30.6.19

Grande Angular - Preto e Branco

Por António Barreto
A decisão das autoridades estatísticas nacionais, a começar pelo INE, de não incluir, no Censo de 2021, perguntas, mesmo de resposta facultativa, sobre as origens étnicas ou “raciais”, parece justa. Não são conhecidos os fundamentos da decisão, mas a conclusão é a mais sensata.
A inclusão destas questões chegou a parecer interessante. Talvez os resultados ajudassem a reflectir e a conhecermo-nos melhor, o que é uma vantagem. Se a finalidade fosse só a de conhecer, até poderiam ser incluídas perguntas de carácter fiscal, alimentar, sexual, sanitário, cultural e desportivo. A informação e o conhecimento são inesgotáveis de interesse e curiosidade.
O problema começa com a privacidade e a dignidade pessoal, valores muito evocados, mas com frequência ignorados. Por que razão desejará alguém revelar, mesmo sob a aparência do anonimato, dados sobre a sua vida, as suas crenças e os seus hábitos? Por que razão quer o Estado saber isso de alguém, pessoas ou comunidades? Em tempos de devassa e de exibicionismo, tudo parece legítimo, mas é bom marcar fronteiras e traçar limites.
Depois, temos o problema, aparentemente técnico, das perguntas facultativas, solução defendida por alguns e já adoptada para a religião. Essas perguntas fazem pensar na famosa frase de Clinton, “fumei mas não engoli”. Ou numa das frases mais repetida em Portugal, “sou católico mas não praticante”. Nem sim, nem não. Sendo facultativas e não sabendo quem não responde, qualquer conclusão é puramente especulativa.
Difícil é o problema da nomenclatura. Que categorias devem ser adoptadas? As quatro, branco, negro, cigano e asiático, como defendem uns? Mas onde estão os mestiços, fazem parte dos brancos escuros ou dos negros claros? E é possível colocar no mesmo plano “brancos” e “asiáticos”? Ou “negros” e “ciganos”? Ora, branco e negro é cor, asiático é continente, cigano é etnia. Um branco ruivo com sardas e um norte-africano ruivo com sardas são diferentes? O “asiático” não inclui dezenas de etnias diferentes? Nomes recentes como luso-descendente, afro-descendente e luso-africano designam exactamente o quê? O que é um afro-descendente? Pode ser branco, negro ou mestiço? Ou só negro? Porquê? E um brasileiro, naturalizado português, filho de pai japonês e mãe mulata brasileira é o quê?
A questão dos mestiços é particularmente interessante. Não há só mestiços de branco e negro. Há também de branco e chinês, ou indiano, ou índio, ou cigano, ou mouro, ou árabe… Como classificar? E se usarmos os mestiços de qualquer das variedades acima, como por exemplo chinês e árabe? Meio negro, meio cigano, é o quê? Só mestiço? Igual a meio branco, meio japonês? E os filhos de brancos e de goeses de Moçambique?
A mistura de conceitos é flagrante. Cor, continente e etnia são coisas diferentes. Há negros asiáticos, australianos, africanos, europeus e americanos. Como há brancos europeus, asiáticos, africanos, australianos e americanos. As misturas de cores e de etnias evocam a religião, a história e a política. Como classificar um Persa, um Curdo, um Arménio, um Pársi, um Hebreu ou um Ismaelita? Um Berbere ou um Núbio? Um cristão branco do Líbano e um branco de Moçambique? Um Banto ou um Zulu? Os caucasianos do Norte de África são o quê? E os Palestinos, os Saarauis e os Chaouis?
Se africano quer dizer nascido em África, teremos de admitir que há africanos negros, mestiços, árabes, brancos, egípcios, berberes, núbios e muitos outros, não há apenas Africanos negros. Se europeu quer dizer nascido na Europa, então há europeus persas, chineses, árabes, curdos, turcos, negros, brancos e indianos, não só brancos.
As confusões entre povo, religião, etnia e comunidade são numerosas, sem esquecer que há ainda quem pense que há diversas espécies humanas e várias raças. Africano, Europeu, Asiático e Americano são origens geográficas, não são raças. Branco, negro e amarelo são cores, não são etnias. Branco é cor, cor não é só negro. Pessoa de cor é toda a gente, branca, amarela e negra. Judeu, Ismaelita, Curdo, Arménio, Berbere, Muçulmano, Aborígene australiano, Maori e muitas outras designações afins introduzem confusões e misturas entre origem geográfica, religião, etnia e cultura, o que só complica as coisas. Colocar no mesmo saco Vietnamitas, Chineses, Japoneses, Coreanos, Cambojanos e Tailandeses é absolutamente errado.
Na questão religiosa, já contemplada com uma pergunta facultativa, o que se fica a saber é nada. Três espécies de cristãos, uma de judeus e uma de muçulmanos não resumem nem definem. As chamadas “seitas”, com centenas de milhares de seguidores, não se distinguem. Jeová, Maná, Mórmones, Sikhs, Hindus, Budistas, Adventistas, IURD e tantos outros não se destacam. Não se sabe o que representam os que responderam, muito menos os que não responderam. 
Ainsistência na separação das origens raciais aumenta as potencialidades de racismo na sociedade. Desperta preconceitos. Conduz a classificações indevidas, com categorias que se sobrepõem à de cidadão. Tentar combater o racismo com a oficialização das categorias raciais é absurdo. Reforçar a designação oficial de raça e etnia vai dar razão aos que nunca se esquecem de dizer que “negro matou”, “cigano roubou” ou “chinês violou”, sem tal referir quando se trata de um branco. 
Fica-se com a sensação de que há várias espécies de motivações para incluir e tornar oficiais estas designações. Uma será a de reduzir a duas grandes categorias, os brancos e os negros, para alimentar as lutas raciais. Outra, a de eliminar as misturas, os mestiços, a fim de definir dois campos em confronto. Uma outra será consequência de uma ilusão, a de que devemos e podemos saber tudo, para tudo planear e de tudo fazer uma política.
A recolha de dados raciais não serve para combater o racismo. Pelo contrário, pode contribuir para o desenvolver, através do reforço de demarcação e pelo incentivo à fragmentação social e racial. As identidades étnicas e comunitárias parecem hoje mais perigosas para os direitos dos cidadãos e para a liberdade do que as identidades nacionais plurais. Uma coisa parece certa: há em Portugal grupos de várias etnias, incluindo brancos e negros, apostados, por razões políticas, em aprofundar as clivagens étnicas entre residentes em Portugal. Por isto, o debate sobre o Censo foi útil.
Público, 30.6.2019 

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29.6.19

Apontamentos de Lagos - Bebedouros

Colaboração no "Correio de Lagos" de Junho de 2019

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SE NÃO HOUVESSE VENTO, NÃO HAVIA SURF, NEM BODYBOARD, NEM CERTOS PROCESSOS NATURAIS.

Por A. M. Galopim de Carvalho
Como toda a gente vê, estes dois desportos têm, por suporte natural, a vaga em rebentação na praia, o tipo de litoral a que aludi no post de ontem. Acontece que esta onda, um dos principais agentes da dinâmica actuante na zona litoral, não é mais do que a agitação da camada superficial das águas numa determinada “área de geração”, lá longe, no oceano, soprada pelo vento. A ondulação transporta quase toda essa energia (a do vento), sob a forma de ondas ou vagas, a caminho dos litorais, consumindo-a aí, quer na rebentação, quer nas “correntes litorais“, (um tema a abordar noutro post) a que dão origem. 
Ao aproximar-se de terra, e à medida que a profundidade se reduz, a crista da onda torna-se, progressivamente, assimétrica, tombando para a frente até rebentar.
As características físicas da ondulação (altura, período, frequência, etc.) reflectem a energia disponível e dependem da intensidade do vento, da duração da sua incidência e da “distância de colecta”, isto é, a extensão, em comprimento, da região do mar soprada pelo vento. Com poucas perdas durante a propagação, as vagas atingem os litorais, exercendo aí, sobretudo, erosão e transporte. Nos fundos arenosos não consolidados, situados a profundidades susceptíveis de sofrerem as acções das vagas, estas remobilizam uma parte mais superficial da cobertura móvel (em geral, areia, promovendo sedimentação (ou ressedimentação) muito particular, reconhecida pelas marcas de ondulação, ou “ôndulas”, que lhe são próprias.
A retenção, nas grandes albufeiras das barragens hidroeléctricas, da 
maior parte dos inertes , em trânsito nos rios, é uma das causas dos recuos verificados em certas linhas de costa. Outra causa reside na extracção industrial de inertes (areias e/ou cascalho), na ordem de muitos e muitos milhões de toneladas por ano, das praias, das dunas e dos rios, incluindo os estuários. O desassoreamento de portos e barras constitui uma outra causa dos referidos recuos. A construção de enrocamentos, como sejam os molhes e os esporões, com o fim de proteger determinados sectores da costa, acabam sempre por transferir o mesmo tipo de problemas para jusante e, geralmente, de forma agravada. A adulteração da paisagem física em nome do desenvolvimento é um facto que está a atingir proporções preocupantes. Os reflexos no litoral da intervenção do homem são hoje bem visíveis e as soluções encontradas, para os minimizar ou eliminar, nem sempre são as melhores. A conclusão a tirar desta realidade é a de que não se pode continuar a planear o litoral de costas viradas para os conhecimentos que a ciência já está apta a fornecer. Há, pois, que saber conviver com o mar e respeitar os seus códigos que já conhecemos com razoável pormenor. No sentido de minimizar estes inconvenientes, tem-se recorrido a ensaios realizados em tanques especiais, onde, em modelos reduzidos, se procuram simular as condições naturais e as alterações a introduzir, a fim de estudar os seus efeitos. Modernamente, com o desenvolvimento dos meios informáticos, estão a utilizar-se modelos matemáticos com idênticos propósitos.
Em conclusão e resumidamente, pode afirmar-se que a geometria e as características dinâmicas desta franja “onde a terra se acaba e o mar começa” resultam de um conjunto de factores e condicionantes naturais, a que se têm vindo a sobrepor outros, próprios da civilização, que não é despiciendo conhecer melhor. Para além das oscilações do nível do mar, ou eustáticas , e das deformações da crosta, quer epirogénicas quer orogénicas , sobressaem, por serem mais visíveis: a natureza e a estrutura das rochas (e a sua maior ou menor vulnerabilidade à erosão); o clima, em especial no que diz respeito à pluviosidade, à temperatura e aos ventos; e, ainda, outros factores, próprios do mar, como sejam as vagas (intensidade e orientação), as marés e as correntes marinhas. Em complemento das acções mecânicas destes agentes forçadores, são ainda importantes as de alteração química e/ou de dissolução que a água do mar exerce sobre as rochas do litoral, com efeitos variáveis em função das respectivas naturezas. Por outras palavras, pode dizer-se que esta interface da hidrosfera com a litosfera se define pelas leis naturais, ou seja, pelas leis da física e da química, sempre subjacentes aos processos geológicos e biológicos.
As vagas, desencadeadas por acção do vento, transmitem até ao litoral a energia que dele recebem e têm a sua acção erosiva grandemente potenciada pelo efeito abrasivo dos materiais (areias, seixos, blocos) que põem em movimento. Em resultado desta acção formam-se os litorais de erosão, ou catamórficos, caracterizados por arribas, ou falésias alcantiladas, que recuam à medida que aumenta a plataforma litoral ou de abrasão marinha. Deste recuo restam como testemunhos pontas rochosas, promontórios ou cabos escarpados, muitas vezes prolongados mar adentro por pontuações igualmente rochosas (ilhéus, baixios, escolhos, abrolhos, calhaus, pedras, etc., nos diversos modos de dizer locais), com destaque para a Costa Vicentina e para os cabos da Roca, de S. Vicente, de Sagres e do Carvoeiro, com a conhecida e elegante Nau dos Corvos.

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28.6.19

Vergonhoso tratar-se assim o São Carlos

Por Joaquim Letria
Regressei a Lisboa um dia mais cedo para assistir à Boheme em São Carlos. Não valeu de nada. havia greve e não havia cantores nem bailarinos a cantarem e a dançarem ainda que todos estivessem presentes no largo fronteiro ao teatro, o que proporcionou uma troca de ideias, informações e opiniões civilizada e interessante entre público e artistas que a mim não surpreendeu mas deixou muita gente estupefacta.
Há anos que os artistas da orquestra, coros e corpo de baile de São Carlos pedem respeitosamente e com maneiras que alguém daqueles que mandam neles lhes melhorem as condições de trabalho e também lhes aumentem um pouco os baixos salários que auferem para dar prazer a muita gente que os aprecia e a milhares de estrangeiros, entre os viajantes e os turistas que esgotam os bilhetes daquele maravilhoso teatro onde ouvi os maiores do mundo no século XX, designadamente Maria Callas, Di Stefano, Renata Scotto, entre outros.
As queixas maiores dos artistas do Teatro São Carlos que connosco conversavam, dando a cara e assumindo as razões da sua greve eram não terem recebido, sequer, um telefonema, uma mensagem de telemóvel, um telegrama, um SMS ou um e-mail em resposta ao pedido de contacto da companhia de São Carlos. Também eu fiquei admirado porque desde a ditadura e durante a democracia não me ocorre que os artistas líricos portugueses, merecedores dum mínimo de respeito, assim tivessem sido tratados pela tutela, como a “prima ballerina” chamava à senhora agora nomeada para exercer as funções de ministra. É vergonhoso tratar-se assim o São Carlos.
O trabalho esforçado, as horas ininterruptas de ensaios e de estudo de cada uma das especialidades, a pressão, exigência e tensão nervosa com que cada artista luta para conquistar o respeito que merece, obrigaria que a tal tutela tivesse, no mínimo, o respeito devido a gente muito especial e única que confere ao nosso rosto de portugueses uma qualidade respeitável, única e irrecusável. Não somos só bons a jogar futebol. Também nas artes temos muita gente, e em particular muitos jovens, a merecerem o maior apoio e a maior admiração.
Por isso, entregar esta gente a funcionários boçais ou birrentos e, principalmente, sem maneiras nem saber estar, parece muito mal. Para já, às dezenas de estrangeiros que atónitos escutaram as razões e o tratamento desta greve. Não basta só vender-lhes sardinhas assadas. Enfim, pelo menos levam mais alguma coisa que contar no regresso às terras civilizadas a que pertencem.
Publicado no Minho Digital

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27.6.19

Laicismo e laicidade

Por C. Barroco Esperança

É frequente encontrar beatos embrutecidos pela fé, e crentes moldados pelas Igrejas, que dizem ser a favor da laicidade e contra o laicismo. Há quem o faça de boa fé e quem use um artifício semântico para iludir a discussão.
Normalmente, os que defendem a laicidade e condenam o laicismo são os que apoiam a laicidade quando são minoritários e reprovam um tratamento igual, para o que designam diferente, quando estão em maioria.
Laicismo é o nome de uma doutrina do séc. XVI que pretende para os leigos o direito de governar a Igreja, mas, hoje, diz-se da doutrina que tende a emancipar as instituições do seu carácter religioso. Foi esta a evolução semiológica da palavra.
O Laicismo defende a exclusão da influência religiosa no Estado, na cultura e na educação e tende a libertar as instituições estatais do carácter religioso. Expandiu-se na Revolução Francesa e deve-se-lhe a separação entre a Igreja e o Estado. O laicismo facilita a irreligiosidade, mesmo a anti-religiosidade, mas não é a causa nem impede às religiões os direitos de ensino e organização que confere às outras associações.
Laicidade é o modo concreto da tradução e aplicação prática desse preceito. O laicismo é, pois, a doutrina, e a laicidade o modo de a levar à prática.
A laicidade conduz à neutralidade do Estado e à obrigação de se declarar incompetente em questões religiosas. Cabe-lhe, isso sim, respeitar todas as crenças, descrenças e anti-crenças. O Estado não tem o direito de ser católico, protestante, budista ou ateu e, muito menos, de se pronunciar sobre ‘verdades da fé’. Todos somos ateus em relação ao deus dos outros, os ateus só o são em relação a mais um.
A religião não é um direito do Estado ou das suas instituições, é um direito individual.
Quem distingue o laicismo da laicidade é quem, habitualmente, confunde crenças com os crentes. Estes respeitam-se, aquelas seguem-se, desprezam-se ou combatem-se, fazem parte da disputa do mercado da fé. Um Estado que aceita criminalizar a heresia, a apostasia, a blasfémia ou o sacrilégio não é uma democracia, é a sucursal de uma qualquer madraça, como se as ‘verdades da fé’ de qualquer religião não fossem heresias para a concorrência, e a conversão não fosse pecado gravíssimo para a que se abjurou e um ato heroico para a que se abraçou.
Temos de nos habituar a respeitar todos os crentes e a pôr em dúvida todas as crenças. Só o código penal laico pode proteger os cidadãos, indiferente aos seus credos.
Não há novidades neste texto, mas é cada vez mais necessário distinguir os crentes das crenças, i.e, as vítimas dos seus preconceitos, porque vale mais cada um dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos do que todos os versículos herdados das tribos patriarcais da Idade do Bronze.
Ponte Europa / Sorumbático

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26.6.19

Apontamentos de Lagos - Papeleiras

Colaboração no "Correio de Lagos" de Junho de 2019

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25.6.19

CONGLOMERADO, UMA PALAVRA VULGAR, COM IMPORTÂNCIA NO VOCABULÁRIO GEOLÓGICO

Por A. M. Galopim de Carvalho
Substantivo ou, como alguns gostam de dizer, sintagma nominal, a palavra conglomerado, construída a partir do adjectivo verbal do verbo conglomerar (do latim "conglomerare", com o significado de aglutinar, aglomerar, agregar ou juntar), em que o elemento aglutinador pode ser uma cola, um cimento, uma vontade expressa, um acordo ou outro, é uma expressão vulgar da língua portuguesa com um significado geral, o de elementos unidos numa massa ou corpo coeso, e múltiplos significados particulares, como, por exemplo, conglomerado de estrelas, conglomerado de madeira ou conglomerado de empresas.
No discurso geológico corrente entre profissionais, o vocábulo conglomerado, em sentido restrito, dito ou escrito isoladamente, refere uma rocha sedimentar coesa, resultante da aglutinação de calhaus arredondados ou rolados, em que o elemento aglutinante é um cimento natural, que tanto pode ser de natureza argilosa, como siliciosa, carbonatada ou ferruginosa.
Por convenção entre sedimentólogos e em termos de sistemática, na petrografia sedimentar, o termo conglomeradotem um sentido mais amplo, o de uma subclasse no conjunto das rochas sedimentares terrígenas, ditas conglomeráticas, caracterizadas pela dominância de fenoclastos(do grego phainós, visível, eklastós, quebrado), no sentido de fragmentos, clastos ou detritos rochosos ou minerais, maiores dos que os grãos de areia, ou seja, por convenção, de diâmetro superior a 2mm, independentemente do seu carácter coeso (consolidado) ou incoeso (mobilizável) e do grau de arredondamento dos ditos fenoclastos, variando, como se disse, entre muito bem arredondados e angulosos. 
Para a rocha consolidada, de natureza sedimentar vulcânica, tectónica ou impactítica,em que os fenoclastos são angulosos, foi criado o vocábulo brecha,que fomos buscar ao francês brèche,radicado noverbo alemão brechen, que significa, fender, abrir brecha, partir. Assim sendo, este vocábulo tem sempre de ser complementado pelo termo que refiara a sua proveniência sedimentar, vulcânica, tectónica ou impactítica (do impacto de um meteorito). Em petrologia sedimentar, especificam-se assim: conglomerados, numa só palavra, e brechas sedimentares.
Em 1873, o geólogo alemão, Karl Friedrich Naumann (1797-1873), propôs, para esta subclasse, o termo Psefit,psefito, em português (do grego psephós, que significa calhau ou seixo rolado). Quarenta anos depois, em 1913, o americano Amadeus William Grabau (1870-1946) deu-lhe o nome de ruditerudito, em português, (do latim rudus, alusivo a rude e rudimentar), termo que, de início, envolvia a ideia de material detrítico grosseiro, pouco trabalhado, tosco, isto é, calhau pouco ou nada boleado pelo transporte.
Psefitos e ruditos, dois termos antigos que interessa manter vivos, não só como nome de uma subclasse, referente às citadas rochas conglomeráticas, mas também, em muitos casos, como nome dos próprios fenoclastos que, individualmente, as constituem. Nesta óptica, o termo psefito ou o rudito, tanto podem ser usados para referir um conglomerado (no dito sentido restrito) ou uma brecha sedimentar, como um seixo bem rolado ou um qualquer clasto anguloso.

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24.6.19

Grande Angular - Dinheiro e Poder

Por António Barreto
É possível que as comissões de inquérito parlamentar e os grandes processos judiciais relativos a casos políticos e financeiros não dêem qualquer resultado prático, nem sequer permitam o apuramento de responsabilidades. Os assaltos, os roubos qualificados, a destruição de empresas, os empréstimos públicos pecaminosos e vários tipos de corrupção ficarão, provavelmente, impunes. Grande parte deles, pelo menos. Os casos de que hoje se fala, a utilização de dinheiro para obter poder e o exercício de poder político para conquistar propriedade e fortuna, serão capítulo importante na história do país. Dentro de algumas décadas, os estudiosos, os escritores e os cineastas terão ao seu alcance centenas de milhares de páginas de relatórios e de processos que apenas servirão para isso: fazer história. Já não é nada mau. Os procedimentos judiciais e o voto das comissões de inquérito pouco ou nada servem para apurar a verdade, mas serão de enorme utilidade para fazer história.
Na verdade, aquilo a que estamos ainda a assistir, já na fase de rescaldo, é um dos maiores episódios de luta pelo poder, de partilha dos dinheiros públicos e de concorrência entre famílias e partidos de que há memória. Ficará na história como mais uma reviravolta na balança de poder. Nos últimos cinquenta anos, é certamente a terceira vez que tal acontece. Primeiro, com a revolução de Abril, destruiu-se o capitalismo português, liquidaram-se alguns grupos económicos e alterou-se a relação de forças entre capital e trabalho. Já nessa altura se deu um sinal de que o capitalismo estrangeiro, apesar de ter ficado sob observação, não seria ameaçado. Poucos anos depois, a vaga democrática restaurou algum capitalismo, desta vez mais dependente do exterior. A Comunidade Económica Europeia, futura União, ajudou. Os processos de revisão da Constituição e das reprivatizações serviram para dar alguma esperança à iniciativa privada, tendo-se construído ou reconstruído grupos económicos e financeiros, cada vez mais dependentes, mas com algumas raízes em Portugal. A crise internacional de 2008, a bancarrota de 2009 e a segunda vaga de privatizações, acompanhadas da meia década de austeridade e de assistência internacional, liquidaram de uma vez para sempre os grupos nacionais ou parcialmente nacionais, destruíram algumas empresas portuguesas ou com bases importantes em Portugal e entregaram a multinacionais próximas (europeias) ou remotas (chinesas e angolanas) o essencial da economia e praticamente todo o sistema financeiro.
que se tem passado com o BES, o BPN, a CGD e o BCP deve compreender-se nesta visão mais alargada, mas os que, no sector privado ou na política, agiram com cupidez, dolo e malícia, só serão totalmente identificados dentro de muitos anos. Do mesmo modo, a acção de alguns governantes socialistas e social-democratas ficará um tempo longo à espera de verdadeira responsabilização. Só então os comportamentos criminosos serão devidamente apontados. Tarde de mais para reparação e castigo, mas sempre oportuno para o conhecimento histórico. De qualquer maneira, é bom notar que não se tratou exclusivamente de corrupção e crime. Muito do que aconteceu, com grandes empresas e vários serviços públicos, assim como parcerias, concursos e regimes fiscais, foi produzido e protegido por meios legais, embora constituísse veículo essencial para a transferência de propriedade, de poder e de dinheiro. Os telefones, a electricidade, o gás, os cimentos, os petróleos e os correios fazem parte deste vasto sector de interesses e de luta das classes, onde a corrupção e o crime são relativamente menores quando comparados com o uso da lei. Na verdade, com ilegalidades se cumpre a lei. E legalmente se fazem verdadeiros golpes financeiros. Por isso, a política tem tanta importância para o poder económico. Há uma espécie de Offshore moral e legal: na política, a noção de responsabilidade é outra.
Não se pense que uns partidos só se interessam pelo dinheiro, enquanto outros só pela política. De todo! A verdade é que os partidos têm interesse no poder político e no dinheiro, só que por ordem diferente. Uns querem apoderar-se da fortuna e da propriedade para consolidar o seu poder político. Outros querem este último para ganhar dinheiro e aumentar a propriedade. Parece simples e rude, mas a verdade é que a luta política é muitas vezes simples e rude.
O assalto fenomenal ao poder e ao dinheiro revela bem estes interesses e este jogo político. O processo actual, diante dos nossos olhos, é o terceiro ou quarto desde o 25 de Abril de 1974. A revolução e a reprivatização das empresas e dos grupos redundaram em monumental banquete de que se aproveitaram, simultânea ou sucessivamente, direita ou esquerda. Incluindo vários ministros, primeiros-ministros, secretários de Estado, deputados, altos funcionários, secretários gerais de partidos, banqueiros, gestores e empresários.
É aliás possível encontrar tendências dominantes de comportamento nos principais partidos políticos e nos seus simpatizantes. O PCP detesta o dinheiro e quem o tem. O Bloco abomina o dinheiro dos outros. O PS aprecia o dinheiro, desde que também tenha. O PSD gosta do seu dinheiro. E o CDS deseja dinheiro, mas não diz.
Assim, os revolucionários e os comunistas querem acabar com os ricos e os proprietários. Querem substituir-se a eles, preferem que seja o Estado o titular dos bens e dos rendimentos, mas que o Estado seja deles. Os reformistas não querem acabar com os ricos, nem com os proprietários, mas querem submetê-los ao poder político e também beneficiar. Uns directamente, tornando-se proprietários, nem que seja ilegalmente. Outros indirectamente, transformando-se em gestores públicos e políticos, se possível legalmente. Os conservadores, nomeadamente os de direita, são mais simples e directos: não querem alterar nada de essencial, querem fazer parte da mesa de quem tem propriedade e fazenda.
Admite-se que os partidos, todos os partidos, tenham também uma visão própria do que se chama o “bem comum” ou o “interesse nacional”. Com certeza. Não se pode ser totalmente cínico a ponto de negar seriedade e virtude aos outros. Mas convém ser realista a fim de perceber tudo quanto está em causa. Pena é que, para apuramento de responsabilidades, os magistrados e os deputados não ajudem. Por isso, confiamos nos historiadores. Será tarde, mas alguma coisa se aprenderá.

Público, 23.6.2019

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Apontamentos de Lagos - Papeleiras

Colaboração no "Correio de Lagos" de Junho de 2019

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22.6.19

Corredoira e Agueiros

Por A. M. Galopim de Carvalho




As praias são entidades instáveis. Quando a vaga incide obliquamente ao litoral, a areia retirada e reposta pelo vaivém das ondas vai migrando, em ziguezague, numa trajectória serreada, com uma resultante paralela à linha de costa, no sentido que as condições locais ditarem, referida entre os profissionais por "deriva litoral". Também apelidada de longitudinal ou longilitoral, a deriva é conhecida entre as nossas gentes do mar por "corredoira". 
Na costa portuguesa, no litoral arenoso entre Espinho e o Cabo Mondego, atingido por ondulação maioritariamente do quadrante NW, a deriva tem o sentido N-S e é da ordem de grandeza de um a dois milhões de metros cúbicos de areia por ano (1 a 2.106 m3/a). Na costa algarvia, esta cifra é bem menor, dez a cem vezes inferior, sendo aí W-E o sentido da deriva. O cabedelo da foz do Douro e a restinga de Troia, por exemplo, têm orientação meridiana e apontam para Norte, em consequência do sentido N-S da deriva que aí se faz sentir.
Quando a ondulação se aproxima perpendicularmente ao litoral (nesta situação, a rebentação é paralela à costa) formam-se "correntes de retorno" ou "agueiros", que deslocam os sedimentos para o largo (impedindo a deriva longilitoral), espalhando-os na plataforma continental e/ou permitindo-lhes o escape para os grandes fundos, através dos canhões submarinos. No caso das praias assim expostas à vaga, a linha do litoral é uma sucessão de reentrâncias, em forma de crescente, com a parte côncava virada ao mar. Sempre que a linha de rebentação é paralela à costa, não há, praticamente, deriva. As correntes nestas praias afastam-se do litoral, pelo que constituem grande perigo para os banhistas.
Uma praia pode manter-se, crescer, recuar ou ser totalmente varrida pelo mar, consoante o balanço que aí se estabelecer entre a erosão e a sedimentação. Nestes termos, uma praia minimamente estabilizada indica uma situação de equilíbrio entre a quantidade de sedimentos que recebe de terra (das arribas ou através dos rios) ou do mar (através das ondas e da deriva litoral) e a que lhe é retirada pelo mesmo mar.
O litoral arenoso comporta-se, pois, como um “rio de areia” que corre ao longo da costa, mais ou menos veloz, transportando maior ou menor carga sólida. Com uma parte emersa (praia emersa) e outra submersa (praia submersa), o litoral arenoso mantém-se enquanto os sedimentos, que recebe de “montante”, compensarem os que perde para “jusante” e para o largo. Esta mobilidade conduz a perfis transversais de Verão (perfil de acalmia ou de calmaria), com declive mínimo, diferentes dos de Inverno (perfil de temporal), de mais alta energia, mais abruptos e com roturas de declive.
granulometria dos depósitos de praia varia, igualmente, com a energia disponível. Assim, em condições de acalmia, ao muito pouco declive da face da praia associam-se as areias mais finas. Pelo contrário, o aumento de energia subtrai-lhe os detritos mais finos, deixando os mais grosseiros (areão e cascalho), uma situação compatível com maiores declives da face da praia.

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21.6.19

Apontamentos de Lagos - O 10 de Junho

Colaboração no "Correio de Lagos" de Junho de 2019

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Pim Pan Pum

Por Joaquim Letria
Estas últimas eleições europeias foram um jogo muito divertido. Deram para nos divertirmos, fazermos contas e rirmo-nos de um ou outro candidato que despachámos para a Europa que também tem o direito de se rir deles. De resto podemos sintetizar as eleições num verdadeiro PIM PAN PUM.
PIM que foi o que o Costa fez acertando e levando o partido a reboque até uma vitória “poucachinha” mas mais do que suficiente. PAN que foi aquele partido esquisito que mais subiu a ponto do PS já estar a propôr montar-lhe casa. E PUM que foi o estouro que o PCP deu ao perder 200 mil votos para o PS e para o Bloco.
Marisa Matias e Catarina Martins mais uma vez conduziram o Bloco muito bem e para um resultado que o afirma na terceira força política. Assunção Cristas, que tem aquele ar de alcatra saudável que muito aprecio, foi por aí abaixo, atrás dum Nuno Melo que mais se assemelhou a um forcado amador que ajudou os campinos a levar para o curro a direita que hoje tanto, e bem, preocupa o nosso amado Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Revejo este parágrafo anterior e fico preocupado. Não posso falar assim de campinos e forcados, senão o PAN faz queixa de mim ao nosso Primeiro Costa. É que tudo o que possa lembrar maus tratos a animais deixa-os – e bem – de cabeça perdida. Também acho que se não deve tratar mal os animais, mas estes fulanos do PAN, amigos dos piolhos, carraças e melgas, são perigosos: não se esqueçam que queriam proibir o provérbio “de grão a grão enche a galinha o papo” porque “coisificava a galinha”!
Mas penso eu: estou para aqui a gastar latim com umas eleições em que 70 por cento se absteve?! Mas então quem vai ler isto? Verdade, verdadinha, não vale a pena. Eles já andam desenfreados com as eleições de Outubro, mas hoje ler isto não deve haver mais gente do que o eleitorado do Aliança, que foi muito pouca gente mesmo com o Santana Lopes a atirar-se para fora da estrada com o pobre do candidato.
Assim sendo, o melhor é ficar por aqui, a Vanessa ou o José Luis que escrevam o que lhes faltar que até dia 16 não digo nem mais uma palavrinha. Mal empregada…
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20.6.19

A Síria e o ataque a navios petroleiros

Por C. Barroco Esperança
O ataque recente a dois navios, no Golfo do Omã, quando os preços do petróleo estavam em forte queda, foram logo atribuídos ao Irão, pela Arábia Saudita e EUA.

As suspeitas sobre as informações, americanas ou iranianas, para analisar o vídeo tosco divulgado por Washington não permitem conclusões definitivas, e a credibilidade da administração Trump e do príncipe-herdeiro de Riad não supera a dos aiatolas iranianos.
O ataque a alvos comerciais, agravado pelo local onde ocorreu, é demasiado grave para ser minimizado, e os interesses geoestratégicos fazem da contrainformação a arma que, nestas circunstâncias, atinge a verdade e a transforma em vítima predileta.
Qualquer das partes é suspeita, mas se analisarmos qual o país mais prejudicado, logo se conclui que é o Irão, aliás, vítima do violento boicote dos EUA e da renúncia unilateral de Trump ao tratado nuclear, que os aiatolas estavam a respeitar, não surpreendendo que o ataque aos petroleiros faça parte da política de preços dos combustíveis fósseis e seja um pretexto para aumentar a pressão sobre o Irão e, quiçá, para a sua invasão.
Quando se fala em terrorismo, hoje hegemonicamente de natureza islâmica, não se deve esquecer que a Al-Qaeda foi criada pela CIA nos finais dos anos 80 do século passado, como instrumento da guerra contra a URSS, que invadira o Afeganistão em 1979 e saiu vencida 10 anos depois, com soldados serrados vivos e imensas baixas. Com a invasão posterior dos EUA, foram soldados americanos os vencidos, pelas suas criaturas, com a mesma crueldade e igual desinteresse mediático, no mesmo espaço tribal.
Na segunda metade da primeira década deste século e milénio, um anódino pregador, que viria a adotar o nome de Abu Bakr al-Baghdadi, foi libertado do campo americano de prisioneiros, Camp Bucca, e, com o provável apoio do antigo coronel dos serviços secretos iraquianos de espionagem, Haji Bakr, chegou à liderança do Daesh, que, com a ajuda de militares altamente treinados, se transformou no tenebroso e eficiente Estado Islâmico que, tal como a Hidra de Lerna, renasce e floresce depois de cada derrota e representa hoje uma séria ameaça para a Rússia, disseminado pela Ásia Central onde regressaram muitos dos seus operacionais que combateram na Síria.
A tradição americana na organização de grupos terroristas, de que acaba por ser também vítima, e a sua cumplicidade com Israel e o despotismo cruel da Arábia Saudita, são matéria de reflexão para a análise da política errática e perigosa dos EUA.
Quanto ao ataque aos petroleiros não será fácil descobrir os autores em tempo útil.
Entretanto, perante o relativo silêncio sobre o incidente já se ouve o ruído dos reatores a enriquecerem o urânio para a reativação do programa nuclear iraniano.

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16.6.19

Grande Angular - A culpa e a reparação

Por António Barreto
A desigualdade “racial” (e por vezes religiosa, étnica…) é tema infinito. Em Portugal e no resto do mundo. Entre nós, está agora mais vivo do que no passado, o que se fica a dever a intervenções de brancos e negros, africanos e europeus, cristãos e muçulmanos, judeus e gentios. Sem falar em académicos, artistas e políticos. O tema merece-o. Raros são os assuntos tão perenes na história e com opiniões tão diversas.
Na actualidade, as comemorações do 10 de Junho, os discursos dos Presidentes de Portugal e de Cabo Verde, assim como as intervenções de João Miguel Tavares e os escritos de muitos comentadores trouxeram mais uma vez o tema para a ribalta. Donde nunca tinha saído.
Nestas discussões, há temas recorrentes. Portugal é um país racista? Há racistas em Portugal? O colonialismo foi bom ou mau? Os Portugueses devem pedir perdão pelo colonialismo? Os Portugueses devem pedir desculpa pela escravatura? O colonialismo português foi diferente dos outros, mais humano e mais progressista? Ou foi mais violento? Devemos restituir aos respectivos países de origem os bens, nomeadamente artísticos, vindos (comprados, trocados, encontrados, roubados…) de África, da Ásia e da América Latina? Portugal deve reparar as injustiças cometidas desde o século XVI?
Poderia continuar com estas perguntas. Como se pode facilmente prever, as respostas são as mais variadas e contraditórias que se imagina. Compreende-se, dado que estão em causa valores essenciais, entre os quais os de humanidade, dignidade da pessoa e liberdade. Mas não se espere que cheguemos a consensos. Nestes casos, as opiniões não dependem da experiência ou da observação, mas sim da ideologia, das crenças e da situação de cada um. Um africano negro tem, evidentemente, opinião diferente de um africano branco. Um europeu branco e cristão não é muito parecido, nas suas opiniões, com um árabe muçulmano. A este propósito, um católico defende muitas vezes ideias diferentes de um judeu, um islamita ou um hindu. A democracia vive disso, da diferença. Felizmente, pois uma sociedade decente depende do respeito de uns pelos outros.
Nos debates mais recentes, surgiu a ideia de que os Portugueses (ou, dito de modo mais equívoco, nós) devem reparação aos antigos povos colonizados, africanos em particular. Tal reparação pode tomar várias formas. Desde os aparatosos pedidos de perdão, até à restituição de bens. Modos mais sofisticados apontam agora para a indemnização por perdas de vidas ou de bens durante séculos. Mais suaves são as propostas de políticas de promoção da igualdade, de elevação social, de educação ou de apoio selectivo às minorias africanas, naturais de Portugal ou imigradas. Nada parece mais sensato e humano: ajudar crianças e jovens a ter êxito nos estudos, a aprender uma profissão, a “subir na vida” e a obter um bom emprego.
Que é que isto tem de “reparação”? Por que razão se deve designar como reparação o que deve ser feito de qualquer modo? E por que motivos haveremos de ter políticas diferentes para os jovens africanos negros naturais e residentes ou imigrantes? Qual o motivo que conduziria um país, Portugal, a ter um politica social diferente para uma minoria? Os africanos brancos não merecem? Os brasileiros? Os indianos? Os paquistaneses? E os portugueses?
Como é evidente, tudo resulta em boa medida do sentimento de culpa. Ou do remorso dos contemporâneos. Ou de grupos de interesses, brancos ou negros, que aproveitam esta contrição tardia de uns para obter regalias para outros. Na verdade, não há nenhuma razão para beneficiar especialmente certos grupos, minorias ou não, “raciais” ou não, de primeira ou segunda geração, em detrimento de outros. Não é para reparação de injustiças seculares, nem para cuidar dos sentimentos de culpa de europeus desnorteados, que devemos promover políticas de igualdade, ou antes, politicas de combate à desigualdade. Os bairros miseráveis de pobres, de drogados e de marginais de toda a espécie devem ser combatidos, demolidos e substituídos por bairros decentes, não por razões de reparação pós-colonial, mas por motivos ligados aos valores humanos de igualdade. Pode até ser por compaixão e solidariedade, mas não pode ser por privilégio racial ou étnico. Muito menos por penitência.
Alguns dos piores exemplos de bairros socialmente degradados das últimas décadas (Casal Ventoso, Cova da Moura, 6 de Maio, Quinta do Mocho, Jamaica, Bela Vista, S. João de Deus, Aleixo, Cerco…) devem merecer cuidados e enormes esforços de reabilitação por todas as razões sociais e económicas, independentemente do facto de as minorias étnicas representarem 10% ou 90% da respectiva população. Estes bairros são a vergonha de todos nós e não é por estarem habitados por negros, muçulmanos ou ciganos. É por não terem suficiente atenção por parte dos poderes públicos, dos políticos, das empresas, das instituições, das igrejas e dos sindicatos. É por revelarem a incapacidade de prevenção. É por serem a ilustração deste facto singelo que é o de Portugal ser um dos países mais desiguais da Europa.
É possível, é mesmo certo que as taxas de pobreza são superiores, em termos relativos, nalgumas minorias, nomeadamente negras. Mas, em números absolutos, há mais pobres brancos do que étnicos, negros, ciganos e outros. É verdade que há uma componente racial entre as causas e as manifestações de pobreza, desigualdade e degradação social. Mas a pior maneira de combater tais situações consiste em criar privilégios ou excepções. Não se combate uma injustiça com outra injustiça.
Se os Portugueses de hoje devem reparação aos africanos negros, por que não devem também reparação aos africanos brancos que residem cá? Africano é maioritariamente negro, sabe-se. Mas há centenas de milhares de africanos brancos e até de outras cores e origens que devem ser incluídos no lote. Ou são gente de segunda? E quantos mais povos, quantas mais minorias, merecem reparação? E que reparação merecem os Portugueses, tantos Portugueses, por tanta injustiça histórica, tanta opressão, tanta desigualdade e tanta violência?
A ideia de que os Portugueses de hoje têm de reparar o que os de há cem ou duzentos anos fizeram é totalmente absurda! Os Portugueses de hoje têm de tratar dos seus graves problemas de emprego, saúde e educação, assim como de habitação e segurança, de que sofrem muitos dos que cá vivem, sejam de que “raça” ou origem forem, por eles, por nós, não para desculpar ou redimir almas errantes de ambiciosos contemporâneos.

Público, 16.6.2019 

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14.6.19

Justiça Democrática e Justiça Eficaz

Por Joaquim Letria
O juíz brasileiro Sérgio Moro, que se celebrizou por meter Lula na cadeia, é um habitué de um certo fórum de justiça que se desenrola habitualmente no Estoril.
O juíz expõe, debate e discute procedimentos jurídicos e parece ser muito apreciado por um certo sector da nossa magistratura que frequenta essas reuniões, ainda que haja muitos magistrados que se lhe opõem e não concordam com muitas das suas ideias.
Recorde-se que Sérgio Moro é hoje o ministro da Justiça do Brasil e não se cansa de propor o método da chamada “delação premiada” que ele defende e que encontra entre nós alguns juristas seus adeptos.
O actual ministro da Justiça do presidente Jair Bolsonauro explica com toda a simplicidade esse método que defende a outrance: a gente negoceia e premeia um criminoso menor que possa denunciar ou comprometer um outro mais importante que nos interesse. Claro que com este método, em uso no Brasil e em outros países, o risco de injustiças não tem fim. Se alguém quiser destruir a vida de outrem ou a polícia não for de confiança e deseje encerrar rapidamente um processo, nada mais fácil: basta usar este método e o premiado fazer acusações em troco das quais ou tem perdão ou recebe uma pena menor.
Felizmente que no painel que discutiu este assunto no Estoril, além de Sérgio Moro estava a nossa ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. E lá esteve Moro a defender a delação premiada contra a corrupção. Naquilo que pareceu uma resposta ao ministro brasileiro, Van Dunem, com convicção, afirmou que Portugal se rege por princípios democráticos chegando a sugerir que hoje o Brasil não tem essa prática. A assistência, numerosa e qualificada, aplaudiu.
O problema afigura-se-me ser o perigo dos nossos princípios democráticos, que para além de garantirem a defesa dos direitos dos cidadãos, não são minimamente eficientes na aplicação da justiça. Veja-se, por exemplo, o Processo Marquês, do qual já se diz nos corredores dos tribunais que não poderá ser julgado antes de 2030! Assim, temos uma justiça muito democrática mas muito pouco justa.
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13.6.19

O 11 de junho, o PR e o Dr. João Miguel Tavares no 10 de Junho

Por C. Barroco Esperança

Arredado dos noticiários televisivos, por razões de higiene, li depois os discursos do PR e do seu alter ego, nomeado para presidir às comemorações do 10 de Junho, em Portalegre.
Soube que o 10 de junho é quando o presidente quiser. No dia 10 foi em Portalegre e, depois de atribuir 4 medalhas de ouro a outros tantos estandartes, na Cidade da Praia; e, no dia seguinte, em Mindelo, Cabo Verde, país que tem 21 mil emigrantes portugueses, onde apenas se julgava que, além de turistas, só havia 1, Dias Loureiro, o paradigma de empresário-modelo, assim designado pelo académico-padrão Passos Coelho.
No seu discurso, o PR nomeou portugueses ilustres espalhados pelo mundo. Dado que todos eram ex-governantes do PS, deixou, para compensar, ao presidente da comissão organizadora das comemorações, um truculento jornalista da área do PSD, a leitura de uma redação com a narrativa política de Passos Coelho.
Não se esperava do Dr. João Miguel Tavares a grandeza, a eloquência e a elegância de Sampaio da Nóvoa, num dia igual, nas mesmas funções, noutra cidade, e podia poupar-nos à biografia narcisista do lugar onde nasceu, viveu e cresceu, à árvore genealógica, ao número e nome dos filhos, às suas habilitações literárias, à vida e à vinda dos sogros, de Moçambique, distraído de Camões e das Comunidades Portuguesas.
Regressou aos incêndios de Pedrógão e usou o púlpito como extensão do seu espaço no jornal Público, onde, no dia seguinte, foi reproduzido em duas páginas, 10 e 11, para vazar o azedume, onde concluiu que «…quando se trata de refletir sobre o nosso papel enquanto cidadãos, parte de uma nação e de um tecido social e político comum, colocamos uma mola no nariz e dizemos que pouco temos a ver com isso porque os políticos não se recomendam.». O jornalista, na sua indigência, afrontou quem lhe fez o convite, um político com meio século de legítima militância, o PR.
Não foi um discurso comemorativo, foi um extenso arroto da flatulência fermentada na nostalgia salazarista, na memória do “nosso Ultramar infelizmente perdido” e na moral de que só a direita é portadora.
No dia 10 de Junho, o PR fez uma escolha infeliz, confiou o discurso do dia a quem só podia dar o que deu, da forma que sabia, transformando o feriado nacional no medíocre comício populista. Camões merecia melhor.

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11.6.19

"COM COENTROS E CONVERSAS À MISTURA", Âncora Editora, 2019

Por A. M. Galopim de Carvalho


Foi ontem, 10 de Junho, na Feira do Livro de Lisboa, a apresentação, pelo gastrónomo Virgílio Nogueira Goes, de "COM COENTROS E CONVERSAS À MISTURA", Âncora Editora, 2019
.
Este livro é a continuação de “Açordas, Migas e Conversas”, Âncora Editora, 2018. Como então escrevi, mais de dois anos de convivência virtual, praticamente diária, com os meus, agora, cerca de 9000 seguidores no Facebook, e a insistências frequentes e empenhadas de muitos deles, me encorajou no dever, quase na obrigação, de passar a livro uma selecção dos textos aqui editados (mais de um milhar) num conjunto tanto quanto possível harmónico, intercalando conversas que vão do trivial à divulgação científica e cultural com receitas culinárias de imensa simplicidade, na maioria, marcadas por sabores e modos de vida alentejanos.
Durante séculos, como o faz notar Monarca Pinheiro (1999), o alentejano viveu de «frustração sublimada em invençãoCom as migalhas que lhe couberam, soube inventar uma cultura de eleição, e esta é, talvez, a sua maior glória. Do pouco fez muito e bem». E entre esse muito e bem, nascido da alma deste povo, salienta-se a sua capacidade inventiva nos cozinhados, a que o autor se refere como «arte dos comeres», a par da «arte de musicar», internacionalmente reconhecida, em especial, através dos seus cantares.
Repetindo, por me parecer necessário, partes do que então escrevi, explicitarei que, além de tudo o que aprendi no imenso mundo da cozinha alentejana, desde criança, com a minha mãe e a minha avó, e do que fui modificando e criando de novo, reuni neste outro livro tudo o que pareceu interessante entre relatos ou crónicas de situações vividas e presenciadas, experiências de profissão, intervenções cívicas, ensaios, reflexões que vão da política à filosofia, passando pela divulgação científica e pela arte. A esta aprendizagem culinária juntou-se a outra recebida dos camponeses, em ocasiões do campismo selvagem que fiz, com o meu irmão Mário e outros companheiros, nas herdades rurais do concelho, petiscando e confraternizando, onde os saberes próprios das vidas deles se misturaram com os nossos, adolescentes a estudarmos na cidade. 
Como no livro anterior, “COM COENTROS E CONVERSAS À MISTURA” não tem a preocupação de ensinar a cozinhar. Concebido para os que sabem movimentar-se na cozinha, permite-lhes encontrar nele informação suficiente para confecionar, “à sua maneira”, alguns dos “comeres” que foram e ainda são os meus. Esses “comeres” estão muito, pouco ou nada transformados, dos que vi fazer na grande chaminé da casa da minha avó, em lume de chão, com lenha de sobro ou azinho e em loiça de barro vermelho e de esmalte, e muitos dos que a minha mãe, cozinhando em lume de carvão, há mais de setenta anos, nos pôs no prato. São os cozinhados que me ajudaram a crescer, imensamente simples, à medida do orçamento disponível, e de confecção rápida, posto que a mãe, nesse tempo e numa família numerosa, tinha muito mais que fazer. A este património familiar acrescentei, como disse, um conjunto de receitas criadas de raiz ou transformadas, mas sempre dentro do que poeríamos qualificar de sabor alentejano.
As confecções que aqui se apresentam são, insisto em dizer, particularmente simples, tanto no que diz respeito aos diversos ingredientes usados, como no modo de operar. São acessíveis em termos de procura e de custo, rápidas de preparar, saudáveis, nutritivas, perfumadas e agradáveis ao paladar. E nelas, os “cheiros” têm lugar de destaque. Naquelas em que, tradicionalmente se pisam os coentros e os alhos no gral (almofariz), prefiro batê-los em azeite no copo com a varinha ou no liquificador, com a vantagem de lhes intensificar os respectivos aromas.
Faça, pois, querida leitora ou querido leitor, desta obra e por uns tempos, também o seu livro de cozinha e verifique como isso se reflecte positivamente no seu dia-a-dia em termos de alegria à mesa, facilidade e rapidez de confecção, saúde e economia, o que é um aspecto a considerar nos tempos que correm. E aproveite, com a leitura dos curtos textos associados a cada receita, para recordar o que já esqueceu ou aprender o que não sabia.

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9.6.19

Grande Angular - Desigualdade e serviço público

Por António Barreto

Pagos ou gratuitos, subsidiados ou comparticipados, regulados ou protegidos, os serviços públicos deveriam ser o ponto crítico da acção dos governos, de qualquer poder preocupado com o bem-estar dos cidadãos. Públicos em exclusividade ou em concorrência, privados ou em concessão: por todos os serviços o Estado é responsável.
Por causa da demagogia e da bancarrota dos governos socialistas de José Sócrates; graças à austeridade e ao desequilíbrio social dos Governos de direitas de Passos Coelho; e em consequência da nova austeridade e da renovada demagogia do governo de esquerdas de António Costa, a verdade é que a situação dos serviços públicos se deteriorou de modo visível. Como se nota nos transportes, correios, saúde, educação, segurança social ou atendimento de registo civil e equiparados: em todas estas áreas se tem notado um declínio acentuado e se multiplicam as razões de queixa.
Talvez na justiça se verifique uma melhoria na organização e na eficácia, visível em dados estatísticos. Com excepção da grande finança, do colarinho branco e da corrupção, é possível que na justiça de todos os dias, cível, comercial e de família, haja progressos… 
Recentemente, um importante relatório de actividades da Provedora de Justiça chamou a atenção das autoridades para o facto de as queixas que recebe (milhares por ano…) terem como motivo principal a falta de resposta dos serviços, especialmente da Segurança Social. A própria Provedora não recebe respostas aos seus requerimentos.
O Estado protege os funcionários, por vezes mal, mas melhor do que os restantes cidadãos. Regula mal, as suas funções são quase sempre transformadas em acções repressivas. O Estado gosta de intervir, controlar e dominar. Gosta de ser patrão e dono. Não gosta de concorrência. Interessa-se pelas funções técnicas, mas menos pelos cidadãos. O Simplex foi, em seu tempo, um grande avanço, mas deixou de o ser porque se preocupa com os serviços, não com as pessoas.
Entre todos os males dos serviços públicos, avultam as filas de espera e os atrasos nas respostas. Ambos são factores maiores de desigualdade social. Em situações de aparente igualdade, os mais poderosos e os mais ricos conseguem sempre soluções, com luvas ou sem elas, mas de favor, evidentemente.
Notam-se em particular os atrasos no atendimento a pessoas débeis: nas marcações de consultas, de exames, de juntas médicas e de cirurgias, assim como na obtenção de documentos da Segurança social, da Autoridade tributária, da Caixa de pensões e das repartições de identificação. Demoras igualmente nas respostas a requerimentos sobre reformas, subsídios de desemprego, baixas de doença e outros serviços. Ou ainda obstáculos nas respostas a necessidades de cidadãos que não têm acesso a meios informáticos.
Nos últimos tempos, têm estado sob especial atenção as demoras para o Cartão do cidadão, o passaporte, os subsídios de desemprego e a atribuição de pensões e reformas. Há filas de espera no SEF e nas “lojas do cidadão” desde as duas ou três da manhã. Há gente que, antes de ir trabalhar, dorme no carro, de madrugada, à beira das instituições. Há pessoas que chegam de avião, de Inglaterra, e vão do aeroporto para as bichas onde estão os pais desde as quatro da manhã, a marcar lugar, para os passaportes! Há subsídios de desemprego que podem demorar até seis meses para serem concedidos. Há pensões de invalidez e reformas que podem demorar até dezoito meses para serem pagas.
Nos hospitais, até nas urgências há filas de espera que chegam facilmente às seis horas. A espera por marcação de consulta ou de cirurgia pode ultrapassar os seis meses, sendo que são conhecidos casos de mais de um ano. Num dos maiores hospitais do Serviço Nacional de Saúde, em Lisboa, um jovem com ruptura de menisco, a quem é prescrita uma ressonância “com prioridade imediata”, tem de esperar um ano. É frequente, nos serviços de saúde, apesar de marcação prévia, não haver atendimento porque o médico faltou e os serviços não avisam os utentes.
Muitas filas de espera ocorrem nas piores condições imagináveis. Há algumas que se organizam de madrugada, ao ar livre, qualquer que seja o clima, como por exemplo em Centros de Saúde que abrem às 8.00 ou 9.00 da manhã e onde há gente à espera desde as 5.00 ou 6.00. Há filas de pé, durante horas, ao sol, no Verão, com mais de trinta graus de temperatura, na Penitenciária de Lisboa, assim como noutras prisões. Como há filas de várias horas e centenas de pessoas, desde as 4.00 ou 5.00 horas, diante dos serviços de Estrangeiros, qualquer que seja o tempo que faz cá fora. Parece que os serviços sociais são indiferentes às condições mínimas de conforto de quem já está fragilizado ou em situação de carência. A prontidão e a eficácia deixam muito a desejar, mas a desumanização e a indiferença são ainda mais chocantes.
Destas, quem mais sofre são evidentemente as classes com menos meios. São elas que perdem tempos infinitos, com deslocações difíceis, com esperas longas e por vezes inúteis. Como também são estas as pessoas que têm dificuldades em arranjar apoios para cuidar de filhos menores ou de pais e avós doentes, enquanto perdem horas e dias em filas de espera. Em todas estas situações, o factor constante e mais impressionante é o da desigualdade. O atraso, o desconforto, a perda de tempo, o silêncio, a burocracia e a falta de resposta atingem sempre mais quem não tem meios nem conhecimentos.
Uma questão, aparentemente irrelevante, tem dimensão superior à que se julga: a iliteracia informática e tecnológica de uma parte importante da população, sobretudo classes trabalhadoras e classes médias baixas urbanas, os mais idosos, doentes, reformados e pensionistas, residentes do interior ou rurais. Muitas pessoas não têm possibilidade de aprender ou de lidar com as novas tecnologias, incluindo telemóveis, SMS, e-mail, NET, redes sociais e outros. Os sistemas generalizados na Administração valorizaram (e muito bem) estes novos métodos, mas deixaram para trás grande número de pessoas que, sem descendentes, empregados ou colegas, ficam na impossibilidade de aceder e beneficiar destes novos métodos de comunicação, marcação de consultas e reuniões, adesão a procedimentos modernos, contestação de questões financeiras e fiscais e resolução de problemas a partir de casa.
A verdadeira modernidade da Administração, com que tantas autoridades e tantos políticos gostam de rechear os seus discursos, não é a da tecnologia, é a da humanidade e a da igualdade.
Público, 9.6.2019 

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7.6.19

Miami cheia de Coutinhos

Por Joaquim Letria
Desde os anos 60 que sou fan de Miami, cidade encantadora com condições únicas para nela se viver ou simplesmente visitar.
Estive em Miami, pela primeira vez, em 1962, era aquilo um fervilhante e apaixonante pote de antigos gangsters, cujo papa teria sido o famoso judeu Meyer Lansky, torcionários de Baptista a fugirem da Revolução cubana e uma classe alta hispânica que procurava a ajuda dos Estados Unidos para regressar aos privilégios únicos da ilha de Cuba.
Todavia, a grande maioria daqueles que em Miami ocupavam hotéis, motéis, casas fabulosas e iates de nos cortar a respiração eram as estrelas famosas do crime, do cinema, da banca, da política  e da indústria americana que faziam da Florida um paraíso e de Miami uma festa. Desde então, sempre que tenho dinheiro para isso ou uma qualquer desculpa profissional, eis-me em Miami a apanhar sol, a comer em restaurantes cubanos e a passar horas dentro daquela água verde e quente.
As duas primeiras vezes que estive em Miami fiquei num dos meus hotéis favoritos, o Fontainebleu, um dos melhores do mundo. A partir da terceira vez comecei a descobrir pequenos hotéis, residenciais, motéis, sempre ao longo da Collins ou Lincoln Avenues, ou seja, seguindo por sistema a linha de praias públicas onde podemos disfrutar dos mesmos prazeres que encontramos na praia do Fontainbleu. E aprendi a viver barato em Miami, com a legião de reformados judeus que todos os anos fugiam do frio e da neve de Nova York ou da Costa Leste para o Verão eterno da Florida.
Encontro-me de regresso de Miami, a tempo de votar nas eleições europeias. Agora já não fico em motéis ou residenciais onde dantes aprendi a viver quase dentro dos guias de Arthur Frommer, um popular livro turístico que nos ensinava a viajar barato, dando-nos dicas sobre onde ir e não ir. Ainda tenho presente o livrinho “MIAMI FIVE DOLLARS A DAY”. Mas hoje sigo outra táctica que me deixa a viver na Florida  muito mais barato do que no Porto.
Os judeus sempre me ajudaram muito quando tenho de poupar, e assim passei a ficar no hotelzinho, sobre a praia, onde pernoitam as tripulações da EL Al, dos vôos diários Tel-Aviv – Miami. Nada de extraordinário, mas um prazer, com cancela para a praia.
Enfim, votei, fiquei triste com a abstenção e preocupado com certos aspectos dos resultados. Eu tinha vindo nove horas no vôo directo e excelente da TAP a ver filmes e a pensar em coisas da vida. E sorri para mim próprio quando me lembrei que  Miami teria centenas de Coutinhos para abater se os políticos, os paisagistas e os artistas americanos e hispânicos não tivessem sabido criar uma “little Havana” e transformado áreas problemáticas em verdadeiras obras de arte. Só faltaria, penso eu a escrever esta crónica, o Manso Preto publicar alguma notícia sobre novas investidas contra o Coutinho ou eu vir a saber pelo JN ou pela televisão que estavam a voltar à vaca fria. Não acredito que tal seja possível!
Em vez de derrubarem edifícios transformam-nos em obras de arte visitados por milhares de turistas que percorrem essas ruas de autocarro.


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