxodos massivos, mesmo assim Portugal tem meios, necessidade e experiência para resolver e salvar. E tem circunstâncias políticas favoráveis, com uma rara maioria parlamentar e uma inédita colaboração do Presidente da República. Também tem algum tempo, que é, aliás, o que mais rapidamente pode faltar. Este perde-se por razões humanas, por desperdício, por incompetência e por outros defeitos menos urbanos, como sejam a ganância, o roubo e a corrupção.

 

Não se sabe exactamente se é por causa das pessoas ou das políticas. Ou das duas. Mas a verdade é que, mau grado as circunstâncias favoráveis, o governo não se tem mostrado capaz de acorrer e arrumar a casa, quanto mais não seja para diminuir as ameaças e aliviar os fardos. A distribuição de pequenos cheques a grande parte da população pode ter o valor simbólico e real da compaixão e da justiça. Muito bem. Mas todos sabemos que essa não é a solução para o futuro. Todos sabem que o futuro depende da produção, do investimento, da justiça e da eficácia da administração e dos serviços. Todos sabem que, a esses factores, é indispensável acrescentar as empresas privadas, assim como um clima sindical de cooperação e responsabilidade.

 

Com tudo o que se passou e tem passado nos últimos anos, não se percebe que se tenha deixado cair o Serviço Nacional de Saúde ao ponto a que chegou. Não se entende que se tenha deixado derivar ou afundar o sistema de Justiça até onde se encontra hoje. Não se compreende que o sistema de educação ainda exiba dezenas de milhares de precários, milhares de horários por preencher até tão tarde e tão difíceis condições de acesso ao ensino superior. É difícil aceitar o declínio dos transportes públicos, do caminho-de-ferro, da companhia aérea e da construção do aeroporto de Lisboa. É incompreensível que, em nome do universalismo, do multiculturalismo e de uma política generosa de compaixão e acolhimento, se tenham deixado criar várias economias clandestinas ou paralelas, de quase escravatura, de marginalidade e de violência.

 

Sabe-se que muito do que precede se deve em parte à má gestão, à incompetência, aos interesses corporativos e ao amiguismo político. Sabe-se também que uma das razões políticas ou filosóficas reside no gradual e inexorável desaparecimento do espírito de serviço público e de apego ao bem comum. Mas, mesmo assim, há ainda a sensação de que é possível arrumar a casa e enobrecer a política. Ainda é possível escolher governantes que saibam e queiram fazer, não apenas estar. Para isso, por enquanto, ainda não faltam meios, recursos, empresas, paz social e estabilidade política. O que já começa a faltar é o tempo. Que tudo pode destruir. 

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Público, 24.12.2022

  

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22.12.22

Natal - Votos de Boas-Festas para os leitores

 Por C. B. Esperança

Em meados do século XX o Natal era oportunidade para reunir as famílias. Os ausentes voltavam todos os anos à aldeia de origem, nas carruagens de 3.ª classe de comboios apinhados de pessoas e cabazes, com odores a que se resignavam as pituitárias de então. 

Através do vidro partido, ou da janela avariada, o ar gélido entrava nas carruagens e nos corpos. Os passageiros partilhavam a vida e as merendas nas penosas e longas viagens de pára-arranca. Os Senhores Passageiros precisavam de embarcar, ou de desembarcar, e a máquina a vapor, de abastecer de carvão a fornalha e de água a caldeira. 

Às vezes o comboio parava nas subidas para que a caldeira ganhasse pressão e pudesse rebocar o peso acrescido que deslocava. Entre Lisboa e a Guarda era normal um atraso de duas ou três horas, pela Beira Alta, e mais ainda pela Beira Baixa. 

Nas estações e apeadeiros esperavam bestas e pessoas, impacientes e enregeladas. À chegada do comboio havia abraços, ternos e demorados, e lágrimas de alegria. Do comboio acenavam mãos e ouviam-se votos de Feliz Natal quando o apito anunciava o retomar da marcha. Aos que se apeavam, só o caminho lamacento os separava, então, da casa da aldeia onde aguardavam os parentes que ficaram em ansiosa espera. 

Quando eram pequenas as casas e numerosas as famílias, sobrava sempre lugar para os que chegavam. A ceia de Natal era o momento mágico que matava fomes ancestrais e a saudade das ausências. 

Na lareira fumegavam panelas cheias, cujos odores, fundidos com os que vinham da sala, traziam à memória os sabores da infância. 

A candeia de azeite iluminava os trajetos domésticos enquanto o candeeiro a petróleo projetava as sombras dos familiares reunidos em conciliábulo. 

Estranhava-se o milagre que permitira tantas postas de bacalhau, já que os repolhos e as batatas os davam a horta, e os frutos eram secos no tempo devido. Rabanadas, arroz doce, sonhos, filhós e toda aquela variedade de guloseimas eram fruto dos ingredientes próprios e de segredos herdados, a que o lume brando da lareira requintava o sabor.

Não deixava de ser estranho que tanto desse, quem tão pouco tinha, e negasse, avaro, quem muito podia. Eram esses os tempos, ainda são assim as pessoas que restam. 

Ceavam primeiro as crianças, por questão de espaço e de impaciência; passavam, depois, à sopa, os mais velhos, antes de se saciarem no bacalhau, repolho e batatas, regados com azeite. Só depois de esgotado o vinho no garrafão e de se ver o fundo à panela se entrava nas sobremesas, nas aguardentes e na jeropiga. 

As crianças impacientavam-se com a demora do menino Jesus que raramente trazia os presentes que ansiavam, mas conformavam-se com os que lhes coubessem. Os adultos sugeriam-lhes a cama enquanto os sapatos rodeavam a lareira à distância conveniente do lume que ainda crepitava. O sono acabava por vencê-las, adormecendo primeiro as mais pequenas, que as mães e a avó iam depositando em camas improvisadas. 

No pouco espaço disponível havia ainda lugar para o presépio, uma ingénua encenação do mito cristão, que o pinheiro, oriundo de outras culturas, havia de substituir num prenúncio da globalização, para acabar feito de plástico, coberto de bolas coloridas.

De manhã, à medida que acordavam, os miúdos corriam para a chaminé, ansiosos por encontrar as prendas e exultavam com os presentes.

O Menino Jesus que, então, descia pelas chaminés, foi trocado pelo Pai Natal, a viajar de trenó, puxado por renas, em terras onde só a neve fazia jus à nova fábula que roubou o encanto dos musgos, da serradura, do algodão em rama e dos animais que rodeavam o menino de barro, deitado em berço de palha.

Nos sapatinhos, onde então cabiam os chocolates e os carrinhos de corda, que faziam as delícias das crianças, o terço para a tia beata ou a onça de tabaco para o avô, não cabem hoje os jogos de computador, esperados sem ansiedade, nem os presentes embrulhados em papel reluzente. 

Alguns pais ainda voltam aos sítios de origem para mostrar, aos avós, os netos, com o mesmo ar de enfado com que os levam ao Jardim Zoológico, a verem a girafa e o elefante, ou os metem nos Centros Comerciais. Mas o mais frequente é tirar os velhos da toca e pô-los a fazer o percurso inverso, com 50% de desconto no preço do bilhete, num exílio que começa na véspera da consoada e termina, no início do Ano Novo, com a devolução ao habitat. 

Mudaram-se os tempos. Do Natal que havia, resta a recordação das crianças que foram.

Jornal do Fundão - 21-12-06 e Ponte Europa (2. Edição) – pág. 19/21

Ponte Europa Sorumbático

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18.12.22

No mercado do emprego - *Olá, trate-me por camarada

Por Antunes Ferreira

Rogério vinha com um grãozinho na asa. Não entrou em particularidades, apena me referiu que estivera com uns camaradas da 6.ª CCC, a Companhia de Caçadores Especiais, enviada para Angola no da 12 de Fevereiro de 1961 para contra atacar os massacres da UPA no Norte da então colónia, oficialmente “Província Ultramarina”. Haviam bebido uns copos dum tal uísque Malt Aberlour A'bunadh coisa muito fina guardada dos tempos da Manutenção Militar. Mas assegurou-me tudo tinha sido feito com todos os FF e RR…

 

O nosso encontro destinava-se a acertar a tática e a estratégica para a candidatura do filho dele, recém licenciado em teologia pela Católica; o moço não estava muito inclinado para dar aulas e por isso concorrera a um lugar de Relações Públicas numa empresa de Energias Alternativas cujo presidente eu conhecia bastante bem: fôramos amigos e companheiros de turma do Lyceu Camões. 

 

Tratava-se do eng.º Diogo Vasques Mota Brandão um sujeito muito competente, bom profissional, dirigente decente e sobretudo compreensivo e justo para com o seu pessoal; acrescia  que era fleumático, impassível, imperturbável, paciente, tranquilo, despreocupado, perseverante, persistente, pertinaz e constante, l ainda por cima um tipo porreiro. Daí que eu falaria pessoalmente com ele pois não contaria com o ovo no cu da galinha…

 

Uma simples apitadela ao dito cujo e eis-nos a almoçar no Grenache no Pátio de Dom Fradique (quem pagou foi o Diogo pois o guito também era seu… e uma refeição média, pelo menu, ronda os 60 €, porra!).  Tudo resolvido, nem foi preciso concurso, em terra de tacho para quê tal preciosidade? O cartão de visita do CEO para o director das Relações Humanas e o dr. Virgílio Alves Rebelo, filho do Rogério, já fazia parte do quadro das Energéticas Universais.

 

O Diogo era o manda-chuva e eu tinha todo o tempo do Mundo para não fazer nada e o dia estava tão suave que decidimos despedir (momentaneamente, não fosse o diabo tecê-las) o motorista do Mercedes, apanhámos um elétrico e fomos até ao Alto de Santa Catarina onde nos sentámos à sombra do famigerado Adamastor. 

 

Contentes que nem ratos, enquanto víamos passar no Tejo dois navios de cruzeiro, o Diogo perguntou-me de onde é que eu conhecia o Júlio Mesquita Katangue, ao que lhe respondi toda a nossa estória comum. “Tem graça. Também somos muito amigos e entre outros interesses ele disse-me que tu és conhecido como o campeão mundial das anedotas. Até me contou uma das duas freiras que foram a um ginecologista e outra sobre um professor de inglês passada em Angola. Rimo-nos a bandeiras despregadas!!!!”

 

Meio parvos rimo-nos até rebentar os coses; alguns cidadãos que por ali gastavam os seus ócios miravam-nos: “Olha-m’estes devem ser dos externos do Júlio de Matos…” Olimpicamente ignoramo-los. No entanto o Chief Executive Officer aproveitou o ensejo; “Henrique, vai fazendo-se tarde, mas ainda há tempo para contares uma anedota..”

 

Como recusar? “A cena passa-se às portas do Céu. Chega um sujeito com ar um tanto suspeito e apresenta-se ao São Pedro, à porta, com o seu molho de chaves.” O santo porteiro: “Meu filho quem és tu?” O cidadão: “Chamava-me Honorato Martins, completei 38 anos, era solteiro, morri num desastre de viação e era honesto, bem comportado, sincero, alegre, mas era e sou comunista.”

 

São Pedro, um tanto contristado: “Pois meu caro, nós aqui, nos nossos registos celestes computadorizados temos todos os teus dados. E embora tenhamos em conta o rol de qualidades que ostentas – és COMUNISTA. Portanto toma esta guia de marcha e baixas ao INFERNO. E assim aconteceu.

 

Três semanas depois, o Diabo ligou o telefone vermelho para o Céu e atendeu São Pedro: “Daqui fala o próprio Satanás, mas não é consigo que eu quero entrar em contacto mas sim com o Filho do seu Patrão.” O Santo homem: “Lamento. Nada é possível. A Santíssima Trindade está reunida em Conselho de Administração Celestial”. 

 

Segue-se uma discussão acerba até que finalmente Jesus Cristo atende o telefone vermelho. O Demónio: “Eu raramente lhe peço alguma coisa mas agora trata-se de uma emergência gravíssima. Um tal Honorato Martins, comunista ab initio que vocês mandaram para cá pôs o Inferno num verdadeiro pandemónio. Já fundou uma Comissão de Greve e dois comités sectoriais para melhorar a qualidade do carvão para as brasas eternas. Ele mesmo encarrega-se de fazer os cartazes de protesto contra as temperaturas muito altas que por aqui há. Uma gaita, Cristo, uma grandíssima gaita!!

 

E o Crucificado, fleumático, para o bocal telefónico: “E que quer você que eu lhe faça? Tenho as mãos atadas. Só com um despacho do Consel…” “Só um pequeníssimo favo – retorquiu a cornuda figura – permita que ele vá durante uma semana, só uma, aí para o Céu, enquanto eu ponho em ordem aqui este Inferno. Por favor, pode ser????” Jesus comovido e convencido aceitou. E assim aconteceu.

 

Decorreram os sete dias solicitados e muito a contragosto o boss infernal ligou para o Céu. Atendeu o Redentor. Falou o Belzebu: “Já passou a semana combinada, pode remeter-me…” E numa voz autoritária o Bom Pastor: ”Antes do mais trate-me por CAMARADA!!!!!!!

 

Desta feita até o Adamastor se partiu a rir. À gargalhada!

 

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17.12.22

Grande Angular - Ser e parecer

Por António Barreto

Portugal é um país corrupto? Não. Mas há corrupção em Portugal. E corruptos. E corruptores. Todos os dias aparece mais um caso, todos os dias se escondem mais uns episódios. Não se passa semana sem que políticos ou funcionários não vendam despachos e não comprem privilégios. Ou sem que empresários ou independentes não comprem decisões e ganhem vantagens. Pior ainda: a justiça muito permite, muito arrasta e muito atrasa. Sem justiça, Portugal parece um país corrupto. Muitos portugueses denunciam e condenam a corrupção dos outros, mas fazem vista grossa ou apreciam aquela de que são beneficiários. É provável que haja em Portugal alguns milhões de pessoas honestas e que se desolam de ver o seu país ser fraco com os aldrabões, morno com os trafulhas e tíbio com os ladrões. Mesmo com este panorama e com a certeza de que os poderosos da economia e da política se servem frequentemente da justiça débil, o país não vive na corrupção. Mas, uma vez mais, sem justiça, para lá pode caminhar.

 

Portugal é um país nepotista? Não. Mas há nepotismo em Portugal. E nepotistas. A maior parte das nomeações, das autorizações, das licenças e dos alvarás não favorece sistematicamente os familiares, os amigos ou os correligionários. Mas muitos favorecem. E a justiça, em geral, não vê. E a opinião pública, que condena essas práticas, é impotente. Até porque muitos cidadãos, quando podem beneficiar desses maus costumes, consideram-nos aceitáveis. Uma “ajudinha”, uma “mãozinha” ou uma “palavrinha” são vezes de mais os instrumentos de decisão e os factores de nomeação. Com um pouco mais de justiça, teríamos talvez mais regras respeitadas e mais processos claros. Quem sabe se não teríamos também mais mérito e menos apelidos e cunhas! E menos familiares e parentes no rol de nomeações.

 

Portugal é um país racista? Não. Mas há racismo em Portugal, claro. E racistas, sem dúvida. Não se conhece lei, instituição, organização ou empresa que deliberadamente beneficie uma comunidade, designadamente a de europeus, brancos e cristãos, em detrimento e prejuízo de outras, nomeadamente as de ciganos, negros, árabes, indianos, chineses, judeus ou islamitas. Mas há brancos que se julgam superiores. E minorias que pensam ter a razão e o direito à vingança. E sobretudo quem entenda que o problema das relações raciais só se resolve com violência. Há quem pense que os seus sempre dominaram e assim se deveria continuar. Mas também há quem pense que os seus foram sempre subjugados e por isso julgam ter hoje direito à desforra.

 

Portugal é um país machista? Não. Já não. Mas há machismo em Portugal. E machistas. Nenhum sistema conhecido, nenhuma lei, nenhum regulamento e nenhum estatuto consagra a discriminação de género, suporta a superioridade masculina e recompensa os maus tratos infligidos por homens. O progresso das mulheres no emprego, nas escolas, na administração publica, nas empresas, na cultura, no desporto e nas carreiras profissionais tem sido formidável. Mas a sociedade ainda é tolerante perante o assédio, a violência doméstica e a desigualdade. E nem sempre a justiça, ou antes, nem sempre os magistrados estão atentos à desigualdade e à opressão que resultam do machismo. Mas os progressos recentes permitem alguma esperança.

 

Portugal é um país analfabeto? Não. Já não. Mas ainda há analfabetos. Talvez meio milhão de portugueses actualmente vivos nunca leram um jornal nem escreveram um bilhete postal. Assim morrerão. Porque não soubemos tratar deles quando estavam com tempo e cabeça. Porque o nível médio geral da educação e da formação dos portugueses é, há vários séculos, baixo e muito inferior ao dos países europeus e ocidentais, mesmo até do que alguns países de outros continentes. Portugal nunca dedicou à educação, à cultura e à ciência o que poderia e deveria ter consagrado. Em geral os portugueses foram muito tolerantes com a ignorância.

 

Portugal é um país fascista? Não. E apesar de o seu número estar talvez a crescer, já quase não há fascistas em Portugal. Há quem considere que a democracia não resolve os problemas nacionais, conduz à decadência da nação e corrompe as almas e os espíritos. Como há quem pense que as liberdades são prejudiciais e que os cidadãos não têm igualdade de direitos. Há ainda quem queira expulsar ou oprimir imigrantes, estrangeiros e refugiados. E quem confie absolutamente na autoridade indiscutível. Mas a maior parte dos portugueses, assim como as instituições, as empresas e as organizações, prefere a democracia e as liberdades e não tem saudades da ditadura.

 

Portugal é um país subdesenvolvido? Não. Mas ainda é pobre. E muito desigual. A sua história, a complexidade das suas estruturas sociais, as suas relações externas, os seus costumes, a sua estrutura económica e a sua expressão cultural fazem do país uma nação desenvolvida. Apesar de pobre e inculta. Verdade é que é talvez o país mais pobre ou um dos mais pobres entre os ricos, o que reforça a sua aparência de pertencer ao “terceiro mundo”. Com quase mil anos de independência, não exibe as principais características dos chamados subdesenvolvidos.

 

Portugal é um país europeu? É. Sim. Mas dá tantos sinais de não querer ser ou de parecer não ser! Em grande parte da sua história, Portugal realizou-se fora da Europa. Ou antes, muito fora da Europa. Na verdade, o seu ponto de partida, a sua base, o essencial das suas crenças e dos seus costumes eram europeus. Mas o seu papel no mundo desempenhou-se externamente. Foi o seu papel no mundo que fez o seu lugar na Europa. Mal ou bem, em paz ou violência, com amigos ou inimigos, entre iguais ou submissos, Portugal fez o seu lugar, mesmo na Europa, graças ao que fez no mundo. Isso acabou. O mundo mudou. O que mais segura e enquadra Portugal é hoje a Europa. A Europa é a amarra sólida do país. É na Europa que Portugal encontra hoje os seus parceiros e o seu destino. É na Europa que o país encontra mais factores de identidade e desenvolvimento. É na Europa que Portugal pode cultivar as melhores artes, as maiores qualidades cívicas e os mais constantes valores morais.

 

Nem sempre parece, mas Portugal é melhor do que parece.

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Público, 17.12.2022

 

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16.12.22

Quando a culpa é das alterações climáticas - III

 

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15.12.22

A extrema-direita e o combate político


Por C. B. Esperança

O populismo não dispensa a mentira e a calúnia como armas. A emergência de políticos neofascistas, chegados ao poder por via democrática, infetou o debate político e mostrou a fragilidade das democracias liberais, as únicas que permitem a contestação e respeitam os direitos humanos e a separação de poderes do Estado.

Trump e Boris Johnson, sobretudo o primeiro, puseram em risco o regime em países de longa tradição democrática. A mentira e a calúnia foram os instrumentos do seu êxito. Os EUA, sob Trump, foram a fonte inspiradora dos neofascistas europeus.

No Brasil, habituado a ditaduras e golpes de Estado, surgiu um fascista tropical a apelar ao exército para promover um golpe de Estado ao longo do seu mandato, e já depois da eleição do adversário, que um juiz corrupto prendeu, agora o PR eleito. Incitou o golpe promovendo uma centena de generais a marechais, com pingues aumentos de ordenado, dotando decerto o Brasil com mais marechais do que o resto do mundo.

Na Europa, além do risco que correu o Reino Unido, chegaram regimes autoritários à Hungria, Polónia, Chéquia e Eslováquia (Grupo de Visegrado). E note-se que nenhum país dos que estiveram sob domínio da URSS tem hoje uma democracia plena.

Recentemente, o neofascismo chegou ao governo de Itália, e há neonazis a treinarem-se nos dois lados da fronteira da Rússia com a Ucrânia, enquanto populações civis morrem ao frio, à fome e sob bombas ou se refugiam noutro país, em busca de paz.

Há pouco, sentimos calafrios com a descoberta, na Alemanha, de uma rede de neonazis disposta a derrubar a democracia. Em Portugal foi noticiada a infiltração de fascistas nas forças policiais e bastou a demissão de um, que chamou traidor ao PR, para que o mais absoluto silêncio tenha pairado na comunicação social.

Um acidente de automóvel, em que seguia um ministro, levou a que este fosse arguido por, nada menos, homicídio involuntário. Quando o Tribunal deu como provado que a vítima mortal atravessou a autoestrada em local não sinalizado, ilibando o condutor da culpa pelo acidente, já o ministro se tinha demitido, e a campanha diária terminou em silêncio, imediatamente, sem arrependimento ou um mero pedido de desculpas.

Agora, depois de o futebol ter ofuscado a pandemia e a guerra, com o país inundado por chuvas torrenciais, não faltou a gravação áudio, onde um alegado bombeiro, em Lisboa, se queixava de estar a tirar água de uma suposta garagem do primeiro-ministro, dizendo que era uma vergonha, perante as inundações, que se desviassem recursos para acudir à garagem do PM, e que a vergonha devia chegar ao conhecimento do Chega.

Às milícias fascistas nas polícias procura-se estendê-las às corporações de bombeiros, e o silêncio dos media assume foros de cumplicidade.

A democracia precisa de democratas, mas quando Cavaco defendeu a coligação do PSD com o partido fascista no Governo Regional dos Açores, ninguém criticou o salazarista.

Os que mais devem à democracia são os que mais  a desprezam.

Ponte EuropaSorumbático

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13.12.22

Quando a culpa é das alterações climáticas - II

 

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Quando a culpa é das alterações climáticas - I


 Lisboa 2014

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11.12.22

A sotaina do pecador

Por Antunes Ferreira

Missa aos domingos na igreja de Nossa Senhora das Dores complementada no Galão, ali à rua da Beneficência, por bica com cheirinho e pastel de nata para o pai Januário, chá de camomila e queque para a mãe Alzira e um galão e tosta de queijo e fiambre em pão de forma aparado para o Janeca, de nove anos, filho extremoso do casal Rocha Monteiro. O rame-rame só se interrompia quando o pater familiae andava por fora (era caixeiro-viajante de roupas interiores para senhoras Triumph e arriscava o seu latinório pois quase acabara o Seminário dos Olivais.

 

De seu nome completo Januário da Costa Figueiredo, 42 anos, sócio número 187.096 do Benfica, vinha de uma família humilde, natural de Silgueiros, no distrito de Viseu, fizera a escola primária e por empenho do tio Jacinto entrara para o Seminário com o destino traçado: ser padre. Cumprira dezanove anos, fora à terra comemorá-los, a sotaina exibida encantara uns abespinhara outros, convidaram-no para uma pinga na taberna do Ezequias. 

 

Vou, não vou, se calhar parece mal, estou quase a receber ordens, mas se recuso também não cai bem, pensam que reneguei a origens, uma merda, mau, já estou a pecar em pensamento por palavras, mas Deus em Sua infinita Bondade vai perdoar-me…” Persignou-se e foi. “Diga lá Januário se esta bicha não é de estalo? Melhor do que ela não há no nosso distrito; qual quê, em todo o país1 Medi-la com o vinho da missa é um pecado mortal…” O Ezequias ria-se, desbragado, os outros igualmente e foram-se enchendo os copos de vidro grosso.

 

Grosso chegou a casa o Januário,  batina enlameada, tinha chovido  a potes, às ruas da aldeia nem cheiro de asfalto ainda surdira. “Oké que tu andaste a fazer pra vires nestes preparos?” interrogara a mãe Esperança, na esperança de resposta satisfatória, enquanto o pai Arnesto enrolava um cigarrito “estas mortalhas são piores que o Deus me livre” e plácido acrescentava: “Ó mulher, não tens nada com isso, o moço está de férias!”

 

Pé à frente, pé atrás, o ante padre meteu-se no seu antigo catre tentou descalçar s botas, e quando depois de uma grande luta com os atacadores, atirou-as para um canto despiu-se enfiou.se na cama, arrotou várias vezes, chegou-lhe um vómito à boca, mas por fim adormeceu. Sonhou – nunca tal lhe acontecer – com a filha do Ezequiel, a Alzira, que andara com ele na escola e fora para Lisboa fazer não sabia ele o quê.

 

Raio de sonho aquele, tentação do Diabo. Descobria-se na cama com ela a seu lado, fumando entre eles o mesmo cigarro trocado de boca em boca ambos nus e suados, o Sol espreitava pelas frinchas das persianas, depois de uma noite desvairada. Começara com o encontro no Galão, pastelaria que frequentara com os progenitores quando gaiato.

 

Logo o sonho avançara a um ritmo alucinante; Alzira era exactamente como ele a imaginara (mas quando?) uma fêmea completa da cabeça aos pés, moldada a preceito, simpática e airosa – sem ser de beleza estonteante – boa conversadora e, pasme-se. Culta. A dada altura, quando recordavam a dona Clélia, professor que utilizava a menina dos cinco olhos tocara-lhe na mão e ela nã a retirara, enquanto as pernas d ambos trocavam galhardetes.

 

Ela comentara que a sotaina lhe caía bem, mas qual o motivo que o levara para o sacerdócio ele que era um perfeito homem com características evidentes que satisfariam qualquer mulher e embrenham-se numa polémica amigável sobre o celibato argumentado Alzira que os pastores protestantes casavam e não era por isso que não serviam melhor Deus.

Nesse preciso momento acordara com a boca a saber a papel de música e uma decisão inabalável. Deu à mãe a sotaina pedindo-lhe para a lavar e mandar para Lisboa para onde ele iria nesse mesmo dia no autocarro que saía de Viseu, “Mas meu filho, nem acabaste as férias. Que vais fazer para lá? Estás farto de nós?” Assegurou-lhe que não se tratava nada disso, era apenas um assunto importante do Seminário.

 

Antes de apanhar o táxi do Malaquias (o único que vivia em Silgueiros) passou pelo Ezequiel a perguntar-lhe se queria que ele levasse alguma coisa para a Alzira e o taberneiro além de lhe dar o número do smartfone dela  entregou-lhe uma caixa com três garrafas daquele tinto, bebida de deuses que Januário provara e (re)provara no dia anterior.

 

Mais adiantou o pai da moça que ela trabalhava como secretária numa firma de arquitectos, ganhava bastante bem, comprara um T2 na Alta de Lisboa, sozinha, até lhe deu a morada. Que fizesse boa viagem. Apenas estranhou vê-lo vestido à civil, mas soltou umas gargalhadas quando Januário o informou do estado em que ficara a  sotaina depois da sessão vinícola e que a fatiota era do seu primo Armando que tinha a mesma estatura dele. 

 

Reitor do Seminário, o cónego Simplício das Neves cruzou os braços, ergueu os olhos para o seminarista em pé defronte da sua secretária: “Tu que já és um acólito vens dizer-me que já não queres ser padre! Coisa estranha! Mas como acredito no livre arbítrio, gostava de saber qual o motivo que te leva a tomar uma tal decisão tão grave?”

 

Firme no seu propósito, Januário encheu o peito e soltou: “Saiba Vossa Reverência Senhor Reitor que desde o princípio vim para cá ao engano. Não é que me falte a Fé; creio em «quase» tudo o que a Igreja postula. Porém, é no «quase» que reside a questão”. Corria entre os clérigos que o reitor poderia ser o futuro Patriarca, Cardeal, e (quem sabe?) até ascender à cadeira de São Pedro. 

 

Qualidades não lhe faltavam, entre as quais avultava a diplomacia. Por isso fitou Januário como um pai olha para um filho, fez um meio sorriso: “Pronto, meu amigo, não falo mais nisto. Tens algum projecto para fazer? Quando queres sair? Em que te posso ajudar? Tens sempre aqui um telhado para te acolher e uma mesa para te alimentares em caso de necessitares.” E levantando-se, deu-lhe um abraço desejando-lhe toda a sorte do Mundo.

 

Emalados os poucos pertences, Januário ligou para a Alzira, admiradíssima com o telefonema. Combinaram encontrar-se no dia seguinte para ele lhe entregar as garrafas e trocar dois dedos de conversa. Onde? Podia se no Galão? Podia. C’os diabos, pensou Januário, e o sonho? Que se lixasse o tal sonho. No Galão ele não iria galar a jovem, poi não?

 

Mas há sonhos e sonhos. O apartamento na Alta de Lisboa com vista para o Parque das Conchas e dos Lilases era moderno, bonito e bem mobilado. Terminara ali o galão do Galão.  E decorrera ali também a parte do sonho que levara ao abandono do Seminário. Foi uma luta ardente, pele contra pele, beijos percorrendo os recônditos mais íntimos de ambos, penetração suave depois galopante, caricias inebriantes, chupões desvairados…

 

E quando, como no sonho havido em  Silgueiros trocavam o cigarro salivando o sabor dos lábios de cada um, a Alzira sussurrou-lhe ao ouvido: “Tu és muito melhor todo nu do que com a sotaina…” 

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10.12.22

Grande Angular - Devolver e reescrever a História

Por António Barreto

Há vários anos que se discute o tema da devolução de bens patrimoniais aos países de origem. Muito se disse, muito se discutiu. Ainda nos lembramos de Melina Mercouri, Ministra grega da cultura, que, há mais de trinta anos, exigiu a devolução dos mármores ditos Elgin, com origem no Pártenon e levados para Londres há mais de dois séculos. De vez em quando, um “activista” africano ou europeu, um ministro mais atrevido ou até um presidente mais decidido (Macron, por exemplo) voltam a levantar o problema. Assim pretendem dar nas vistas, seduzir governos africanos, dar contrapartidas para negócios de matérias primas ou mesmo contribuir para o que entendem ser as novas relações de cooperação. Estamos agora num desses momentos em que políticos e activistas decidiram renovar a polémica. Mais: já houve vários museus, públicos ou privados, europeus ou americanos, que decidiram devolver umas peças com origens mais controversas ou mesmo escandalosas. Em Portugal, a polémica chegou tarde, mas chegou. Ou antes, está a chegar. O Ministro da Cultura Adão e Silva referiu-se ao problema. Ainda há poucas reacções públicas, mas já conhecemos o ponto de vista crítico e muito certeiro de um conhecedor destes problemas, o historiador João Pedro Marques (Observador de 7 de Dezembro).

 

Ao tornar públicas as suas intenções de estudar a questão da eventual restituição, o ministro da Cultura acertou. Esteve bem igualmente ao garantir que qualquer decisão seria precedida de investigação cuidadosa sobre a origem e o modo de aquisição desses bens. Também não esteve mal ao iniciar o envolvimento oficial neste processo que está na moda há dezenas de anos.

 

O Ministro errou ao anunciar, não que mandava estudar, sem preconceitos, mas que iria analisar o problema tendo em vista a devolução. Quer isto dizer que a intenção está manifesta e que já se está a pré-conceber as conclusões. Pior ainda, que se está a condicionar os “investigadores”. O Ministro não pretende apenas conhecer a situação, quer restituir e devolver, só que não sabe o quê, a quem e como.

 

Esteve mal ainda quando veio a público anunciar que não haveria debate prévio ou simultâneo. Não faz sentido, em democracia, que um assunto de interesse geral, público, nacional e cultural, não seja livremente debatido na praça pública.

 

O Ministro da Cultura errou ao garantir que a missão seria reservada, séria e discreta. Não disse a palavra “confidencial”, mas deixou bem claro que era disso que se tratava. Enganou-se absolutamente ao afirmar que o debate sobre uma matéria como esta, por ser polémico e delicado, deveria ser precedido de estudos reservados. Ora, tudo leva a crer que é exactamente o contrário: por ser controverso e difícil, o problema deve ser objecto de discussão aberta e ampla, para a qual toda a gente possa contribuir, sejam académicos, activistas, coleccionadores, comerciantes, profissionais e amadores. O assunto interessa não só a pessoas com ligações directas aos bens, mas a qualquer pessoa preocupada com a cultura, a identidade, a política e as relações internacionais.

 

O Ministro da Cultura foi desastrado ao dar a entender que o Estado deverá ter uma visão de conjunto, que é como quem diz um plano de restituição, antes de ouvir toda a gente interessada e de conhecer as opiniões fundamentadas. O Ministro mostrou a intenção de devolver bens patrimoniais às antigas colónias, como se não houvesse bens de outros países, adquiridos noutras comunidades, de outros Estados ou através de intermediários de países independentes.

 

É possível, provável mesmo, que se tenham cometido roubos e actos violentos para obter objectos de arte. É certo que alguns desses bens foram objecto de massacres, assassinatos e saques (no Benim, por exemplo). Mas também é certo que tal se fez em todos os tempos, em todos os países, em todos os continentes e relativamente a toda a espécie de bens. Como é verdade que alguns países foram autores desses actos (Portugal, por exemplo), ou vítimas (Portugal, por exemplo), ou intermediários (Portugal, por exemplo). Como ainda é certo que muitos desses bens vieram de países já independentes, colonizados ou não. Quer dizer: saqueados, roubados, oferecidos ou comprados. Que fazer com esta variedade de situações?

 

Como agir com os bens em mãos privadas, adquiridos no mercado ou recebidos em herança. Deverá fazer-se uma lista de pessoas? Um exame às casas privadas? Uma exigência de declaração? Só os bens públicos é que serão objecto de investigação e eventual devolução? E os bens privados, tão ou mais valiosos?

 

De que bens e de que culturas estamos realmente a falar? África, Ásia, América Latina, Pérsia, Índia, Egipto… E os bens com origem em Portugal? E os bens portugueses em mãos europeias? Que fazer com bens transaccionados dezenas de vezes entre europeus, asiáticos e africanos? Que fazer com milhares de bens, muitos de grande valor e raridade, transaccionados todos os anos nos mercados e nos leilões de todo o munto, com origem em países africanos e asiáticos já independentes? E se os vendedores são comerciantes conhecidos?

 

Não custa imaginar que, caso a caso, um país ou uma instituição decida devolver um bem a um outro Estado. Sobretudo se pensarmos, por exemplo, em bens que fazem parte do meio construído, como sejam pirâmides, esculturas, baixos relevos, obeliscos, edifícios, muralhas e outros bens “pesados” que foram literalmente arrancados. É também admissível que certos saques tenham sido particularmente ilegítimos e violentos. Há casos conhecidos que poderiam ser analisados com o espírito aberto. Há ainda lugar para devolução de bens reclamados por legítimos proprietários. Mas, proceder a uma lavagem da história e a uma reescrita da mesma é do domínio do mais baixo oportunismo.

 

Até a ideia de inventário deve ser eliminada. De que estaríamos a falar? De elenco público e privado? Feito por quem e com que poderes? E o património português que ficou em África? E os bens de portugueses apropriados por africanos? E o património português que se encontra em países europeus? E o património africano em mãos de portugueses de origem africana? E o património chinês, tailandês, indonésio, colombiano, mexicano, persa, egípcio e árabe vindo de países que nunca foram colónias portuguesas?  A mera ideia de inventário pressupõe logo roubo, ilicitude, apropriação indevida, desconfiança e suspeita. Ora, não se pode só suspeitar de uns e não de outros. Não se pode suspeitar de brancos e não de negros, nem de mestiços, chineses, indianos ou árabes. 

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Público, 9.12.2022

 

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