30.10.23

EM HARMONIA COM A NATUREZA

Por A. M. Galopim de Carvalho

O nosso Planeta, velho de cerca de quatro mil quinhentos e quarenta milhões de anos, lar da biodiversidade, incluindo a humanidade inteira, não foi sempre como hoje o conhecemos. Esta nossa Terra, um ponto azul na imensidade do espaço cósmico, é o resultado de uma longa e complexa evolução, e o Homem é o fruto mais jovem dessa mesma evolução, numa cadeia imensa de inter-relações em que participaram as rochas, os solos, a água, o ar e os seres vivos. Assim, interessa ao cidadão em geral, como criatura consciente que é no quadro da Natureza, conhecê-la melhor, a fim de bem avaliar os problemas que se lhe põem no seu relacionamento com o ambiente natural. 

 

Na evolução da matéria, segundo Teilhard de Chardin (1881-1955), o grau de complexidade que esta assumiu foi crescente desde o início do tempo deste nosso Universo, isto é, nos treze mil e oitocentos milhões (13 800 000) de anos da sua existência. Das partículas subatómicas primordiais passou-se aos átomos e, só depois, às moléculas, cada vez mais complexas. A partir destas, a evolução caminhou no sentido das células mais primitivas que fizeram a sua aparição na Terra há mais de três mil e oitocentos milhões de anos (3 800 000 000 anos), pensa-se que através de uma cadeia abiótica de estádios progressivamente mais elaborados, onde o ensaio e erro e o sucesso ou insucesso das soluções encontradas, isto é, os produtos sucessivamente sintetizados, tiveram a seu favor tal imensidade de tempo, da ordem de 75% ou mais da idade do Universo. Dos seres unicelulares, rudimentares, aos primeiros organismos pluricelulares, surgidos há setecentos a oitocentos milhões de anos, foi consumido apenas cerca de 20% desse mesmo tempo. Restou, pois, pouco mais de 5% para que, numa nova cadeia de complexidade, sempre crescente e a ritmo cada vez mais acelerado, se caminhasse dos invertebrados primitivos ao Homem. Do nosso aparecimento na Natureza, há cerca de 2,3 a 2,5 milhões de anos, como Homo habilis, onde representamos o passo mais recente da escala evolutiva, aos dias de hoje, foi um passo de apenas 0,0001% do tempo universal da criação. 

 

Face à eternidade do tempo que falta cumprir a este nosso planeta, estimado em cinco a seis milhares de milhões de anos, a presença do Homem na Natureza é ainda extraordinariamente curta e insignificante à escala da evolução biológica e, portanto, passível de erro, como aconteceu com inúmeras espécies no decurso dessa mesma evolução. 

 

O Homem, feito dos mesmos átomos de que são feitas as estrelas, os minerais, as plantas, os outros animais e tudo o mais que existe, é matéria que adquiriu complexidade tal que se assumiu com capacidade de se interrogar, de se explicar e de intervir no seu próprio curso e no do ambiente onde foi “fabricado”. Ele é o estado mais avançado de combinação dessa mesma matéria, capaz de fazer aquilo a que chamamos Ciência, isto é, observar, descrever, relacionar, explicar, induzir, prever. O Homem, na sua possibilidade de adquirir conhecimento e de o transmitir, é a manifestação mais elaborada da realidade física do mundo que conhecemos, na qual foi consumida a totalidade do tempo do universo. Assim, a Ciência, através do Homem, pode ser entendida também como expoente máximo da matéria que se questiona a si própria. Pode dizer-se que a Natureza “pensa” através do cérebro humano e, com igual razão, pode aceitar-se que o Homem deu voz à Natureza. Tais capacidades colocam-nos a nós, humanos, numa posição de grande vantagem entre os nossos pares no todo natural. Mas teremos nós o direito de gerir a Natureza apenas em nosso proveito, agredindo-a como tem sido regra, sobretudo, a partir da Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, e em crescimento exponencial nos tempos que se seguiram? 

 

A Terra, no quadro em que se nos apresenta hoje, é o resultado de um sem número de agressões sofridas ao longo da sua velhíssima história. Contudo, e em consonância com James Lovelock (1919-2022), na sua hipótese “Gaia”, a Terra é um corpo que se autorregula e, como tal, sempre soube encontrar resposta a todas essas agressões e vai, sem dúvida, continuar a fazê-lo. Os danos que lhe podemos causar, no mau uso que dela fizermos, é mudar-lhe as condições que nos são favoráveis e que bem conhecemos, dando origem a outras, ainda desconhecidas, que nos poderão ser altamente adversas. Assim, ao atentar contra a Natureza, o Homem está, certamente, a atentar também contra si próprio, contra a humanidade. Acaso deixou de existir mundo natural aquando das grandes extinções em massa, como a que se verificou há cerca de 65 milhões de anos que, entre muitíssimos outros grupos biológicos, levou ao desaparecimento dos dinossáurios não avianos? 

 

Numa ânsia desenfreada de lucro e de prazer, a civilização industrial incontrolada pode desencadear uma nova extinção em massa que, certamente, a vitimará a ela também. Porém, o planeta – e os geólogos têm consciência disso – irá prosseguir, mesmo sem a inteligência do Homem, e acabará por encontrar novos caminhos, em obediência apenas às leis da física, incluindo as do acaso, podendo voltar a ensaiar um outro ser inteligente ou, até, mais inteligente do que esta versão moderna do Homo sapiens, que somos nós. Para tal só necessita de tempo, de muito tempo, e isso não lhe irá faltar, uma vez que como se disse atrás, estimamos em mais cinco a seis mil milhões de anos a sua existência como planeta, até que o Sol, na sua evolução como estrela, o envolva num imenso brasido. 

 

Perante quem deve o Homem prestar contas da maneira como decide articular-se com a Natureza? É, sem dúvida, aos outros Homens, ou seja, à Sociedade, que cada um de nós tem de responder pelo poder de decisão e pela liberdade de acção que as nossas imensas capacidades nos conferem. Se o Homem deu voz à Natureza, a Sociedade deu-lhe ética e assume-se no direito de estabelecer regras entre os seus pares no usufruto deste vasto condomínio. Sendo certo que a capacidade de intervenção de cada indivíduo, como elemento consciente desta mesma Sociedade, está na razão directa das suas convenientes informação e formação, importa, pois, incrementá-las. E incrementá-las é facultar-lhe o acesso aos conhecimentos que, desde sempre, a Ciência nos vem revelando.

 

Etiquetas:

28.10.23

Grande Angular - No círculo do Inferno

Por António Barreto

O secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, teve uma frase infeliz, pouco cuidadosa, susceptível de interpretações contraditórias, erradas ou equívocas. A não ser, evidentemente, que ele quisesse dizer exactamente o que disse. Se for esta última hipótese, o assunto é mais grave e o tema mais importante do que um mero deslize de linguagem. Com efeito, tal quereria dizer que o Hamas tem explicação e motivos para fazer o que faz. Ora, quem tem explicação e motivos tem, sempre ou frequentemente, desculpa. O massacre de 7 de Outubro teria assim as suas raízes nas decisões das Nações Unidas de 1947, na opressão israelita, na desigualdade social, nos colonatos e na pobreza do povo palestiniano. O que quer dizer que, além do Hamas, também o Hezbollah, a Jihad, a Al Qaeda, o Irão e a Síria têm desculpa e justificação. O que significa que também a Alemanha nazi, os Estados Unidos, Israel, a Rússia, o Congo e o Ruanda têm explicação e justificação. O que se aplicaria ainda a Hitler, Mengele, Eichmann, Estaline, Mao Tsé Tung e Pol Pot. O que nos ajuda a perceber as causas do comportamento de Al Capone, Pablo Escobar e Jack o Extirpador. De acordo com o argumento inicial, toda esta gente, todos estes povos e os respectivos governos foram sempre meros agentes históricos, veículos sociais, protagonistas involuntários, sem responsabilidades pessoais, sem culpas de partido ou de grupo, sem livre escolha dos seus actos. Todos os comportamentos sociais e políticos teriam assim justificação. O que é diferente de explicação. O que diminui a culpa e a autoria. E reduz as responsabilidades.

 

Evidentemente, não deveria ser necessário dizê-lo, tudo tem as suas origens e as suas causas. Como tudo tem o seu contexto e a sua circunstância. Cada momento da história de um povo tem as suas grandezas e as suas misérias. Mas nada permite que as glórias e os sofrimentos passados justifiquem e desculpem os crimes de hoje, as agressões, os massacres e as violações do direito internacional. O massacre de 7 de Outubro não tem justificação nem desculpa. É um acto de pura agressão e de mortandade. Como tal tem de ser julgado. A responsabilidade não é de 100 anos de pobreza palestiniana, nem de 50 de colonatos. É, sim, das escolhas e das decisões dos dirigentes do Hamas e dos seus aliados.

 

            Compreende-se a reacção de Israel, que pretende justamente liquidar um movimento político que proclama a destruição de um Estado e de um povo. Mas, pela mesma ordem de ideias, não se compreende que esse mesmo Estado recorra a meios condenados pelo direito internacional, tal como o bombardeamento sistemático de populações. Não por causa do passado, nem da história, nem do contexto. Mas simplesmente por causa da humanidade e da vida. Nem um nem outro se justificam. A pobreza não desculpa o 7 de Outubro. Como os pogroms não perdoam o bombardeamento.

 

Globalmente, no universo das rivalidades, no panorama das relações internacionais, estou do lado de Israel. Não porque esteja sempre de acordo com os seus governos. Não porque aceite tudo quanto fazem. Também não por tudo o que são e defendem. Nem por serem brancos. Nem ainda por terem sido vítimas de perseguições, de expulsões e de massacres. Mas apenas e tão só porque, tudo somado, Israel está mais do lado da liberdade e da democracia do que os outros países seus rivais, adversários e inimigos. Em caso de divergência e luta, não é a cor da pele, a religião, a tradição, a etnia e a língua que me fazem tomar partido ou simpatizar com uns, em detrimento de outros. É o lado da liberdade e da democracia. Em caso de conflito, nenhum critério, pele, língua, etnia ou religião, me faz tomar partido por um qualquer país, em qualquer parte do mundo, Rússia, China, América ou África. Mas a democracia, sim. Não tenho dúvidas: em última instância, Israel fará sempre mais pela democracia do que o Hamas, o Hezbollah e os governos do Irão, da Síria ou da Rússia. Como também não tenho dúvidas em condenar a política do governo de Israel e de Netanyahu relativamente aos colonatos, ao reconhecimento do Estado da Palestina e ao embargo contra Gaza. Mesmo assim, estas políticas não são argumento suficiente para ter uma qualquer simpatia por quem quer destruir o Estado de Israel. E nem mesmo a compaixão pela sorte do povo da Palestina me faz acreditar no Hamas e desejar a extinção de Israel.

 

Mais do que uma moda, é um vício do pensamento. Tudo justificar pelo contexto, tudo explicar pelas origens e pelas causas, tudo desculpar pelo sofrimento de alguém. O assassino é filho de alcoólico, os seus actos necessitam ser compreendidos pela condição paterna. O ladrão cresceu na barraca, os seus gestos compreendem-se pela origem social. O desordeiro nasceu numa colónia, a sua conduta tem essa explicação. O traficante de droga é filho de pais divorciados, a falta de amor explica as suas acções. O violador é de uma família de capitalistas, os seus procedimentos têm essa justificação. O activista viveu sob domínio, pode cometer actos de terrorismo. Vítimas da colonização, da prisão dos pais, da etnia de origem, da condição da família, dos bairros de nascimento, da falta ou do excesso de religião dos progenitores, tudo é invocado para explicar e justificar. As escolhas de cada um, individuo, grupo, comunidade ou povo, têm sempre explicação e justificação. O crime é filho da miséria, da pobreza e da submissão. A violência é o resultado directo da desigualdade. Um povo historicamente perseguido tem o direito de perseguir outros. Uma comunidade submissa tem autoridade para destruir outras. Noutras palavras ainda: as opções de cada um não são as opções de cada um, são o resultado das origens. Os gestos dos indivíduos, das classes e dos povos não são as suas decisões livres, mas tão só os resultados dos processos históricos, das condições sociais e dos percursos de vida. Este é o reino da indiferença, da ausência de lei, da incerteza da responsabilidade e da marginalização dos indivíduos.

 

É também o reino da neutralidade, doença da humanidade, tal como diria Dante: é o local mais quente do Inferno, mais insuportável, reservado para os neutros, para os que escolheram a neutralidade em tempos de crise e de confronto. Reservado também para os obcecados com o compromisso. Não necessariamente o equilíbrio razoável, mas o compromisso entre tudo e todos. Ora, não há equidistância entre paz e guerra. Entre democracia e ditadura. Entre liberdade e totalitarismo.

.

Público, 27.10.2023

Etiquetas:

21.10.23

Grande Angular - O fogo, a razão e o sentimento

Por António Barreto

Há momentos na história em que a razão se encontra cercada por anéis de fogo: quase com estas palavras, foi um pensamento que nos deixou Marguerite Yourcenar a propósito de outros tempos e outros locais. Eram tempos de combates de morte, em que se afrontavam religiões e se digladiavam impérios e senhores. Momentos desses repetem-se ao longo dos tempos, nunca muito parecidos, a não ser na devastação do mundo, na destruição da razão e na perda de humanidade. Tivemos disso durante o século XX. Parece agora, neste novo século que se iniciou com esperança e confiança, que entramos gradualmente, mas depressa de mais, numa dessas épocas perigosas. Na Ucrânia e na Palestina, na Europa de Leste e no Próximo Oriente, tal como em partes importantes de África, chegámos a um desses momentos com todos os perigos já detectados. Aumentam as guerras, cresce o terrorismo, recua a democracia, diminui a coexistência e agrava-se a rivalidade entre países. Apesar de insuficiente, o retrato é aterrador.

 

Por mais que tentemos arranjar um “lado” e definir os “bons” e os “maus”, sabemos, no nosso íntimo, que encontrar lados já é mau caminho e que identificar os bons e os maus é um gesto recheado de mentira e de riscos. Também sabemos, para agravar as coisas, que é importante tomar partido, ser solidário, condenar quem o deve ser e apoiar os justos que o merecem. Mas nada disto é simples. Nem durável. Apoiar o lado da democracia, da liberdade e dos direitos humanos é imperioso. Mas sabe-se que, deste lado, os perigos, as distorções e as perversões são mais que muitos.

 

Condenar países ou nações é absurdo. É como condenar religiões. Ou povos. Mas pode condenar-se um governo, um partido ou um movimento, sem necessariamente condenar um Estado ou um povo. Condenar o Hamas, pelo terrorismo, não implica condenar os Palestinianos. Castigar o Hamas ou o Hezbollah não significa castigar os povos respectivos. Tal como condenar Netanyahu e as suas políticas não implica condenar Israel nem os Israelitas, muito menos os Judeus.

 

Aliás, em relação aos países ocidentais, está bem mais estabelecido que a condenação dos governos e das políticas não significa criticar as nações e os Estados. O governo italiano, o primeiro-ministro espanhol, o partido independentista catalão, o governo americano ou o presidente francês podem e devem ser criticados sem piedade, o que não quer dizer que queiramos destruir ou aniquilar os respectivos Estados. Criticar a política europeia ou americana actual não implica que queiramos pôr em causa a América como nação ou a Europa como União!

 

Estas verdades simples parecem não se aplicar ao Próximo Oriente. A amálgama entre Estados, povos, religiões, governos e dirigentes políticos é a destruição do espírito, a tradução exacta do clima de guerra e de irracionalidade. 

 

Toda esta questão do Próximo Oriente não é evidentemente apenas a questão do Próximo Oriente. É também da rivalidade entre as grandes potências ou entre vários países directamente interessados e vizinhos. É ainda uma questão de recursos financeiros, de petróleo e de gás. E do comércio de armamento. E um problema de nações, religiões, famílias, dinastias e tribos. Estes últimos factores, que envolvem identidade, são os que transformam os conflitos em guerra e morte. Poder político e recursos económicos são já letais em si. Com as identidades nacionais e as religiões, quase tudo deixa de poder ser possível.

 

Por toda a evidência diante dos nossos olhos, nos jornais e nas televisões, mas também por tudo quanto sabemos e se passou nos últimos anos, desde 1948, e nas últimas décadas, desde finais do século XIX, e desde sempre há dois mil anos, esta questão de Israel, da Palestina e do Próximo Oriente não tem solução durável. Poderá ter arremedos de equilíbrio temporário, mas o conflito e a guerra regressarão sempre.

 

A maior parte dos “defensores” dos Palestinianos, designadamente os governos do Irão, da Síria, da Rússia e de vários países árabes da região, não quer saber dos Palestinianos para nada, a não ser para servir de pretexto, isco, carne para canhão e causa piedosa. Os heróis são os Hamas, as vítimas são os Palestinianos. 

 

O Hamas, o Hezbollah, a Jihad islâmica e outros movimentos e partidos têm como objectivo central da sua existência a liquidação dos judeus e do Estado de Israel. Acessoriamente, fazem tudo o que podem para evitar que os projectos de dois povos vizinhos e de dois Estados viáveis tenham uma qualquer hipótese de concretização. Derrotar estes movimentos, sem massacrar o povo palestiniano, é condição essencial para o desenvolvimento de qualquer hipótese de paz.

 

O governo de Netanyahu é hoje um dos grandes obstáculos à paz na região. Em nome da sua sobrevivência, ele e os seus governos fizeram tudo o que puderam para tornar o Estado palestiniano inviável, para desenvolver os colonatos com pura agressividade militar e para manter o povo palestiniano arredado de um tratamento digno. A oposição israelita a Netanyahu, que tanto se manifestou e exprimiu nos últimos meses, é uma das raras esperanças de paz para a região.

 

É indispensável que o corredor humanitário seja permitido. É imperioso, até por uma questão de dignidade humana, levar água, alimentação e medicamentos aos Palestinianos em necessidade e sofrimento. É intolerável que o governo de Netanyahu impeça que esta ajuda chegue a quem dela necessite. É verdade que muitos “terroristas” quererão aproveitar este corredor. Mas também é possível permitir que a ajuda chegue sem que isso signifique que se está a alimentar o terror.

 

Se os Palestinianos forem massacrados, nunca mais a região viverá em paz. E a Europa também não. Se Israel for liquidado, será uma das maiores derrotas da história da democracia. Os países ocidentais, com os Estados Unidos e a União Europeia à cabeça, não têm feito o suficiente e o necessário, longe disso, para obrigar o governo israelita a aceitar a coexistência e a vizinhança de dois Estados viáveis. O governo russo tem feito tudo o que pode para impedir as soluções de viabilidade, para manter o clima de confronto e de guerra em potência. Tal como alguns governos vizinhos, do Irão e da Síria, por exemplo.

 

O que precede não tem provavelmente nenhuma novidade. É tão só uma maneira de evitar o fanatismo, de defender a paz, de reclamar compaixão e de condenar o belicismo. Sem ilusões. Apenas com uma réstia de esperança.

.

Público, 21.10.2023

Etiquetas:

20.10.23

No "Correio de Lagos" de Setembro de 2023


NO JÁ REMOTO
 ano de 1981, quando eu ainda residia em Lisboa, comprei, na Várzea de Sintra, e para ocupar os meus tempos livres, um pequeno terreno baldio com um moinho do séc. XIX muito degradado, juntamente com uma ruína em pedra e uma casa pré-fabricada em madeira, também a desfazer-se. Como se compreende, tive ali muito com que me entreter, desde cortar o mato e as silvas, até reparar e restaurar o que era possível — tudo isso com a ajuda de familiares e amigos que de bom grado sempre apareciam. Curiosamente, muitas das peripécias que lá vivi dariam assunto para outras tantas crónicas, e não resisto a citar algumas, com destaque para a última que, neste momento, ainda aguarda o seu epílogo.

A PRIMEIRA, seria a propósito da ERVA espontânea (que, devidamente cortada, passa bem por relva), que seca no Verão e reverdece com as primeiras chuvas, recordando-me o que se passa nos jardins de Lagos que muitas vezes são regados desnecessariamente. 

NA SEGUNDA, divagaria acerca do FURO que mandei fazer (não havia água canalizada), e que secou ao fim de uns anos, lembrando-me o que actualmente sucede no nosso concelho, com as pessoas que acham que têm direito a toda a água que possam encontrar, sem aceitarem que ela é um recurso colectivo, que vem de montante e segue para jusante, não podendo ser propriedade exclusiva de ninguém.

NA TERCEIRA, recordaria as diversas EMPREITADAS que tive de adjudicar a profissionais (quando se tratava de trabalhos mais especializados, como canalizações e impermeabilizações), profissionais esses que a pouco e pouco foram escasseando, a ponto de actualmente não encontrar nenhum — e isso remete-me para a lei que prevê o arrendamento forçado, ignorando que não existem (pelo menos em quantidade) os profissionais necessários para recuperar as casas devolutas que, obviamente, necessitam de obras.

FINALMENTE, a história da CARTA-CARACOL, e que tem a ver com o meu vizinho do lado. Foi assim:

HÁ ALGUM tempo, um dos terrenos confinantes com o meu foi vendido, tendo o novo proprietário decidido construir nele uma casa. E isso não teria nada de extraordinário se, já depois de tudo tratado (escritura, registo, impostos, projecto aprovado, início das obras e tudo o mais), esse meu vizinho não fosse confrontado com uma acção movida por uma senhora desconhecida, alegando que o terreno lhe pertencia! — e é aí que eu entro, como testemunha arrolada por ele para declarar o que sei acerca do assunto.

E foi nesse seguimento que, em JUNHO passado, recebi uma convocatória do Tribunal de Sintra para lá comparecer no próximo dia 15 de SETEMBRO o que, para quem vive tão longe, não é inconveniente de somenos — e acresce que já tenho experiência de julgamentos adiados em cima da hora, e de outros que se prolongam por vários dias.

Decidi, então, enviar um e-mail, solicitando ser ouvido por teleconferência, e tive a grata surpresa de ser atendido nessa pretensão, através de resposta que, pela mesma via, chegou no dia seguinte. Ora esse e-mail do Tribunal de Sintra, datado de 26 de JULHO, dizia também que eu teria de me apresentar no de Lagos no dia e hora do julgamento, levando comigo a nova convocatória, uma CARTA que NESSE DIA me era enviada por CORREIO REGISTADO.

Sucedia, no entanto, que eu tinha compromissos que me levavam a ausentar-me de Lagos de 7 a 31 de AGOSTO, mas, como ainda faltava muito tempo (recordo que estávamos em 26 de JULHO), não me preocupei muito. Mas o tempo foi passando, o 7 de Agosto chegou... e que é da carta?!

Esperei, em vão, ainda mais 24 horas; depois, verificando também que o serviço SIGA não se aplicava ao meu caso, saí da cidade, pedindo a uma pessoa amiga que fosse vendo a minha caixa do correio. Pois bem, a carta lá chegou, em correio registado, mas apenas em 18 de AGOSTO, tendo sido deixado AVISO para ser levantada na estação dos CTT até ao dia 28. Obviamente, e sob pena de suscitar grande confusão aquando do julgamento, antecipei o meu regresso, para poder levantar a convocatória antes de ela ser devolvida ao Tribunal de Sintra.

E agora ficam algumas perguntas: 

Como poderei saber se a demora da carta (23 dias, para vir de Sintra a Lagos?!) foi devida aos CTT, ou se não foi enviada na data indicada pela Oficial de Justiça no e-mail que me mandou? Tenho esperança de poder obter a resposta no próprio dia do julgamento, visto que estarei em contacto directo com o Tribunal de Sintra.

APOSTILA: Por associação de ideias, não resisto a referir que o número de Julho do “Correio de Lagos”, que recebo pelo correio, estava nas bancas no dia 19 desse mês, e até ao referido dia 8 de Agosto ainda não me tinha chegado às mãos. Talvez isso ajude a decifrar o mistério. Não sei, vamos ver...

“Correio de Lagos” de Setembro de 2023

Etiquetas: ,

No "Correio de Lagos" de Setembro de 2023

 

Etiquetas: ,

14.10.23

Grande Angular - As guerras, os refugiados e as migrações

Por António Barreto

Mais uma vez, Israel está a ser miseravelmente atacado por terroristas. Mais uma vez, os Palestinianos vão ser a principais vítimas. O Próximo Oriente vai ser novamente sítio de desordem e de horror, de sangue e de morte. Para lá da região, grande parte do resto do mundo vai sofrer graves consequências desta guerra. O terrorismo inicial foi o que foi, terrorista. A reacção de Israel está a ser desproporcionada. Na continuação, haverá mais desproporção, que é o próprio das guerras. Não se conhecem guerras equilibradas, proporcionadas e com a justa medida! Se fossem, não eram guerras. Mesmo reconhecendo que Israel tem o direito e o dever de se defender do terrorismo e da guerra não provocada, é previsível que a resposta acrescente violência à violência.

 

É possível que esta guerra e suas consequências tenham efeitos sobre a política israelita, sobre um futuro governo e sobre as políticas ulteriores. E que mudanças políticas em Israel sejam inevitáveis. Como talvez se possa acreditar em que um ou outro grupo terrorista sejam definitivamente derrotados. Mas de uma coisa podemos estar seguros: no mundo actual, a liberdade e a democracia estão ali em causa. Como na Ucrânia. Espera-se, todavia, que o mundo ocidental e democrático, geralmente apoiando Israel, não se deixe também arrastar para aprovar as políticas erradas do governo israelita.

 

A infame ofensiva do Hamas contra Israel provocou milhares de vítimas inocentes. Por falta de preparação e excesso de presunção, a derrota do governo de Netanyahu está também na origem de milhares de vítimas igualmente inocentes. A reacção das Forças Armadas de Israel provocou já milhares de mortos e feridos sem culpas. É provável que esta guerra dure ainda bastante tempo e é possível que se alargue geograficamente. Não está fora de questão que outros países, Estados vizinhos ou distantes e outros movimentos políticos, incluindo milícias, mercenários e grupos terroristas intervenham e se envolvam no conflito. Dadas as circunstâncias da guerra e a configuração do meio geográfico, vai ser, ou já é elevadíssimo o número de mortos e feridos civis, de crianças sem protecção e de idosos indefesos.

 

É provável que as consequências desta guerra sejam terríveis, durante anos, para vários povos e muitos países. Tudo leva a crer que os efeitos económicos, políticos e sociais sejam destruidores e que a paz naquela região e no mundo esteja ameaçada e periclitante. É possível prever consequências muito negativas e efeitos devastadores para as sociedades e as economias europeias, ocidentais e outras. Tudo o que se pode prever quanto a conflitos locais e regionais, graves perturbações económicas e aumento da pobreza e da desigualdade acontecerá. Mas será ainda pior do que se imagina hoje.

 

Uma coisa é já clara nos espíritos: tal como em todos os conflitos locais e regionais, entre os efeitos imediatos e desmesurados pode contar-se o exponencial aumento de refugiados e de migrantes. Como sempre e em todas crises políticas nacionais ou internacionais, sobretudo nas que envolvem violência e guerra, há refugiados, há milhares de famílias à procura de paz e de casa, dezenas de milhares de crianças sem nada nem sequer pais e mães. Também haverá, certo e seguro, às dezenas ou centenas de milhares, simples candidatos à emigração. Os países europeus e da América do Norte, assim como alguns asiáticos, já se ofereceram para ajudar. Portugal também o deveria fazer, seja isoladamente, seja, de preferência, no quadro do esforço europeu. Mas, espera-se, com uma intenção política clara: a de separar a questão da emigração do problema dos refugiados de guerra.

 

Portugal não tem influência neste conflito, nem força política suficiente para se envolver. As questões militares estão fora do nosso alcance e dos propósitos actuais do Estado português. Também não temos peso suficiente para uma qualquer intervenção de carácter económico. Sobra, evidentemente, a eventualidade do contributo humanitário, essa sim, possível. Os emigrantes, as vítimas, os feridos, os sem abrigo, as crianças sem escola, os idosos sem sítio e os refugiados serão aos milhares. Um dos mais felizes destinos para tantos será, novamente, o dos campos de refugiados (alguns parecidos com campos de concentração) espalhados pela região. Neste capítulo, Portugal pode contribuir com significado. Afastar os campos e acolher crianças desalojadas e sem família, idosos desamparados e doentes ou feridos, pode ser um contributo real e humanamente significativo para um mundo decente.

 

Portugal tem uma larga experiência nestes domínios demográficos e populacionais. Uma longa e vastíssima vida de emigração, mas também, recentemente, um conhecimento directo da imigração. Além de um violento drama de repatriamento de portugueses. Tratou-se, histórica e actualmente, de movimentos descontrolados, sempre ao sabor das ondas, sempre com experiências dolorosas e perigosas. Então como hoje, na emigração de portugueses ou na imigração de estrangeiros em Portugal, o descontrolo, o acaso, a ilegalidade e a exploração foram quase regras. Mas há agora memórias e conhecimentos para mudar de atitude, para tornar humanos estes movimentos demográficos, para ajudar uns e outros, emigrantes e imigrantes, a usufruir de uma vida decente. Sabemos já que o controlo dos movimentos e das deslocações pode contribuir de modo decisivo para manter a realidade dentro das possibilidades. Como sabemos que esse controlo, com apoio e acompanhamento, pode ser crucial para evitar a exploração e a marginalidade criadas pela ilegalidade.

 

Toda a Europa, além de outros países, está à beira de conhecer e de viver episódios perigosos de conflitos raciais, culturais, religiosos e políticos directamente ligados com as migrações descontroladas. Estas resultam de situações económicas e sociais conhecidas, de desastres de toda a espécie, mas também de guerras e conflitos. Intervir depois dos acidentes e dos incidentes é sempre negativo e perigoso, para não dizer inútil e ineficaz. Esta situação de guerra, tão perto de nós, pode ser uma oportunidade para mostrar que aprendemos com a história. Impõe-se uma acção solidária e humana, como também um esforço de controlo dos acontecimentos. Portugal tem o direito de escolher as populações que quer receber. Como faz actualmente com brasileiros e falantes de língua portuguesa. Pode fazê-lo também com crianças e vítimas da guerra. Palestinianos e judeus sobretudo.

.

Público, 13.10.2023

Etiquetas:

7.10.23

Grande Angular - Datas, comemorações e liturgia

Por António Barreto

Em grande parte, e cada vez mais, as comemorações nacionais servem para enviar recados. Dos Presidentes da República, dos Primeiros-ministros, dos Presidentes de Câmara, dos chefes militares… De todos os que têm ou julgam ter qualquer coisa a dizer, alguém a quem atacar ou alguma coisa a criticar. A ideia de que comemorar a República deveria ser comemorar a República é muito pouco seguida. Os que comemoram pretendem endereçar flechadas a amigos e inimigos. Aliás, o número de oficiantes é cada vez maior, pois é uma maneira de marcar território. Também aumenta o número de oficiosos, perante a diminuição do público. Este último, diante do absoluto desinteresse dos procedimentos, é reduzido.  Até fisicamente, na praça habitual, cresce a distância entre oficiais e público.

 

Comemorar a República, hoje, é totalmente destituído de significado. Aliás, a própria origem do fenómeno é já de si suspeita. É verdade que a Monarquia, em 1910, estava pelas ruas da amargura, a merecer substituição. Mas, assassinatos de chefes de Estado e de governo, guerras civis durantes anos, prisões arbitrárias e terror de Estado, desordem nas ruas, falência económica e financeira e instabilidade de regime não são propriamente razões para comemorar o que quer que seja. Se acrescentarmos a perseguição religiosa, a repressão dos sindicatos e a participação trágica e caricata de Portugal na 1ª Guerra mundial, teremos um quadro quase completo do que comemoramos hoje. Pobre país que necessita de tão medíocres e tão equívocos factos para se festejar! Louvar a República, durante a ditadura, poderia ter sentido. Hoje, é inútil e desajustado.

 

É verdade que as liturgias nacionais são sempre assim. Convenções, vacuidade de pensamento e inutilidade da política levam a que se estabeleçam regras geralmente artificiais. Às vezes, como no caso do 10 de Junho, nem sequer há factos incontestados para comemorar: são meros acasos oportunistas. Outras vezes, são datas e factos razoavelmente travestis. Mesmo o derrube da ditadura, a 25 de Abril, ocorrência certa e segura, serve sobretudo para ajustar contas em público, mas com ar de cerimónia e boa educação. Outras datas, como a do 25 de Novembro, são vergonhosamente apagadas, pois não servem os intuitos inconfessáveis dos poderosos do dia.

 

O 5 de Outubro serve para alguns titulares de cargos oficiais e de partidos distribuírem punhaladas e indirectas. Mesmo se, como raramente acontece, com qualidade literária, os discursos do 5 de Outubro são perfeitamente inúteis. Até quando têm sentido da oportunidade, as proclamações do 5 de Outubro morrem no dia seguinte.

 

Apesar de tudo o que se diz, mau grado boas intenções e não obstante a virtude de alguns discursos, a verdade é que o 25 de Abril é cada vez mais a data de arremesso da esquerda contra a direita, enquanto o 25 de Novembro é o ricochete da direita contra a esquerda. O que os socialistas estão fazendo é inaceitável. Eles querem separar o que sabem ser contínuo: o 25 de Abril iniciou, o 25 de Novembro salvou e as eleições fundaram. É pena que assim seja, pois são todas boas datas. Já os nefastos 28 de Maio, 28 de Setembro e 11 de Março, apesar de haver quem as queira recordar, morrem devagar na sarjeta da história. O 1 de Dezembro já não existe, a não ser para nostálgicos de outras gestas. O 1 de Maio é um dia de férias, não um feriado. O 11 de Novembro, que já foi data, é um esquecimento. Sobram as datas religiosas e similares que, essas sim, pelas romarias, ainda têm clientes e seguidores. As festas do Senhor dos Passos, da Senhora da Agonia e do Avante têm mais apelo e carisma do que qualquer data nacional, oficial ou patriótica.

 

Por mais pesados que sejam os discursos, não é possível deixar de pensar na sua inutilidade. E no facto de serem vícios de liturgia e oportunidade. Até as candidaturas aos partidos e a futuras eleições são tema e pretexto. Comentadores e jornalistas estão à espera de uma só coisa: dos recados, das indirectas e das mensagens cifradas. Ouviu-se o Presidente da República, mas pensava-se no Primeiro-ministro. Escutava-se o Presidente da Câmara, mas a presença era a do líder do PSD. Ouviram-se todos, a pensar no partido Chega.

 

Comemorar é hoje fazer discursos! O mais penoso, nestas cerimónias, são os lugares-comuns. São em menor quantidade no 5 de Outubro, só há dois oradores. Mas a sua densidade é mesmo assim elevada. Os “clichés” mais habituais repetem o “mantra” mais famoso: não podemos esquecer os jovens. Outros divagam sobre as necessidades de fazer pedagogia: ensinar a democracia nas escolas e explicar a toda a gente, sobretudo os mais jovens, os feitos da democracia e a bondade da República! No dia em que os virtuosos republicanos tenham ensinado a democracia aos jovens e tenham publicado manuais sobre a democracia, nesse dia, final e felizmente, a democracia vencerá! Este último 5 de Outubro, um pouco mais denso e de mais recorte literário do que habitualmente, não escapou à tradição. Com mais condimentos: os próprios oradores desvalorizaram o poder da palavra, sugerindo que era a acção que podia salvar a democracia. Avisaram contra os perigos e garantiram que a democracia corria perigos. E alertaram para os riscos do atraso de reformas.

 

Estas longas listas de lugares-comuns, de frases repetidas sem pensar e de fórmulas de retórica vazia são um inimigo mortal da inteligência, é evidente, mas também da liberdade. Uma das maneiras de destruir a democracia consiste em alimentá-la de lugares-comuns. Ou em deixar que os rituais percam razão e sentido, deixem de ser úteis ao equilíbrio das sociedades e da vida em comum.

 

Há rituais necessários. Como os que servem propósitos e fazem com que se respeitem regras. A democracia é isso mesmo: uma convenção que se deve respeitar. Desde que não seja destituída de razão, uma liturgia serve objectivos. Entre outros, o de recordar a origem das normas e dos valores. Ou então, tornar comuns certos hábitos. A força dos rituais é tal que, por vezes, nem é necessário recorrer à lei. Há costumes que se impõem por si, porque são úteis e porque ajudam na vida colectiva. Recordar ou comemorar pode ter essa intenção: a de dar uma vida e um presente. Mas é muito fácil perder de vista a origem e a função das regras. Quando os rituais não são mais do que isso mesmo, só rituais, algo está errado. É, sobretudo a perda de sentido. Esse é o grande perigo: a vacuidade da política.

.

Público, 6.10.2023

 

 

 

Etiquetas: