ERAM BELGAS, eram gémeos, eram surdos, eram operários. 45 anos, inseparáveis
nas atenções ao mundo, e o mundo nada lhes ocultava porque o mundo era
deles e do entendimento que do mundo faziam. O infortúnio não os afligia
assim tanto porque se tinham um ao outro, nessa fraternidade secreta e
única que pode moldar o carácter. Nem sempre os irmãos se dão bem; nem
sempre os gémeos são exemplos de amor. Estes, por inusuais, seriam
exemplo de tudo.
Passeavam, juntos, iam juntos ao cinema,
apreciavam caminhar pelos campos belgas, e alimentavam uma particular
simpatia pela terra que os vira nascer: Antuérpia. Agora, viviam em
Bruxelas, eram vistos muitas vezes de mãos dadas, e, na linguagem
gestual através da qual se entendiam, não dissimulavam a preocupação que
lhes causava o mundo moderno.
Às vezes eram observados de viés:
não só porque emitiam sons altos, próprios dos surdos, como aquele modo
de andarem de mãos dadas não era um quadro natural, no espírito dos que
julgam as coisas apenas pela aparência das coisas.
Os gémeos
belgas riam desses soslaios e chegavam a forçar a nota, beijando-se como
a um irmão se deve beijar. Sabe-se, agora, na discrição das existências
que levaram, que um deles escrevia poesia, e que o outro alimentava o
secreto sonho de ser pintor. Nada mais se sabe, ou pouco mais se sabe,
destes dois irmãos, dependentes um do outro por decisão própria. Apenas,
e não é pouco, que eram excelentes operários, e tinham grande
predilecção pela cidade de Bruges-la-Morte, pelos bosques enevoados,
pelo vinho quente tomado nas tardes frias.
A vida corria-lhes com
a normalidade possível. As rotinas não se alteravam; admiravam a beleza
das mulheres, o seu andar torneado, o verde dos olhos, os sorrisos
oferentes. Iam ao futebol; claro que iam ao futebol, e apreciavam
sentar-se, aos domingos, numa qualquer esplanada da Gran'Place
observando os turistas estrangeiros, máquinas fotográficas na mão ou a
tiracolo, só raramente entendedores da natureza e da história do país,
tão martirizado pelo conflito idiomático como por estar sempre tão perto
das desgraças europeias.
Foi quando, numa consulta médica de
costume, ambos se souberam portadores de doença oftálmica irreversível.
Em poucos meses ficariam cegos. O infortúnio não deixava os gémeos.
Surdos e sem ver, sem se comunicar entre si, é que não. Solicitaram às
autoridades que lhes fosse permitido o recurso à eutanásia. O caso,
tornado público, quando, na verdade, devia ter pertencido aos domínios
particulares, suscitou grande polémica. Mas eles levaram a sua avante.
Onde está a razão? Tenho o entendimento de que cada qual pode fazer do
corpo o que decidir: é a única propriedade privada de que,
verdadeiramente, dispomos. Porém, lembro Malraux: uma vida nada vale,
mas nada vale uma vida.
«DN» de 23 Jan 13