Revejo-lhe
o sorriso claro, o sentido religioso da vida, a beleza sem mácula de
gostar dos outros, a capacidade de compreender a grandeza dos
desventurados, essa reserva no sofrimento e essa total deposição de
glória. José Antunes, meu camarada, meu parceiro de andejos por montes e
vales, no varejo da reportagem, no garimpo do oiro da notícia. E
ouço-o: "Vamos a isto, amigo Bastos!, vamos a isto!" Sempre me tratou
assim, amigo, num laço de afecto que durou até ao fim da sua vida. "Como
é que está o amigo Bastos?", perguntou à mulher, sabedor de que eu fora
internado, pela mesma ocasião em que, a ele próprio, a cirurgia tentava
extrair um tumor no cérebro. Dias trágicos, dramáticos ou radiosos,
esses, em que, no Diário Popular, oferecemos tudo o que havia a
oferecer. Ele com a máquina fotográfica sempre pronta a disparar; eu com
o coração sem rugas a procurar descobrir o que se escondia, nos outros,
para lá do meu olhar.
Percorro, agora, os jornais, as revistas e
as televisões que recuperam muitas e muitas imagens obtidas pelo meu
amigo, há quarenta anos, na festa de Abril. Nem uma leva o nome do
autor, num anonimato obsceno, que tem muito que ver não só com
ignorância, mas também com inveja e com o desprendimento ético do meu
amigo. Durante esses dias tumultuosos e febris o Zé Antunes fotografou
tudo o que era imprescindível fotografar. Uma tarde, revelou-me que
tinham "desaparecido", do laboratório do jornal, três rolos de negativos
por ele considerados "históricos." Disse-o sem lamúria nem queixume,
acentuando, apenas, que desconfiava de quem fora o usurpador.
Um
mestre no fixar do instante mágico; um artista que apreciava a
incomparável ternura humana, e detestava a brutalidade da fome, da
miséria e do infortúnio marcante nas classes pobres de onde ele e eu
provínhamos. Era, acaso, essa origem que nos aproximava, dois feitios
opostos, ele calmo, sereno e conciliador; eu, brigão, agitado, mas
também cheio de compaixão pelos outros.
O Pedro Foyos, da mesma,
já rara, estirpe antiga, chegou a organizar um livro de fotos do amigo
comum. Mas o grande acervo de imagens talvez a família ainda o retenha:
um modo diferente, mas muito belo, de olhar a cidade e de a cidade falar
como quem olha e fala da coisa amada.
Anda por aí um bulício de
aplausos e uma cerimónia de entrega de louros imerecidos, a quem somente
tem sabido sobreviver às contingências do momento. O Zé Antunes foi um
dos maiores repórteres fotográficos deste país; um jornalista cujo génio
se escondia numa modéstia elegante. Mergulhou no tempo que lhe coube
viver com a consciência de quem quer dizer dos outros a natureza da sua
pessoal grandiosidade. Com uma máquina fotográfica que, nas mãos dele,
possuía alma e coração.
«DN» de 30 Abr 14