30.4.24

EMPIRISMO NO PENSAMENTO DE ARISTÓTELES E NO DE ROGER BACON, MUITOS SÉCULOS DEPOIS.

Por A. M. Galopim de Carvalho

Se, numa aula de filosofia, o professor começar por dizer que a palavra empirismo tem raiz no grego “empeirikós” e que significa experiência, está praticamente tudo explicado. Assim, um tema que quem não sabe julga difícil de abarcar, torna-se tão simples como uma conversa em torno da cozinha, por exemplo. Empirismo, na filosofia de Aristóteles, é, pois, a linha de pensamento segundo a qual todo o conhecimento deve ser baseado na observação do mundo e não na intuição ou na fé. "Não existe nada na mente que não tenha passado pelos sentidos", afirmou este que foi o fundador do Liceu de Atenas, no século IV a. C. Esta linha opõe-se ao Inatismo de Platão, conhecido como corrente do pensamento que acredita e defende que o conhecimento de um indivíduo é uma característica que nasce com ele ou, dizendo por outras palavras, que lhe é inato. Não obstante ter sido seu discípulo, Aristóteles contrariou esta concepção do mestre. 

Quase 17 centúrias depois, o inglês Roger Bacon (1214-1294), filósofo e alquimista, alargou o pensamento de Aristóteles introduzindo a variante experimental, no sentido de trabalho de laboratório. O Empirismo deste frade inglês, conhecido como "Doctor Mirabilis" (Doutor Admirável em latim), alude, entre outras, às experiências que, séculos depois, continuam a ser feitas nos laboratórios do presente, estando, portanto, na base do método experimental. É hoje um dado assente que que só os resultados experimentais permitem a indução em ciência. 

Base ou fundamento do método científico, o Empirismo ensina que todas as hipóteses e teorias devem ser testadas por dados experimentais.

Diferente do conhecimento científico (baseado em factos verificáveis e comprovados pela experimentação), o conhecimento empírico, no sentido que hoje vulgarmente se lhe dá, é o que se adquire na nossa vivência diária, aprendendo superficial e acriticamente, através dos sentidos, fazendo, errando e corrigindo. É, em suma, o da experiência pessoal. Não obstante não ser considerado de nível científico, o conhecimento empírico, nesta óptica, foi a base de toda a sabedoria que, ao longo de séculos, conduziu a humanidade até o surgimento da ciência e continua a conduzir todos os milhões de homens e mulheres que, vivendo à margem da ciência, beneficiam de tudo o que ela produziu e produz em termos de tecnologia.

No caso da culinária, por exemplo, o conhecimento é essencialmente empírico, não devendo, todavia, esquecer-se que os electrodomésticos e outros equipamentos ao dispor, assentam em conhecimentos verdadeiramente científicos e que, cada vez mais, a ciência, nomeadamente a bioquímica, tem vindo a introduzir ensinamentos importantes no que respeita a dieta alimentar.

Na imagem:

Roger Bacon no seu laboratório. Pintura de Ernest Board (1877-1934)

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27.4.24

Grande Angular - A História feita crime

Por António Barreto

Vários mestres nos advertiram: “Não devemos proclamar glórias que não são as nossas”! O tema é inspirador. Não nos devemos gabar do que outros fizeram bem. Nem arrepender do que outros fizeram mal. É verdade que podemos sentir emoção, quando pensamos nos feitos de portugueses ao longo de oito séculos. Mas os feitos são deles, não nossos. E os crimes deles a eles pertencem, não a nós. Imaginar que “nós” somos todos, Vasco da Gama, Luís de Camões, Fernando Pessoa e nós próprios, é de uma presunção estúpida que só a gabarolice nacionalista explica. Pensar que “nós” somos todos, os que queimaram aldeias e escravizaram populações, é de uma tal patologia narcisista que custa a entender.

 

Não espero fama, nem elogios, por ter descoberto o caminho para a Índia, nem conquistado territórios em África. Como não me gabo, nem me queixo, de ter escravizado e assassinado gente por todo o lado, sobretudo em África. Não me vanglorio de ter escrito “Os Lusíadas”, nem ter inventado o vinho do Porto. Não peço desculpa, nem perdão, pelo que outros fizeram de mal: pilharam, roubaram, escravizaram e assassinaram. Também não me sinto vaidoso por ter conquistado, pelo menos duas vezes, a independência de Portugal. Nem me sinto orgulhoso por ter colonizado, desenvolvido, modernizado e educado gentes e povos. Não fiz nada disso, outros fizeram. Não me queixo, por não ter tido sofrimento, outros tiveram. A dor por procuração é tão inconveniente quanto o orgulho por recordação. É mau princípio o de chorar culpas que não são as nossas. Ou devolver o que não roubámos. Não peço perdão a quem nunca fiz mal, nem pelo que não fiz. E não me gabo do bem que outros fizeram.

 

O que os portugueses de outros tempos fizeram e de que tanto se fala hoje inclui vários géneros. Uns actos eram “o que se fazia”, muitos eram “as regras do jogo” ou até glórias, outros já eram crimes na altura. E também há obras que começaram por ser glórias e são hoje crimes. Com o tempo, é fácil o bem transformar-se em mal e o mal no seu contrário. Confundir os géneros, tentar usar o mal e o bem dos outros, promover ou rebaixar hoje o que foi feito há séculos, disfarça, por regra, ambições contemporâneas, maus instintos morais e apetites políticos excessivos. Quem quer julgar, hoje, os reis e os escravos de há séculos, quer hoje qualquer coisa. E não se trata apenas de bons sentimentos: quer poder, bens e poleiro.

 

Há décadas que, de vez em quando, a questão das culpas históricas e dos erros de outrora, assim como do perdão de hoje, estremece a crónica dos dias. Por vezes, trata-se de bons sentimentos, de uma espécie de candura histórica. Outras vezes, por parte dos contemporâneos, é nem mais nem menos do que uma nova forma de extracção: as desculpas ajudam a obter um lugar na lista de compradores de minérios ou vendedores de armas. Umas vezes ainda, a questão é a da vingança útil, isto é, da oportunidade para obter recompensa e poder, invocando antepassados e compaixão, quando o que está em causa são ambições contemporâneas. Finalmente, para todos, os que querem pedir perdão e desculpar, os que exigem recompensa e indemnização, os que recordam um passado de dor e os que evocam grandeza nacional, de todos temos esta espécie de busca desavergonhada de clientela política. Pouco mais é do que o abuso dos reflexos irracionais do tribalismo, do nacionalismo e do racismo. Infelizmente, neste confronto descabelado, não há inocentes. Mas há vítimas: os cidadãos que agradecem alguma racionalidade na vida pública.

 

O mais curioso é ver que as questões práticas não têm respostas. Ou têm-nas de mau pagador e cínico cliente. Pedir perdão a quem? Aos africanos? Aos asiáticos? Aos índios? De quê? Porquê? Não conheço país que não tenha sido, pelo menos uma vez na história, conquistado ou conquistador, colónia ou metrópole. Como não conheço país, povo, Estado ou nação, que não tenha escravizado, não tenha vivido com escravos ou não tenha vendido os seus. Não conheço povo, país, Estado ou tribo que não se tenha feito graças à luta, ao domínio, à servidão ou à conquista. Será que toda a gente tem de pedir perdão a toda a gente? Se os portugueses têm de pedir perdão aos africanos, aos mouros, aos árabes, aos índios, aos indianos e outros asiáticos, quem nos pede perdão a nós? 

 

Pedir perdão a quem? Aos Estados? Às pessoas em abstracto? Às famílias de descendentes de escravos? Como distinguir entre quem foi vendido, quem transportou e quem vendeu? Sabendo que muitos escravos foram vendidos por conterrâneos, vizinhos, comunidades rivais, nobres e ricos, notáveis africanos, asiáticos ou árabes, como distinguir entre aqueles a quem se pede perdão e os que devem ser condenados? Supondo que se sabe a quem pagar, Estado, empresa, Igreja, associação, tribo ou família, falta evidentemente definir quem paga. O Estado? Os contribuintes? As empresas? Os milionários?

 

Faz algum sentido exigir, da Grã-Bretanha ou da Universidade de Oxford, a devolução imediata da biblioteca do Bispo de Silves, roubada por uns piratas e uns nobres ingleses no século XVI? Ou exigir a pronta devolução do “Cabinet de Lisbonne”, composto por milhares de espécies, roubado por soldados e cientistas franceses no início do século XIX e actualmente no Museu de História Natural de Paris? Ou os milhares de artefactos religiosos, sobretudo de ouro e prata, saqueados nas igrejas portuguesas pelas tropas e levados para França? Se as autoridades portuguesas entendem tomar iniciativas relativamente aos países que os antigos, em seu tempo, pilharam, têm de começar já por nós e obter a devolução dos bens saqueados em Portugal.

 

Em vez de indemnizar ou recompensar, não se sabe bem quem, nem quanto, o melhor que temos a fazer é receber bem os estrangeiros, os imigrantes em particular. O que é um valor em si, não uma compensação por malfeitorias passadas. Se recebo imigrantes, quero, pelos méritos próprios e não para me reabilitar, conceder-lhes direitos e reconhecer a sua dignidade igual à minha. E exigir a reciprocidade, tanto cá como nos países de origem. Se procuro a paz e a justiça, hoje, quero que os imigrantes sejam legalizados, tenham acesso aos serviços públicos, paguem impostos e beneficiem da segurança social. O que farei porque é aquilo em que acredito, não por ter vergonha pelo que outros fizeram. Porque sei que o tráfico de gente é uma das fontes de crime e violência, lutarei contra os que, nacionais ou estrangeiros, lucram com a ilegalidade, o contrabando e a clandestinidade. E recuso-me pensar que o descontrolo é uma boa política de democracia e de compaixão. Não é. É o contrário.

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Público, 27.4.2024

 

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24.4.24

O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

Por A. M. Galopim de Carvalho

Estamos a viver um tempo altamente preocupante, não só a nível internacional, como cá dentro deste “torrão” de iliteracia de quase tudo, mercê de um sistema educativo que deu e dá diplomas, mas não deu nem dá esse tudo que tanta falta nos faz. 

“O poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”. Quer isto dizer que, quanto mais inculto for o povo, mais facilmente é dominado e, até, desprezado pelo poder. Sempre foi assim. Está escrito e reescrito na História.

E sempre assim será num país caído nas lutas entre aparelhos partidários, onde emergem políticos incompetentes e oportunistas, de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.

 

Ao aproximar-se a data de comemorarmos os 50 anos de liberdade, é com um sentimento de profunda decepção que me dou conta deste grande número de anos desaproveitados. É por demais evidente que não soubemos aproveitar a liberdade que nos foi oferecida, para erradicarmos muitos dos nossos atavismos civilizacionais e culturais. 

Comemoramos 50 anos de liberdade, apenas de expressão, reunião, criação de partidos, associações e coisas assim, mas são muitos os nossos concidadãos, sem esquecer os milhares de emigrantes, privados da liberdade de dar aos filhos uma refeição e uma habitação condignas, de acesso à justiça, em pé de igualdade com aqueles que a gente sabe. 

É evidente que a revolução, de que estamos a festejar o quinquagésimo aniversário, nos abriu portas e janelas à democracia, à segurança social, aos cuidados de saúde, à ciência, ao ensino e à cultura, portas e janelas que se têm vindo a fechar sob o olhar de uma classe política mais interessada nas lutas partidárias, nos compadrios e nas vantagens do poder. Uma classe política que não facultou aos cidadãos cultura civilizacional, científica e humanística. porque entendeu que havia outras prioridades.

Este abandono permitiu que uma significativa parcela dos portuguese a quem a escola não deu capacidade para “distinguir o trigo do joio”, marcada pela iliteracia de quase tudo, alienada pelo futebol e pelos programas televisivos de entretenimento que nos impõem e nos entram pela casa dentro a toda a hora, desse ouvidos a uma extrema direita (até, há pouco escondida e diluída nos partidos de direita e de centro-direita), agora, com importante voz no Parlamento, que, usando da plena liberdade que a democracia nos oferece, tenta declaradamente destruí-la, fazendo uso de um populismo inteligentemente pensado, que diz aquilo que essa grande parcela da população, desiludida e empobrecida física e intelectualmente, quer ouvir.

Entramos na nova legislatura e no novo governo com várias crises por resolver, entre as quais destaco, por conhecer melhor, a da Educação, que, desde há muito, por falta de visão política atravessa uma crise, sem solução à vista. Estamos a viver um tempo de inverdades ao mais alto nível e incertezas, à beira (estou em crer) de nova crise política. Um tempo de miséria e, até, de fome para um número cada vez maior de famílias, de miserável abandono dos idosos, de corrupção descarada e impune e de aumento do número e da riqueza dos ricos. A chamada classe média está a afundar-se, o desemprego está a ressurgir e é mais um incentivo crescente à igualmente dramática emigração de uma juventude qualificada.

 

É este o panorama nacional nas vésperas de celebrarmos os 50 anos daquela madrugada. É verdade que há muito para festejar, mas também é verdade que tenhamos consciência de que é preciso que saiamos à rua, unidos e em força, num Portugal de Norte a Sul, como naquela manhã que agora se comemora.

 

 

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20.4.24

Grande Angular - Vítimas da injustiça. E da Justiça!

Por António Barreto

Depois de fundada a democracia, há quase cinquenta anos, muito melhorou e quase tudo mudou. Mas a Justiça talvez não. Ou antes, a Justiça não soube, não quis ou não foi capaz de se adaptar aos novos tempos, aos novos direitos e aos novos deveres. Ou os governantes e o legislador não souberam tratar da Justiça. Seria bom que, neste tempo de balanços, não se esqueça a Justiça. Ainda por cima, com tantas anomalias diante de nós!

 

Há pouco tempo, a dissolução do Parlamento, a convocação de eleições e a demissão do Primeiro ministro foram actos políticos da responsabilidade do Presidente da República, que deles tem de prestar contas. Politicamente. Foram gestos contestados por muita gente e apoiados por outros. Mas tudo começou com um gesto, que muitos consideram errado e excêntrico, da Procuradora Geral da República. É judicialmente que ela tem de esclarecer e de prestar contas, algo que não tem feito. Mas deveria fazer. Não basta anunciar a sua não renovação de mandato.

 

Todos conhecemos também as decisões contraditórias, adversárias e conflituosas de vários magistrados sobre os casos mais gritantes da actualidade, nomeadamente BES e Marquês. De todas as suas decisões, os magistrados deveriam esclarecer, argumentar e prestar contas. Mas não o fazem. Julgam ser seu direito não o fazer. Consideram que as sentenças e os acórdãos bastam. O que não é verdade.

 

Há casos escandalosos de demora, de morosidade deliberada, de lutas burocráticas e de gestos despóticos prejudicando ora arguidos, ora vítimas, ora autores.  Todos os processos famosos, que vivem connosco há anos, fazem parte do quotidiano. Já ninguém espera que se resolvam. Todos pensam que vão prescrever. De comum a estes casos mais falados, o facto de envolverem pessoas poderosas. É provável que tenhamos, na Europa, um recorde de governantes, directores, administradores, banqueiros, deputados, autarcas, magistrados e polícias às voltas com os tribunais e a trato da justiça. Por que razão é tão difícil avançar, resolver e progredir?

 

Talvez um dia os historiadores saibam responder a esta pergunta tão simples: o que correu mal com a Justiça portuguesa? Na verdade, nada, actualmente, parece satisfatório. Sabemos que a justiça se adaptou mal às grandes mudanças das últimas décadas. À democracia, à economia de mercado, à integração europeia e ao novo regime constitucional de direitos dos cidadãos: a todas estas “novidades”, magistrados e instituições tiveram dificuldade em se adaptar. Porquê? Como foi possível?

 

Os profissionais da justiça, ajudados pelos políticos, souberam reforçar os seus poderes, aumentar a sua independência e consolidar os seus privilégios. Organizaram a sua autogestão. E não fizeram esforços para melhorar a sua eficácia, para serem mais justos, para prestar contas, para assumir novas responsabilidades e para melhor cumprir os seus deveres. Voltando à interrogação inicial: porquê? Como foi possível? Resistiram à mudança social e política? Tinham assim tanto poder? São conservadores? Foram os políticos que lhes concederam estatutos e privilégios? Os políticos têm medo dos magistrados?

 

São muitos os casos actuais, do BES ao Marquês, do BNP à PT, que ilustram as dificuldades da Justiça portuguesa. Mas de que se trata verdadeiramente? Da legislação? Dos magistrados? Das regras processuais? Na verdade, um dos pontos mais sensíveis é de recente identificação. A justiça portuguesa faz cada vez mais o caminho da luta de classes e de corpos profissionais, dos diferendos ideológicos e dos conflitos de interesses. Dos seus próprios e dos que partilham na sociedade. Só esta nova luta de classes, muito negativa para a sociedade, explica disfunções e atrasos, conflitos e ineficiências, todos os dias referidos na imprensa. Com uma nota negativa: os magistrados sentem-se no direito de não explicar razões nem argumentar decisões.

 

As generalizações são inimigas da razão e da verdade. Todos os juízes não são iguais. Como o não são todos os procuradores, todos os políticos, todos os tribunais e todos os polícias. São só alguns. O suficiente para deixar o sector em crise, a opinião pública desconfiada e os cidadãos incrédulos.

 

Pode parecer cândido. Mas a verdade é que quase todos sonhamos com a hipótese de independência de uma instituição. Excepto alguns “realistas” ou cínicos, muitos pensam que seria ideal haver instituições que não fossem necessariamente a tradução de interesses, de classes ou de negócios. Sabemos há muito que tudo tem envolvimento social. Não há sector de interesse ou actividade que não tenha conotações sociais. Direito, economia, literatura, filosofia, religião, arte… Regras e pensamentos seguem interesses ou tradições, pontos de vista e visões do mundo.

 

Mas o direito é um caso especial. Na verdade, é o grande instrumento de regulação das sociedades e dos comportamentos. E garante da liberdade. Sabemos como o direito já defendeu os traficantes de escravos ou os proprietários de lenha. Ninguém ignora que a legislação sobre a greve, o direito de voto ou o poder paternal traduz interesses, regras e privilégios. Nada disto é ignorado. Mas também é sabido que o progresso da humanidade se faz pela distância crescente relativamente aos interesses e às visões do mundo parcelares.

 

Ora, a Justiça atravessada pelas lutas políticas e de classes, ou incubadora das suas próprias lutas internas, é a pior notícia que a democracia pode dar ou receber. Nas sociedades democráticas, o progresso faz-se através de formas cada vez mais apuradas e universais. O direito e a justiça não se limitam a defender a ordem estabelecida e as escalas de poderes de facto, antes procuram afastar-se sempre dos interesses parcelares. O direito universal e o respectivo sistema de justiça procuram servir os interesses superiores de um país e de uma sociedade, o bem comum, assim como os direitos de todos os cidadãos, não apenas de uns grupos contra os outros.

 

Há uma procura muito complexa: a de encontrar um justo equilíbrio entre autonomia e independência, por um lado, e democraticidade e representatividade, por outro. Os magistrados sabem que a sua última responsabilidade é perante o soberano, o cidadão. Todos eles defendem, e muito bem, a sua independência, mas todos devem também admitir a responsabilidade. E prestar contas.

 

Não cuidemos apenas das desigualdades sociais e económicas. Nem só das vítimas das injustiças. Pensemos também nas vítimas da Justiça!

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Público, 20.4.2024

 

 

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18.4.24

No "Correio de Lagos" de Março de 2024

 

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No "Correio de Lagos" de Março de 2024

 

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13.4.24

À GUISA DE INTRODUÇÃO


Por A. M. Galopim de Carvalho

Se tivesse que escolher uma actividade extraprofissional, a condizer com a minha maneira de ser e estar na sociedade, relativamente ao conhecimento, seja o científico, em que fui profissional a tempo inteiro, seja qualquer outro, do erudito ao mais iletrado, escolhia, sem a menor hesitação, “divulgar”, elocução que, só muito depois de a praticar, aprendi que radica no latim divulgare, cujo significado é espalhar entre o vulgo, ou seja, entre o povo.

Devo começar por dizer que o meu interesse por saber coisas começou cedo, em criança, não na escola, que recordo como um lugar e um tempo de aflição e de algum sofrimento, mas sim, na rua e em tudo o que nela se passava, em todas as lojas, oficinas e artesanias de portas abertas e, também, nos campos agrícolas, em redor da cidade. Associado a este que se tornou num prazer, surgiu, mais tarde, o gosto de partilhar com os outros os saberes que ia adquirindo. Nasceu assim este meu pendor pela divulgação de saberes, um gosto, quase um vício, que me acompanhou ao longo da vida. Com o tempo, fui descobrindo ou criando formas de comunicação acessíveis ao público a que me dirigia, fazendo uso de uma linguagem falada, e escrita simples, sem perda de rigor, apelativa e agradável. Devo dizer que, em minha arreigada convicção, receber e facultar conhecimento são actos de prazer, mas também de cidadania.

Sem me ter dado conta de que o estava a fazer, iniciei praticar divulgação de conhecimentos durante a adolescência, no mundo rural, um mundo que conheci razoavelmente bem como praticante, activo e interessado, de um campismo selvagem nos campos do Alentejo, o longo dos anos de 1940. Foi no convívio com os camponeses que, em trocas de saberes, surgiu e se consolidou este meu interesse por partilhar muitos dos meus então pouco consolidados saberes. Algumas noções de Ciências Naturais, que aprendia no Liceu, eram tema das nossas conversas. Eu procurava ensinar-lhes as diferenças entre angiospérmicas e gimnospérmicas ou entre monocotiledóneas e dicotiledóneas, tal como vinha no meu livro de Ciências, mas eles sabiam-no e diziam-no por outras palavras, além de que davam nomes a todas as ervas, arbustos e árvores do seu pequeno-grande mundo. Com eles aprendi a distinguir os cogumelos venenosos dos comestíveis e a conhecer os pássaros pelos seus modos de piar e de cantar. Mais do que na escola, aprendi com eles os ritmos fisiológicos das plantas e animais, determinados pela sazonalidade, e a relacioná-los com as práticas agrícolas das diferentes estações do ano. Eu descrevia-lhes a fermentação e eles abriram-me os sentidos ao odor e ao calor exalados pelos montes de estrume. Falava-lhes da composição do ar e do papel do oxigénio na combustão e na vida dos animais e eles levavam-me a ver os fornos de carvão e a conhecer-lhes o cheiro característico. Foi no contacto com os camponeses que vi, na prática, a transformação da rocha em solo. A terra solta, as raízes que se lhe arrancavam, os restos das folhas mortas, apodrecidas, e a microfauna desse admirável e complexo ecossistema, estavam ao dispor de quem quisesse observá-lo, cheirá-lo, esfregá-lo entre os dedos e sentir e ver os grãos de areia e o pó fino, barrento, associado. Do pó da terra e da lama, ao barro e à argila ia um passo e, com mais outro, chegávamos à cerâmica das telhas, tijolos e loiça rústica, vermelha que ainda se usava. Falar de penicilina, das milagrosas qualidades germicidas deste então novíssimo antibiótico, explicando o significado deste e de outros termos do indecifrável jargão da classe médica, era o resultado de uma conversa a propósito do bolor do pão, de todos conhecido. Com esta convivência, interiorizei uma saudável ruralidade que sempre me acompanhou, ao longo da vida, e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico, no qual me movimentei durante cerca de quarenta anos. Com eles, sobretudo com eles, adquiri uma consciência social e política impossível de obter na escola e no dia-a-dia de uma cidade dominada, vigiada e censurada pelo regime político de então. 

Anos mais tarde, na primeira metade dos anos de 1950, repeti esta experiência com os soldados do meu pelotão de instrução, em Artilharia 3, em Évora, a minha cidade. Com estes ainda adolescentes, a quem tinha de dar instrução militar, foram muitas as oportunidades em que, em vez de lhes falar de canhões, munições, espingardas, e outras noções próprias da guerra, partilhei conceitos simples de ciência que iam ao encontro das suas profissões na vida civil. A propósito do que quer que fosse, havia sempre uma noção de química ou de física a explorar. Falei-lhe de sexualidade tema de que apenas conheciam a obscenidade e o palavrão. Entre letrados com apenas a instrução primária e analfabetos, rapazes da cidade e do campo, os recrutas eram esponjas de ouvidos e olhos escancarados.

Durante quatro décadas na Universidade de Lisboa (entre 1961 e 2001, na Faculdade de Ciências, e entre 1965 e 1981, na Faculdade de Letras, em Geografia), mantive estreita ligação com as escolas, quer como orientador dos estágios exigidos nas licenciaturas do ramo educacional, quer a seu convite, do pré-primário ao secundário, divulgando conhecimentos, adequados aos respectivos níveis de escolaridade, em torno de temas das Ciências da Terra, falados no mesmo tom e estilo, simples mas rigoroso e sempre alegre, que usei nas muitas palestras que fui fazendo em sociedades recreativas, centros culturais, bibliotecas municipais e outros estabelecimentos. Aconteceu que, num passa-palavra entre os professores, no caso das escolas, e entre outros interessados, fez com que me chegassem convites de todo o lado e a todo o tempo. Foi assim que me desdobrei em dezenas e dezenas de acções este tipo. Era e é do conhecimento geral que não cobrava nem cobro honorários e que apenas precisava e preciso de ter o transporte assegurado. Esta actividade de palestrante foi-se intensificado com o passar do tempo, tendo-se alargado a todo o território, quer no continente quer nas ilhas. A par destas conversas, lições ou palestras como se lhes quiser chamar, aceitei, com o mesmo empenho, a mesma simplicidade e a mesma alegria, os convites que me chegaram de quase todas as Universidades nacionais. Divulgar conhecimento científico ou qualquer outro entre os meus concidadãos de todas as idades e das mais variadas condições sócioculturais, foi a melhor forma que encontrei para concretizar a minha maneira de estar, ao mesmo tempo, na Ciência e na Sociedade.

“Velhos são os trapos” diz muito boa gente, preferindo usar o termo idoso que, assim, se generalizou. Mas pior do que ser velho ou idoso é ser pensionista contra vontade, como no meu caso, estupidamente afastado do serviço activo e colocado na “prateleira” por imposição do “limite de idade”. Foi o que me aconteceu. Ser descartado é um sentimento que magoa os velhos, em especial aqueles a quem a Natureza, embora os tenha diminuído fisicamente, deixou intacta a lucidez. Velhos que gostam de ser tratados, não pelos muitos anos que a tradição rotula de velhos, mas pelo que conservam de vigor, energia e entusiasmo.

Divulgar a ciência que cultivei como geólogo e professor de geologia, e tudo o mais que aprendi como curioso de muitas “artes”, foi a opção que tomei no sentido de tornar útil e agradável o meu tempo de pensionista. Desde então que reparto as horas a meu belo prazer, e dele fazem parte, entre outras ocupações, transmitir, pela palavra escrita e falada, o que a vida em sociedade e a profissão me ensinaram, a par de uma intervenção cívica que entendo dever ter como cidadão atento que nunca deixei de ser. Os vinte e dois anos de aposentação permitiram-me ler, com o empenho de quem estuda, temas que a absorvência da vida profissional sempre colocou fora do alcance da minha mão. Assim, “embalado” no ofício de professor, de estudar para ensinar, dei por mim a escrever sobre temas de arte, história, filosofia e outros e, ainda, sobre tudo o que a vida me ensinou.

Os textos que, com propósitos científicos e pedagógicos, de há muito venho divulgando, em livros e em textos avulsos nas redes sociais, têm como destinatários preferenciais os professores que, nas nossas escolas básicas e secundárias, se debatem com falta de elementos que complementem os tradicionais e repetidamente estereotipados manuais de ensino. Visam, ainda, o cidadão comum, interessado em conhecer o chão que pisa e lhe dá o pão. Continuo a escrever muitas horas por dia, indiferente a sábados, domingos, períodos de férias ou dias feriados. Isto porque os reformados estão sempre em férias e porque as férias servem para se fazer aquilo de que se gosta. A verdade é que, quando estou frente ao monitor, seguindo as palavras que, letra a letra, os dois indicadores vão dedilhando, num esforço de acompanhar e não deixar perder as ideias que fluem velozes, a verdade é que, dizia eu, não tenho idade nem as mazelas próprias dos gerontes. E, assim, o tempo se foi transformando em palavras sem que o tivesse visto passar.

Não sei quantos anos mais poderei desfrutar desta bela condição de poder sentir a vida. Serão certamente muito poucos, mas isso não me incomoda. Estou perfeitamente consciente das limitações físicas que os anos me impuseram, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo. Já o disse várias vezes e volto a dizer que conservo comigo a criança irrequieta, curiosa de tudo e alegre que fui, o adolescente, inconformado, contestatário, audacioso e irreverente, próprio desses anos. Conservo também o adulto na força da vida, lutador que não dá tréguas e o velho que, a tudo isso, acrescenta a sabedoria, a paciência, a ponderação e a tolerância que os muitos anos ensinaram.

Quando, em 1977, o saudoso Prof. Rocha Trindade me convidou para integrar o grupo de professores do igualmente saudoso Ano Propedêutico, confrontei-me com a necessidade de escrever, semana a semana, capítulo a capítulo, os textos de apoio (os ap) que marcaram uma geração de portugueses agora a raiarem os 60 anos. Foi uma magnífica e saborosa experiência. Foi mais como divulgador do que como académico, usando de toda a liberdade que o sistema consentiu, que redigi as mais de quatro centenas de páginas desses textos, um êxito editorial com muitos milhares de exemplares vendidos. 

Nos 20 anos que exerci funções de direcção no Museu Nacional de História Natural (1983 a 2003), o meu gosto e empenho em divulgar conhecimento teve plena realização nas muitas exposições que ali tiveram lugar, com destaque para as organizadas em torno do tema dinossáurios. Devo dizer que, no conjunto com os funcionários deste Museu, todos nós sem qualquer formação teórica na área da museologia e aprendendo uns com os outros, concebemos e realizámos, entre elas, “Dinossáurios Regressam em Lisboa”, em 1992, uma das mais espectaculares e concorridas exposições de que temos memória em Portugal, com mais de 360 000 visitantes em apenas onze semanas.

A “Feira de Minerais Gemas e Fósseis”, Museu Nacional de História Natural, Iniciada em 1989, completou este ano de 2023, a sua 36ª edição. Também nelas me envolvi empenhadamente, usando-as como uma esplêndida via para divulgar conhecimentos em domínios da mineralogia e da paleontologia. A aceitação do público, das crianças aos adultos foi, desde a primeira, muito grande, testemunhada todos os anos por milhares de visitantes, tendo-se alargado ao Porto e a Coimbra, com regularidade anual, e a outras cidades com realizações esporádicas. 

O gosto pessoal que sempre tive pela divulgação, actividade que sinto como uma forma feliz de conviver e confraternizar com gente de todas as idades e condições sócioculturais, fez com que. nos vinte e dois anos que se seguiram à minha jubilação, intensificasse a escrita, quer em livros (uma vintena) quer em textos avulsos (alguns milhares) nas redes sociais, a par da de conferencista que trazia da chamada “vida activa”. A pandemia, que nos últimos tempos nos atingiu, levou-me a recorrer à modalidade de videoconferências via “zoom”, prática que continuo a utilizar nos casos em que os convites me chegam de localidades suficientemente afastadas da minha residência. 

Mesmo antes da jubilação acontecia muitas vezes acordar a meio da noite a pensar neste ou naquele problema de entre as matérias em que investigava ou ensinava. Sentia então uma irresistível vontade de me levantar, sentar-me à secretaria e trabalhar nele, ao mesmo tempo que, para lá dos vidros da janela do escritório, assistia ao clarear da manhã. Este hábito transformou-se num prazer e, respondendo ao desafio formulado por alguns dos meus mais de 33 500 leitores, de passar a livro muitos dos textos que diariamente, desde 2015, venho publicando no Facebook, eis-me a dar-lhes satisfação. 

 

“Ao Romper da Aurora” nasceu neste contexto e como resposta ao dito desafio.

 

 

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11.4.24

No "Correio de Lagos" de Fevereiro de 2024

 

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No "Correio de Lagos" de Fevereiro de 2024

 

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3.4.24

A CIÊNCIA E A RELIGIÃO SÃO COMO A ÁGUA E O AZEITE

Por A. M. Galopim de Carvalho

Foram muitos os homens e, nos últimos dois séculos, as mulheres, que pedra sobre pedra, foram erguendo o edifício da ciência, hoje ao nosso alcance. Esse esforço que, em sinal de respeito e reconhecimento, devemos procurar conhecer foi, para muitos deles, doloroso e, em alguns casos, fatal. No que diz respeito à Geologia, cultivar esta disciplina científica nos tempos anteriores ao século XIX teve os seus riscos. E não foram pequenos

Falar ou escrever sobre a origem da Terra e as suas transformações ou sobre o nascimento da vida e a evolução das espécies, incluindo o surgimento do homem, à luz da ciência e, inevitavelmente, em confronto com a “verdade” bíblica e com os dogmas decretados pela Santa Sé, não foi uma caminhada fácil. Foi, sim, causa de perseguições, sofrimento e, não raras vezes, de sacrifício da própria vida. Basta lembrar Averróis, no século XII, Giordano Bruno, no XVI, Galileu, no XVII, e Buffon, no XVIII, para nos darmos conta dos escolhos postos ao progresso desta e de outras ciências.

A idade de cerca de 6000 anos atribuída à história da Terra pelas Sagradas Escrituras, o geocentrismo, que impunha o Universo centrado no nosso planeta, os seis dias da Criação e o Dilúvio bíblico eram algumas das verdades inquestionáveis pelos seguidores da Fé e não havia lugar para os dissidentes, considerados hereges e, como tal, perseguidos. «Existem sóis inumeráveis e infinitas terras que giram à volta deles, como estes sete planetas que giram em torno deste Sol que nos é vizinho», escreveu o italiano Giordano Bruno. Por essa ousadia e por se recusar a admitir que a Terra se encontrava no centro do mundo, este filósofo dominicano, foi queimado vivo, em Roma, às ordens da Santa Inquisição, para purificação da sua alma pelo fogo, no dia 16 de Julho de 1600.

Se nos concentrarmos nesta parte do mundo onde nasceu e se desenvolveu a chamada civilização ocidental, foi, sobretudo a religião cristã que deu respostas a interrogações cruciais como a origem e a natureza do mundo vivo e não vivo. Do Universo ao homem, passando pelo nosso planeta, onde os mares, as montanhas e os rios, os vulcões e os sismos eram alvo de um misto de curiosidade e temor, tudo era explicado pelos doutores da Igreja. E essas explicações impunham verdades globais, definitivas e indiscutíveis.

A ciência, pelo contrário, não impõe. Propõe. Aponta explicações, sujeita-as a debate, a escrutínio e a verificações. Reformula-as em função da descoberta de novos elementos e, se necessário, retira-as do discurso, dado que o seu objectivo é a verdade dita científica.

Como é vulgo dizer-se, a ciência e a religião são como a água e o azeite. Não se misturam. Coexistem, mas cada uma no seu campo. É evidente que as atitudes de uma e de outra perante as entidades e os fenómenos naturais, são geradoras de confronto, hoje razoavelmente civilizado e pacífico nas sociedades civilizacionalmente mais avançadas, mas conflituoso e, muitas vezes, cruel e desumano, no passado. Apesar das perseguições, a ciência, com os seus argumentos objectivos e de apelo à razão, ia ganhando cada vez mais força. Foram muitas as vezes em que a igreja tentou submeter os “sábios” e pôr o seu trabalho ao serviço da Fé.

A Geologia foi, sem dúvida, um dos domínios do conhecimento científico cuja competição e cujos conflitos com a religião (em particular com a Igreja católica) foram mais graves e violentos. Oprimida e perseguida, durante séculos, por um catolicismo fundamentalista, a Geologia já ganhou, em muitos países, estatuto de ciência de grandeza compatível com a sua real importância na sociedade, o que não é o caso em Portugal, onde esta disciplina continua subalternizada nos currículos escolares e continua arredada da cultura geral dos portugueses, dos mais humildes e iletrados à elites intelectuais mais iluminadas.

Com algumas excepções, a ciência não é perseguida nos dias de hoje. De mãos dadas com a tecnologia, constituem alavancas poderosas para o bem e para o mal, ao serviço de uma humanidade a um tempo sabedora e desencantada, à procura de um caminho que tarda em encontrar.

Ao evocar filósofos, astrónomos, geógrafos, naturalistas, geólogos, mineralogistas e paleontólogos que, tijolo a tijolo e degrau a degrau, ergueram o maravilhoso edifício das Ciências da Terra, deparámo-nos, a cada passo, com a mencionada competição, que só terminou em finais do século XVIII, com a vitória do liberalismo.

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A esmagadora maioria das personalidades incluídas nesta obra são homens e isso deve-se unicamente à condição de inferioridade, nesses tempos imposta às mulheres, a quem o ensino era praticamente vedado. O século XX acabou com essa indignidade e, assim, são muitas as mulheres, hoje tantas ou mais do que os homens, que ocupam os bancos e as cátedras das universidades e participam na investigação científica e tecnológica.

 

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EMPIRISMO NO PENSAMENTO DE ARISTÓTELES E NO DE ROGER BACON, MUITOS SÉCULOS DEPOIS.

Por A. M. Galopim de Carvalho

Se, numa aula de filosofia, o professor começar por dizer que a palavra empirismo tem raiz no grego “empeirikós” e que significa experiência, está praticamente tudo explicado. Assim, um tema que quem não sabe julga difícil de abarcar, torna-se tão simples como uma conversa em torno da cozinha, por exemplo. Empirismo, na filosofia de Aristóteles, é, pois, a linha de pensamento segundo a qual todo o conhecimento deve ser baseado na observação do mundo e não na intuição ou na fé. "Não existe nada na mente que não tenha passado pelos sentidos", afirmou este que foi o fundador do Liceu de Atenas, no século IV a. C. Esta linha opõe-se ao Inatismo de Platão, conhecido como corrente do pensamento que acredita e defende que o conhecimento de um indivíduo é uma característica que nasce com ele ou, dizendo por outras palavras, que lhe é inato. Não obstante ter sido seu discípulo, Aristóteles contrariou esta concepção do mestre. 

Quase 17 centúrias depois, o inglês Roger Bacon (1214-1294), filósofo e alquimista, alargou o pensamento de Aristóteles introduzindo a variante experimental, no sentido de trabalho de laboratório. O Empirismo deste frade inglês, conhecido como "Doctor Mirabilis" (Doutor Admirável em latim), alude, entre outras, às experiências que, séculos depois, continuam a ser feitas nos laboratórios do presente, estando, portanto, na base do método experimental. É hoje um dado assente que que só os resultados experimentais permitem a indução em ciência. 

Base ou fundamento do método científico, o Empirismo ensina que todas as hipóteses e teorias devem ser testadas por dados experimentais.

Diferente do conhecimento científico (baseado em factos verificáveis e comprovados pela experimentação), o conhecimento empírico, no sentido que hoje vulgarmente se lhe dá, é o que se adquire na nossa vivência diária, aprendendo superficial e acriticamente, através dos sentidos, fazendo, errando e corrigindo. É, em suma, o da experiência pessoal. Não obstante não ser considerado de nível científico, o conhecimento empírico, nesta óptica, foi a base de toda a sabedoria que, ao longo de séculos, conduziu a humanidade até o surgimento da ciência e continua a conduzir todos os milhões de homens e mulheres que, vivendo à margem da ciência, beneficiam de tudo o que ela produziu e produz em termos de tecnologia.

No caso da culinária, por exemplo, o conhecimento é essencialmente empírico, não devendo, todavia, esquecer-se que os electrodomésticos e outros equipamentos ao dispor, assentam em conhecimentos verdadeiramente científicos e que, cada vez mais, a ciência, nomeadamente a bioquímica, tem vindo a introduzir ensinamentos importantes no que respeita a dieta alimentar.

Na imagem:

Roger Bacon no seu laboratório. Pintura de Ernest Board (1877-1934)

 

 

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1.4.24

AQUELE BORREGUINHO BRANCO.

Por A. M. Galopim de Carvalho

“Comer o borrego pela Páscoa, no Alentejo, como no resto do País, está ligado a tradições religiosas e culturais chegadas até nós, vindas de longe, no tempo e na distância. É ler a Bíblia e ver como este simpático animal, com este ou outros nomes, se liga à tradição judaico-cristã, não sendo difícil procurar-lhe raízes ainda mais antigas. No antigamente, sacrificava-se o anho no altar; hoje come-se o borrego em reunião de família, depois de passadas as trevas e a dor, todos os anos evocadas durante a Semana Santa.

Nos meus tempos de criança quem tinha posses matava o borrego em casa, no sábado, logo pela manhã, a fim de que a sua carne pudesse figurar na ementa do almoço desse dia, já festivo, depois de bem anunciadas as Aleluias, ao meio-dia, nos carrilhões da Sé, logo seguidas pelo repicar de todos os sinos de todas as igrejas da cidade e arredores.

Era a festa! Era o fim do luto!

Umas semanas antes da Páscoa, por volta do ano de 1936, o meu pai comprou um lindo borreguinho acabado de desmamar, que já se governava sozinho se o deixassem em campo com erva.

Nós tínhamos necessidade de o levar a pastar, "fora de portas", no que nos disputávamos constantemente. Cada um queria para si o direito de segurar da corda que o prendia à coleira, onde chocalhava um pequenino guizo de latão. Vê-lo saltar, correr com ele que, por fim, já nos seguia, sem trela, e vinha ao nosso chamamento, era uma alegria nunca vivida. O Chico, que era o irmão mais velho dos então cinco irmãos, fez-nos saber qual era fim destinado ao nosso alegre e simpático companheiro de folguedo nos terrenos incultos e cheios de erva do lado de fora da muralha fernandina.

Inexoravelmente, aproximava-se o sábado, o dia do sacrifício. Cedo se organizou um “comité” de luta. Uns, entre os quais eu, tinham por missão espiar os planos do “inimigo”, procurando nas conversas dos pais os elementos com que os mais velhos delineavam as estratégias a empreender.

Já sabíamos que o tio Manuel, irmão do pai, caiador e homem de todas as profissões, viria sábado, bem cedinho, ocupar-se da matança antes que os sobrinhos acordassem. Eu teria quatro para cinco anos, era o mais novo; o mais velho, uns onze a doze e os três do meio, a Lourdes, a Beatriz e o Mário, faziam, entre si, diferença de um ou dois anos. Nessa manhã, após uma noite de vigília dos mais velhos, que se revezaram em quartos para que não falhasse a alvorada, levantámo-nos bem mais cedo do que a mãe pensava e aguardávamos o momento de dar execução ao plano traçado e meticulosamente aprendido por cada um, no papel que lhe cabia.

Entretanto, nos dias que antecederam aquele Sábado, tínhamos exercido intensa actividade de sensibilização da mãe, onde sabíamos estar a última palavra no desfecho do drama, chamando-lhe a atenção para a graciosidade do bicho, forçando-a a acariciá-lo, redobrando, para que visse, as nossas atenções e brincadeiras com ele.

- Ó mãezinha, ele é tão lindo! Nós gostamos tanto dele!

Visivelmente aflita, a mãe já não sabia o que fazer, dividida, por um lado, entre as dificuldades próprias de uma família numerosa e de posses muito limitadas e, por outro, o nosso amor por aquele animalzinho e a simpatia que, também ela, já nutria por ele.

Quando, no sábado, o tio chegou, a mãe, de olhos inchados e vermelhos, já estava no quintal com os alguidares e os preparos necessários. O tio trazia a navalha, bem afiada e bicuda. Num canto, o "mémé", branco de algodão, preso à trela, balia como que chamando a si a atenção da mãe que, roída por dentro de remorsos antecipados, evitava olhá-lo.

- Vá, Manuel, despache lá isso, depressa!

De rompante, descemos a escada de acesso ao quintal e berrando uns, chorando outros, rodeámos o animalzinho com tanta determinação que não houve quem tentasse, sequer, tirá-lo das nossas mãos. A mãe, mentalizada de há muito pela nossa acção, foi a primeira a ceder, mais aliviada do que contrariada. Afinal, também ela não queria o sacrifício do bicho e percebera a tempo o que essa violência representaria para nós.

O tio, completamente alheio ao drama, aceitou mal aquela mudança de última hora, não prevista e, sobretudo, o que mais lhe desagradou foi perder aquela pele branquinha que lhe renderia uns tostões. Saiu resmungando, indignado com a cena de insubordinação.

O pai foi o último a saber do resultado do confronto. Quando apareceu no campo da refega, a batalha estava decidida e não seria ele a pegar na faca. Não havia vencidos!

Havia Aleluias!”

Para o bicho, para nós e também para eles, de aliviados que ficaram. O pai acabou por ir ao talho comprar a carne que a mãe, de pronto, encomendou para a Festa que, assim, o foi de facto.

De um borrego qualquer, que nunca havíamos conhecido e passada que foi a tensão vivida, com que apetite comemos e que bem que nos souberam aquelas costeletas fritas com alho, aquele maravilhoso assado, no Domingo, e o ensopado, na Segunda-feira de Festa.

O borreguinho, acabámos por conceder, levou-o para o monte o senhor Domingos, o marido da nossa lavadeira, depois de nos prometer, solene, libertá-lo entre os outros que por lá andavam e não consentir que ninguém o levasse. – Nunca!

De vez em quando perguntávamos-lhe por ele.

- Está lindo e mais crescido!

– Ó paizinho, quando é que vamos ao monte do senhor Domingos ver o nosso amigo?

- Um dia destes! – respondia.

O tempo encarregou-se de diluir a nossa preocupação e de nos confrontar com a realidade que também nos ensinou a aceitar.

Esta história, tantas vezes contada em sucessivas festas de Páscoa, reunida a família em torno da mesa com a assadeira de barro ao centro, fumegante e apetitosa de odor e cor, sofreu ao longo dos anos retoques de todos nós, já crescidos, dando-lhe as cores que cada um tomou para si.

Porém, no essencial, foi isto que aconteceu, há uns oitenta e poucos anos. Nunca soubemos o destino deste nosso companheiro, embora não seja difícil imaginá-lo.

Para mim, em todas as Primaveras, há sempre, nos campos do Alentejo, um borreguinho branco e saltitante a perpetuar-lhe a imagem.

 

 

 

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