Por A. M. Galopim de Carvalho
Se tivesse que escolher uma actividade extraprofissional, a condizer com a minha maneira de ser e estar na sociedade, relativamente ao conhecimento, seja o científico, em que fui profissional a tempo inteiro, seja qualquer outro, do erudito ao mais iletrado, escolhia, sem a menor hesitação, “divulgar”, elocução que, só muito depois de a praticar, aprendi que radica no latim divulgare, cujo significado é espalhar entre o vulgo, ou seja, entre o povo.
Devo começar por dizer que o meu interesse por saber coisas começou cedo, em criança, não na escola, que recordo como um lugar e um tempo de aflição e de algum sofrimento, mas sim, na rua e em tudo o que nela se passava, em todas as lojas, oficinas e artesanias de portas abertas e, também, nos campos agrícolas, em redor da cidade. Associado a este que se tornou num prazer, surgiu, mais tarde, o gosto de partilhar com os outros os saberes que ia adquirindo. Nasceu assim este meu pendor pela divulgação de saberes, um gosto, quase um vício, que me acompanhou ao longo da vida. Com o tempo, fui descobrindo ou criando formas de comunicação acessíveis ao público a que me dirigia, fazendo uso de uma linguagem falada, e escrita simples, sem perda de rigor, apelativa e agradável. Devo dizer que, em minha arreigada convicção, receber e facultar conhecimento são actos de prazer, mas também de cidadania.
Sem me ter dado conta de que o estava a fazer, iniciei praticar divulgação de conhecimentos durante a adolescência, no mundo rural, um mundo que conheci razoavelmente bem como praticante, activo e interessado, de um campismo selvagem nos campos do Alentejo, o longo dos anos de 1940. Foi no convívio com os camponeses que, em trocas de saberes, surgiu e se consolidou este meu interesse por partilhar muitos dos meus então pouco consolidados saberes. Algumas noções de Ciências Naturais, que aprendia no Liceu, eram tema das nossas conversas. Eu procurava ensinar-lhes as diferenças entre angiospérmicas e gimnospérmicas ou entre monocotiledóneas e dicotiledóneas, tal como vinha no meu livro de Ciências, mas eles sabiam-no e diziam-no por outras palavras, além de que davam nomes a todas as ervas, arbustos e árvores do seu pequeno-grande mundo. Com eles aprendi a distinguir os cogumelos venenosos dos comestíveis e a conhecer os pássaros pelos seus modos de piar e de cantar. Mais do que na escola, aprendi com eles os ritmos fisiológicos das plantas e animais, determinados pela sazonalidade, e a relacioná-los com as práticas agrícolas das diferentes estações do ano. Eu descrevia-lhes a fermentação e eles abriram-me os sentidos ao odor e ao calor exalados pelos montes de estrume. Falava-lhes da composição do ar e do papel do oxigénio na combustão e na vida dos animais e eles levavam-me a ver os fornos de carvão e a conhecer-lhes o cheiro característico. Foi no contacto com os camponeses que vi, na prática, a transformação da rocha em solo. A terra solta, as raízes que se lhe arrancavam, os restos das folhas mortas, apodrecidas, e a microfauna desse admirável e complexo ecossistema, estavam ao dispor de quem quisesse observá-lo, cheirá-lo, esfregá-lo entre os dedos e sentir e ver os grãos de areia e o pó fino, barrento, associado. Do pó da terra e da lama, ao barro e à argila ia um passo e, com mais outro, chegávamos à cerâmica das telhas, tijolos e loiça rústica, vermelha que ainda se usava. Falar de penicilina, das milagrosas qualidades germicidas deste então novíssimo antibiótico, explicando o significado deste e de outros termos do indecifrável jargão da classe médica, era o resultado de uma conversa a propósito do bolor do pão, de todos conhecido. Com esta convivência, interiorizei uma saudável ruralidade que sempre me acompanhou, ao longo da vida, e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico, no qual me movimentei durante cerca de quarenta anos. Com eles, sobretudo com eles, adquiri uma consciência social e política impossível de obter na escola e no dia-a-dia de uma cidade dominada, vigiada e censurada pelo regime político de então.
Anos mais tarde, na primeira metade dos anos de 1950, repeti esta experiência com os soldados do meu pelotão de instrução, em Artilharia 3, em Évora, a minha cidade. Com estes ainda adolescentes, a quem tinha de dar instrução militar, foram muitas as oportunidades em que, em vez de lhes falar de canhões, munições, espingardas, e outras noções próprias da guerra, partilhei conceitos simples de ciência que iam ao encontro das suas profissões na vida civil. A propósito do que quer que fosse, havia sempre uma noção de química ou de física a explorar. Falei-lhe de sexualidade tema de que apenas conheciam a obscenidade e o palavrão. Entre letrados com apenas a instrução primária e analfabetos, rapazes da cidade e do campo, os recrutas eram esponjas de ouvidos e olhos escancarados.
Durante quatro décadas na Universidade de Lisboa (entre 1961 e 2001, na Faculdade de Ciências, e entre 1965 e 1981, na Faculdade de Letras, em Geografia), mantive estreita ligação com as escolas, quer como orientador dos estágios exigidos nas licenciaturas do ramo educacional, quer a seu convite, do pré-primário ao secundário, divulgando conhecimentos, adequados aos respectivos níveis de escolaridade, em torno de temas das Ciências da Terra, falados no mesmo tom e estilo, simples mas rigoroso e sempre alegre, que usei nas muitas palestras que fui fazendo em sociedades recreativas, centros culturais, bibliotecas municipais e outros estabelecimentos. Aconteceu que, num passa-palavra entre os professores, no caso das escolas, e entre outros interessados, fez com que me chegassem convites de todo o lado e a todo o tempo. Foi assim que me desdobrei em dezenas e dezenas de acções este tipo. Era e é do conhecimento geral que não cobrava nem cobro honorários e que apenas precisava e preciso de ter o transporte assegurado. Esta actividade de palestrante foi-se intensificado com o passar do tempo, tendo-se alargado a todo o território, quer no continente quer nas ilhas. A par destas conversas, lições ou palestras como se lhes quiser chamar, aceitei, com o mesmo empenho, a mesma simplicidade e a mesma alegria, os convites que me chegaram de quase todas as Universidades nacionais. Divulgar conhecimento científico ou qualquer outro entre os meus concidadãos de todas as idades e das mais variadas condições sócioculturais, foi a melhor forma que encontrei para concretizar a minha maneira de estar, ao mesmo tempo, na Ciência e na Sociedade.
“Velhos são os trapos” diz muito boa gente, preferindo usar o termo idoso que, assim, se generalizou. Mas pior do que ser velho ou idoso é ser pensionista contra vontade, como no meu caso, estupidamente afastado do serviço activo e colocado na “prateleira” por imposição do “limite de idade”. Foi o que me aconteceu. Ser descartado é um sentimento que magoa os velhos, em especial aqueles a quem a Natureza, embora os tenha diminuído fisicamente, deixou intacta a lucidez. Velhos que gostam de ser tratados, não pelos muitos anos que a tradição rotula de velhos, mas pelo que conservam de vigor, energia e entusiasmo.
Divulgar a ciência que cultivei como geólogo e professor de geologia, e tudo o mais que aprendi como curioso de muitas “artes”, foi a opção que tomei no sentido de tornar útil e agradável o meu tempo de pensionista. Desde então que reparto as horas a meu belo prazer, e dele fazem parte, entre outras ocupações, transmitir, pela palavra escrita e falada, o que a vida em sociedade e a profissão me ensinaram, a par de uma intervenção cívica que entendo dever ter como cidadão atento que nunca deixei de ser. Os vinte e dois anos de aposentação permitiram-me ler, com o empenho de quem estuda, temas que a absorvência da vida profissional sempre colocou fora do alcance da minha mão. Assim, “embalado” no ofício de professor, de estudar para ensinar, dei por mim a escrever sobre temas de arte, história, filosofia e outros e, ainda, sobre tudo o que a vida me ensinou.
Os textos que, com propósitos científicos e pedagógicos, de há muito venho divulgando, em livros e em textos avulsos nas redes sociais, têm como destinatários preferenciais os professores que, nas nossas escolas básicas e secundárias, se debatem com falta de elementos que complementem os tradicionais e repetidamente estereotipados manuais de ensino. Visam, ainda, o cidadão comum, interessado em conhecer o chão que pisa e lhe dá o pão. Continuo a escrever muitas horas por dia, indiferente a sábados, domingos, períodos de férias ou dias feriados. Isto porque os reformados estão sempre em férias e porque as férias servem para se fazer aquilo de que se gosta. A verdade é que, quando estou frente ao monitor, seguindo as palavras que, letra a letra, os dois indicadores vão dedilhando, num esforço de acompanhar e não deixar perder as ideias que fluem velozes, a verdade é que, dizia eu, não tenho idade nem as mazelas próprias dos gerontes. E, assim, o tempo se foi transformando em palavras sem que o tivesse visto passar.
Não sei quantos anos mais poderei desfrutar desta bela condição de poder sentir a vida. Serão certamente muito poucos, mas isso não me incomoda. Estou perfeitamente consciente das limitações físicas que os anos me impuseram, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo. Já o disse várias vezes e volto a dizer que conservo comigo a criança irrequieta, curiosa de tudo e alegre que fui, o adolescente, inconformado, contestatário, audacioso e irreverente, próprio desses anos. Conservo também o adulto na força da vida, lutador que não dá tréguas e o velho que, a tudo isso, acrescenta a sabedoria, a paciência, a ponderação e a tolerância que os muitos anos ensinaram.
Quando, em 1977, o saudoso Prof. Rocha Trindade me convidou para integrar o grupo de professores do igualmente saudoso Ano Propedêutico, confrontei-me com a necessidade de escrever, semana a semana, capítulo a capítulo, os textos de apoio (os ap) que marcaram uma geração de portugueses agora a raiarem os 60 anos. Foi uma magnífica e saborosa experiência. Foi mais como divulgador do que como académico, usando de toda a liberdade que o sistema consentiu, que redigi as mais de quatro centenas de páginas desses textos, um êxito editorial com muitos milhares de exemplares vendidos.
Nos 20 anos que exerci funções de direcção no Museu Nacional de História Natural (1983 a 2003), o meu gosto e empenho em divulgar conhecimento teve plena realização nas muitas exposições que ali tiveram lugar, com destaque para as organizadas em torno do tema dinossáurios. Devo dizer que, no conjunto com os funcionários deste Museu, todos nós sem qualquer formação teórica na área da museologia e aprendendo uns com os outros, concebemos e realizámos, entre elas, “Dinossáurios Regressam em Lisboa”, em 1992, uma das mais espectaculares e concorridas exposições de que temos memória em Portugal, com mais de 360 000 visitantes em apenas onze semanas.
A “Feira de Minerais Gemas e Fósseis”, Museu Nacional de História Natural, Iniciada em 1989, completou este ano de 2023, a sua 36ª edição. Também nelas me envolvi empenhadamente, usando-as como uma esplêndida via para divulgar conhecimentos em domínios da mineralogia e da paleontologia. A aceitação do público, das crianças aos adultos foi, desde a primeira, muito grande, testemunhada todos os anos por milhares de visitantes, tendo-se alargado ao Porto e a Coimbra, com regularidade anual, e a outras cidades com realizações esporádicas.
O gosto pessoal que sempre tive pela divulgação, actividade que sinto como uma forma feliz de conviver e confraternizar com gente de todas as idades e condições sócioculturais, fez com que. nos vinte e dois anos que se seguiram à minha jubilação, intensificasse a escrita, quer em livros (uma vintena) quer em textos avulsos (alguns milhares) nas redes sociais, a par da de conferencista que trazia da chamada “vida activa”. A pandemia, que nos últimos tempos nos atingiu, levou-me a recorrer à modalidade de videoconferências via “zoom”, prática que continuo a utilizar nos casos em que os convites me chegam de localidades suficientemente afastadas da minha residência.
Mesmo antes da jubilação acontecia muitas vezes acordar a meio da noite a pensar neste ou naquele problema de entre as matérias em que investigava ou ensinava. Sentia então uma irresistível vontade de me levantar, sentar-me à secretaria e trabalhar nele, ao mesmo tempo que, para lá dos vidros da janela do escritório, assistia ao clarear da manhã. Este hábito transformou-se num prazer e, respondendo ao desafio formulado por alguns dos meus mais de 33 500 leitores, de passar a livro muitos dos textos que diariamente, desde 2015, venho publicando no Facebook, eis-me a dar-lhes satisfação.
“Ao Romper da Aurora” nasceu neste contexto e como resposta ao dito desafio.
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