28.5.24

CONVITE

 

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25.5.24

Grande Angular - Ainda e sempre a Liberdade!

Por António Barreto

Há dez, cem, mil anos que se pensa e discute a Liberdade! Às vezes mesmo sem ela. Ainda bem. É uma discussão infinita. No dia em que não haja essa discussão, é mau sinal. Ou não há liberdade ou é proibido discuti-la. Esse horroroso dia está longe. A reserva de razão e de força humana é tal que, mesmo em climas adversos, a planta cresce. Enquanto houver seres humanos, haverá liberdade. Ou vontade dela.

 

Em Portugal, de vez em quando, discute-se a liberdade de expressão. O que é e o que não é. Tem limites? Quem zela pela liberdade? Em que consiste a liberdade de cada um? Tem de ser regulamentada? Como se defende? Por que razões a liberdade de expressão é a mais evocada e a mais debatida?

 

É mau sinal discutir agora a liberdade? Será que esta discussão se faz sobretudo em países que têm poucas horas de democracia? Não parece que Portugal esteja pior do que outros. Certo é que há pressões perigosas em Portugal. Os episódios da Assembleia da República demonstram-no. O número de processos relativos ao uso e ao abuso da liberdade de imprensa parece estar a aumentar. Cada vez mais se fala de limites. Não se pode insultar. Não se pode não gostar de alguém, pessoa, tribo ou país. Há grupos especialmente protegidos, o que é mau sinal. Aos períodos de pressão das direitas, sucedem períodos de pressão das esquerdas. Mas o tom moralista e totalitário é o mesmo.

 

É bom discutir a liberdade de expressão. Até porque, sem esta, não se pode discutir as outras! É necessário discutir porque é um conceito móvel. Já houve tempos em que havia liberdade de expressão para os poderosos, não para os dependentes. Para os homens, não para as mulheres. Para os educados, não para os analfabetos. Para os ricos, não para os pobres. Para os indígenas, não para os imigrantes. Muitas destas diferenças, nos países ocidentais, foram diminuindo. Mas as ameaças são permanentes.

 

É por isso sempre necessário renovar a discussão sobre a liberdade de expressão. Portugal é hoje comparável a outros países democráticos. Há entraves à liberdade de expressão? Certamente. Os poderosos são mais susceptíveis do que o povo, é um facto. Os letrados usam melhor a liberdade de expressão do que os iletrados, verdade também. Os que têm protecção política defendem-se melhor, seguro. Muitos magistrados perfilham concepções antiquadas da liberdade de expressão, verdade ainda.

 

A gestão da liberdade de expressão é difícil. Mas mais simples do que se julga. A começar pelo facto de não dever haver limites, de não dever haver quem controla, quem avalia e quem julga. Até porque, em muito casos, não é da liberdade de expressão que se trata, mas sim de crimes de difamação. Como também não é de “discurso de ódio”, aberrante bizarria de invenção recente.

 

Este “discurso” é uma invenção. Ninguém sabe exactamente o que é. Ou antes, é o que convém a quem a ele se refere. Quais são os seus termos? Há uma lista? Quem estabeleceu? Com que direito? Como se comunica ao cidadão o que é proibido? Deverá estabelecer-se um “Index”? Um “Manual de boas maneiras democráticas”? Poderia o sistema de prevenção chamar-se “exame prévio”?

 

O “discurso de ódio” é um dos maiores mistérios do presente. Não distingue entre opiniões e acções. Falar de alguém sem tom afectuoso ou sem elogios, isso é discurso de ódio? Desde quando se deve gostar de toda a gente? Como é possível imaginar alguém que não tenha “ódios de estimação” e não goste de fascistas ou de comunistas, de burgueses ou de sindicalistas, de europeus ou de africanos, de portugueses ou de estrangeiros, de Cristãos ou de Muçulmanos?

 

Se levarmos a sério o “discurso de ódio”, as anedotas com Alentejanos ou Belgas devem ser proibidas. De igual modo, as histórias com Galegos, Judeus, Africanos, Índios e Chineses. Ou Portugas. Termos como Monhé ou Mulato teriam de ser vedados.  Nababo e Soba têm de ser eliminados. “Les portugais sont toujours gais” deverá ser interdito. “Paciência de Chinês” e “avareza de Escocês” ou de Judeu é ódio. “Fazer judiarias” é termo a merecer cadeia. Tratar alguém de Siciliano é condenável. Termos como Mariquinhas têm de ser abolidos. Livros têm de ser reescritos: Lusíadas, Cid, Quixote, Sermões, Camilo, Eça, Castro e Aquilino têm de passar à lupa da nova moral. Esperam-nos tempos sombrios. Mesmo sabendo nós que estas modas e estas pressões vão mudando. Para bem e para mal.

 

Quem quiser perceber o carácter móbil da moralidade dos costumes pode entregar-se a vários passatempos. Por exemplo, ler os álbuns do Tintim desde os anos 1930 até hoje. A maneira como são tratados os Negros, os Chineses, os Russos, as Mulheres, os Animais, até os Portugueses, ilustra bem a evolução de critérios. A leitura dos “Astérix” permite as mesmas conclusões. Outro exercício consiste em ler os “Pontos nos iii”, o “António Maria” e a “Paródia”, todos de Bordalo Pinheiro. Pelo que lá diz, o artista estaria hoje à sombra, impedido de publicar. “O Mundo ri” e a “Gaiola aberta” já teriam sido condenados. O que era ingénuo passou a ser odioso. O que era proibido é agora recomendado ou livre.

 

O grande problema é o da definição dos limites. Quem define? Com que direito? As horas de violência, sexo e palavrões, na televisão, já mudaram muito e evoluem conforme os tempos. Os insultos de hoje não são o que eram há vinte anos. Os nus de hoje não são o que eram há trinta. Com que direito um grupo de sábios, parlamentares, professores, jornalistas, sacerdotes ou advogados define o que posso exprimir e a que horas posso dizer? 

Todos os dias vemos quem se julgue mestre de moral, titular de direitos sobre as vidas dos outros, imbuído de conhecimentos excepcionais sobre o que é bom ou mau para os cidadãos, convencido de que pode transformar em leis as suas preferências, certo de que as suas opções são as únicas decentes! A superioridade moral dos partidos de esquerda só tem de igual a certeza dogmática dos partidos da direita. Os últimos anos têm sido de agravamento deste dilema entre duas formas de despotismo. 

 

A liberdade de expressão ganha força quando se lhe deve aquilo de que não se gosta. Se a liberdade de expressão consiste em pronunciar as frases aceites e os conteúdos admitidos, não há liberdade. Temos eventualmente um belo coro, mas liberdade não.  A liberdade de expressão não se limita a poder dizer o que nos apetece. Implica ter de ouvir o que não gostamos. A liberdade de expressão não é só construtiva! É também destrutiva, crítica e demolidora! A minha liberdade de expressão não termina com a liberdade de expressão do outro. Não! Ela implica a liberdade de expressão do outro, implica que a opinião do outro seja diferente. O confronto entre opiniões, ao abrigo da liberdade de expressão, chama-se discussão. A diferença entre opiniões chama-se controvérsia. A coexistência chama-se liberdade.

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Público, 25.5.2024

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NÖRDLINGEN, UMA CIDADE NO INTERIOR DE UM ASTROBLEMA


Por A. M. Galopim de Carvalho

O astroblema de Ries é uma cratera de impacto localizada no distrito de Donau-Ries, na Baviera (Alemanha), aberta por um asteróide que ali caiu há cerca de 15 milhões de anos, no Miocénico. Com um diâmetro estimado entre 1 e 1,5 km, este grande impactor vindo do espaço, terá atingido a Terra a uma velocidade na ordem dos 70 000 km/h (cerca de 20 km/s).

Deste impacto restou uma depressão circular, ocupada pela cidade medieval de Nördlingen.

Originalmente interpretada como uma estrutura vulcânica, conhece-se, a partir de 1960, a sua origem impactítica. Nesse ano, o geólogo e astrónomo norte-americano, Eugene Shoemaker (1928-1997), e o geólogo chinês, Edward Ching-Te Chao (1911-2008), demonstraram essa origem, com base na presença de coesite, o polimorfo de sílica gerado sob as elevadas pressões de choque associadas aos grandes impactos meteoríticos.

A coesite foi encontrada no suevito da pedreira de Otting, o impactito criado a partir das rochas sedimentares mesozóicas locais, usada na construção da Igreja de São Jorge de Nördlingen. 

Acrescente-se que grande parte da cantaria de Nördlingen usou o dito suevito, que aqui se caracteriza também por conter milhões e milhões de microcristais de diamante, todos com menos de 0,2 mm. Com efeito, as mesmas condições de pressão e de temperatura, adquiridas a partir da energia libertada na colisão, que geraram a coesite, também deram nascimento ao diamante, a partir de um depósito local de grafite,

Volta-se a lembrar que suevito é o nome dado à brecha de impacto, geralmente constituída por fragmentos da rocha do substrato local, englobados numa matriz mais fina e parcialmente fundida. Diga-se que o termo suevito, proposto em 1901 pelo mineralogista e geólogo alemão, Adolf Sauer (1852-1932), radica em Suevia, nome latino da Suábia, região alemã da Baviera.

Admite-se que o impacto que gerou a cratera de Ries tenha sido a fonte dos tectitos (do grego tektos, fundido), conhecidos por moldavitos (do nome do Rio Moldava), encontrados na Boémia e na Morávia (República Tcheca). Atingindo a Terra com um ângulo de 30 a 50 graus da superfície, no sentido WSW-ENE, estes tectitos, gerados a partir da rocha sedimentar arenosa superficial, no sítio do impacto, foram ejectados a distâncias de até 450 km da cratera.

Este astroblema está na base da criação do visitadíssimo Geopark Ries, de grande importância geológica, com reflexos na economia local em termos de geoturismo. O Museu Rieskrater, que lhe está associado, instalado num antigo celeiro do século XVI, em Nördlingen, é um valioso centro de informação sobre tudo o que se relaciona astroblemas. Inaugurado em 1990, já recebeu mais de um milhão de visitantes.

Diga-se, a terminar, que o nome Ries evoca a antiga Rhaetia (lê-se Récia), a região dos Récios, povo anterior à civilização Romana.

A título de curiosidade vale a pena dizer que, em virtude das semelhanças com uma cratera da Lua, a de Ries foi usada no treino dos astronautas da Apollo 14.

Na imagem:

A cidade medieval de Nördlingen, na Bacia do Ries, Alemanha, erguida dentro da cratera.

 

 

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23.5.24

CRATERA OCULTA DE CHICXULUB





Por A. M. Galopim de Carvalho

Descoberta em 1978 pelos geofísicos Glen Penfield e António Camargo, em trabalhos de prospecção de petróleo, ao serviço da PEMEX, Mexican State Oil Company, esta enorme estrutura oculta, com 180 km de diâmetro, testemunho de um megaimpacto, com centro próximo da localidade de Chicxulub (nome de origem maia), no México. 

Estudos mais recentes sugerem que a verdadeira cratera tem cerca de 300 km diâmetro, e que o anel de 180 km, inicialmente admitido, é o de uma sua parede interior. Oculta, em parte, sob a Península do Iucatão, a Sul e, em parte, sob o mar, a Norte, tem sido citada como uma das maiores crateras conhecidas no mundo. Estima-se, em cerca de 10 km, o diâmetro do asteróide que a causou.

Amostras com quartzo de choque ou de impacto e tectitos e outras de argila castanho-esverdeada com um excesso de irídio (relativamente à média nas rochas da superfície da Terra) provenientes das áreas circundantes e a prova de uma anomalia da gravidade, corroboram a origem meteórica desta estrutura. Em apoio da mesma interpretação estavam as evidências de metamorfismo de impacto nas amostras de rochas retiradas dos poços da PEMEX. Outras ocorrências, apontando no mesmo sentido, são os depósitos espessos, heterométricos e caóticos de fragmentos de rocha, que se acreditava terem sido arrancados de algum local e depositados num outro, por um gigantesco tsunami, causado por esse megaimpacto.

Sobre esta enorme estrutura assentam margas e calcários, cujas datações mais antigas indicam-nas como sendo da base do Paleocénico, com cerca de 66 Ma. Sob estas camadas, no interior da estrutura, há vidro, brechas e os característicos grão de quartzo de impacto.

Em 2010, no culminar de múltiplos exames em domínios científicos como paleontologia, geoquímica, sedimentologia, geofísica e modelação climática, dos testemunhos encontrados, ao longo de duas décadas, um número alargado de cientistas (cerca de 40), de três dezenas de instituições de diversos países, assumiram como mais plausível que o impacto responsável por este grandioso astroblema ocorreu há cerca de 66 Ma, no limite entre o final do Cretácico (Maestrichtiano) e o início do Cenozóico (Daniano), a atrás referida fronteira K-T (sigla da expressão alemã Kreide-Tertiär, ou seja, Cretácico-Terciário) e que foi a causa da grande extinção em massa ocorrida nesse curto intervalo de tempo, incluindo a dos dinossáurios não avianos, postulada, décadas antes, em 1980, pelo físico americano Luís Alvarez e seu filho, o geólogo Walter Alvarez.

Nota:

Quartzo de choque ou de impacto é um tipo muito particular de quartzo observável nos grãos de rochas sujeitas a pressões elevadíssimas como acontece nas situações de impactos meteoríticos ou de explosões nucleares subterrâneas. Nestas condições de pressão intensa (mas temperatura limitada), a estrutura cristalina do quartzo deforma-se segundo certos planos no interior do cristal. Estes planos, que são visíveis ao microscópio como linhas, são a expressão visível de estruturas de deformação planar, ou lamelas de choque. Este tipo de quartzo foi encontrado no interior de cratera de Barringer. A sua presença prova que estas crateras foram formadas por um impacto de suficiente magnitude.

Dinossáurios não avianos são estes de que estamos a falar, os que se extinguiram. As aves, todas sem excepção, dos pequenos pardais às grandes avestruzes, são os (que a ciência tem vindo a demonstrar) dinossáurios avianos.

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22.5.24

CRATERA DO METEORO OU DE BARRINGER



Por A. M. Galopim de Carvalho

Há cerca de 50 000 anos, no Pleistocénico, ainda a calote gelada da glaciação Wisconsin (Würm, na Europa) cobria as latitudes do norte da Califórnia e da Pensilvânia, um asteroide com cerca de 50 metros de diâmetro, deslocando-se à velocidade de cerca de 13 km/s, colidiu com a Terra, no planalto desértico do Arizona (EUA), abrindo uma cratera com cerca de 1200 m de diâmetro e 170 m de profundidade. O local do impacto, cerca de 60 km a leste de Flagstaff, dista 3 km para leste do Canyon Diablo, nome do arroio que ali corre num vale profundo, em canhão. 

 

Esta estrutura foi primeiramente referenciada pelos colonos americanos que, na segunda metade do século XIX, estabeleceram ali a comunidade de Canyon Diablo, hoje uma cidade fantasma, dado que se extinguiu no início do século XX. Embora a não soubessem explicar, foram eles que a deram a conhecer.

Em 1902, o geólogo e empresário mineiro americano, Daniel Barringer (1860-1929), teve conhecimento desta cratera e sabendo da existência de milhares de fragmentos de ferro parcialmente oxidados e espalhados nas redondezas, foi o primeiro a interpretá-la, com argumentos válidos, como tendo sido produzida pelo impacto de um grande meteorito férrico. Os ditos fragmentos, designados oficialmente como sendo do meteorito do Canyon Diablo, permitem supor que se separaram do corpo principal antes da colisão. Diga-se que, muito mais tarde, em 1960, geólogo e astrónomo dos EUA, Eugene Shoemaker (1928-1997) descobriu coesite e stishovite em rochas com quartzo do interior da cratera. Estes dois minerais polimorfos de sílica só ocorrem em rochas sujeitas às enormíssimas pressões geradas neste tipo de ocorrências, confirmando, assim e de vez, a interpretação de Barringer. Uma outra descoberta importante atribuída a este investigador foi a do chamado quartzo de choque ou de impacto. Em 1959, Shoemaker descobriu que, sob pressões suficientemente intensas e instantâneas (como são as desenvolvidas pelas explosões nucleares em ensaios subterrâneos) a estrutura cristalina do quartzo se deforma segundo certos planos no interior do cristal, criando como que lamelas, ditas de choque ou de impacto que, ao microscópio, são visíveis como linhas paralelas.

 

A cratera do Meteoro está cercada por um rebordo saliente 45 m acima da planura circundante. Este rebordo já foi mais elevado, dado que se estima ter perdido, por erosão, 15 a 20 m de altura, desde a sua formação, como parte constituinte da estrutura da cratera. Diga-se, no entanto, que ela é o astroblema terrestre mais bem conservado e estudado. A sua idade relativamente jovem (em termos geológicos), os atrás referidos 50 000 anos, e o clima seco do Arizona, permitiram que permanecesse com uma imagem muito próxima da que teve na origem.

 

Acreditando que a maior parte do asteróide se encontrava enterrada no interior da cratera, Daniel Barringer obteve, em 1903, licença de mineração numa área até 2,6 km em redor do centro da cratera. Criou, então, a "Standard Iron Company" que fez perfurações entre 1903 e 1905, mas não encontrou quaisquer vestígios de ferro.

Ele não sabia que a maior parte do meteorito se vaporizara no calor resultante da colisão. No caso do ferro, a temperatura para que tal aconteça é de 2861 ºC. Só anos depois, o astrónomo americano, Forest Ray Moulton (1872-1952), com base em cálculos sobre a energia desenvolvida no impacto, concluiu que a parte do asteróide que atingiu o solo se vaporizou no preciso momento da colisão.

O interior da cratera está preenchido com material do subsolo brechificado e transformado pela pressão e calor decorrentes da colisão, sobre o qual se depositaram alguns metros de sedimentos resultantes da erosão das paredes. 

 

Em 1906, o Presidente Roosevelt autorizou o estabelecimento de uma nova estação dos correios na proximidade da cratera, com o nome de Meteor e, daí, o nome de Cratera do Meteoro (Meteor Crater, na versão original). O nome Cratera Barringer, por que é igualmente conhecida, preferido pela comunidade científica, representa uma homenagem ao atrás referido geólogo e empresário mineiro, o primeiro a interpretá-la correctamente como um astroblema. 

 

Não há um, mas milhares de fragmentos do que podemos designar por meteorito de Canyon Diablo, encontrados nas proximidades. Aconteceu que, momentos antes do impacto, o meteoro se desintegrou parcialmente, espalhando os respectivos fragmentos numa área em redor da cratera.

O seu estudo mostrou tratar-se de um siderito, quimicamente composto por 92,28% de ferro; 7,1% de níquel; 0,46% de cobalto; 0,26% de fósforo; 1,0% de carbono; 1,0% de enxofre e 1,9 ppm de irídio, entre outros elementos-traço. No seu interior há nódulos com grafite, troilite e diamantes nanométricos. Em 1905, o químico francês Ferdinand H. Moissan (1852-1907), observou e descreveu aqui a presença de carboneto de silício, espécie mineral a que, em sua homenagem, foi dado o nome de moissanite.

Em 1953, o geoquímico norteamericano, Clair Cameron Patterson (1922-1995), calculou com base no estudo do meteorito de Canyon Diablo, o valor de 4550 milhões de anos, para a idade da Terra, um valor muito próximo do actualmente aceite (4540 milhões de anos ± 1%).

O maior de entre os milhares de meteoritos de Canyon Diablo, é o Holsinger, com 1,2 m de comprimento e cerca de 639 kg de peso, exposto no Centro de Visitantes localizado no bordo da cratera.

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21.5.24

BÓLIDES, METEOROIDES E METEORITOS


Por A. M. Galopim de Carvalho

O que muitos viram e filmaram, na noite de 19 deste mês de Maio, a riscar e a iluminar o céu, foi o que se costuma designar por bólide, ou seja, um corpo rochoso (meteoroide), de dimensões apreciáveis, vindo de algures, no Sistema Solar, que, na forma de um globo inflamado e brilhante, atravessou velozmente a atmosfera terrestre, deixou rastro luminoso, explodiu e fez ruído.

Este corpo entrou na atmosfera terrestre a uma velocidade na ordem dos 160 000 km/h, ou seja, cerca de 45 quilómetros por segundo, aqueceu por atrito com o gás atmosférico e explodiu e vaporizou-se, deixando de ser avistado quando ainda estava a mais de 50 km de altitude, não chegando a atingir a superfície da Terra. Estima-se que estes corpos entrem na atmosfera a uma velocidade entre os 10 e os 70 quilómetros por segundo. Se deste corpo tivesse resistido uma parte, maior ou menor, que atingisse o solo, teríamos um meteorito.

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METEORITOS

No Livro das Pedras, de Aristóteles (384-322 a.C.), que se julga não ser da autoria deste filósofo, mas sim uma compilação das suas ideias, feita por um anónimo, provavelmente um árabe posterior ao século IX, disserta-se sobre as influências celestiais ou dos astros, em geral, e do Sol, em particular, no nascimento destes e de outros objectos naturais. Uma visão do filósofo sobre estas influências era a de que, sob o efeito dos raios solares, certas exalações se escapavam para a atmosfera. Destas, as chamadas “exalações secas”, associadas às trovoadas, condensavam e caíam na Terra, sob a forma de pedras e, de entre elas, os meteoritos e, daí, o nome de pedras de raio usado pelos antigos. 

Os gregos dispunham do termo “meteoron”, para designar as ocorrências próprias do céu, nome no qual radica a nossa palavra meteoro, usada como o nome dos velozes traços de luz que rasgam o céu da noite. Quando de dimensão milimétrica (à semelhança de grãos de areia) ou ainda mais pequenas, estes corpos, melhor dizendo, estas partículas, em queda (micrometeoroides) sobre a Terra, a velocidades na ordem das dezenas de quilómetros por segundo, aquecem também por atrito com a atmosfera, tornando-se incandescentes, acabando por se volatilizar sem deixarem quaisquer vestígios. São as “estrelas cadentes”, expressão popular de um fenómeno ocorrente na mesosfera, 50 a 90 km acima da superfície da Terra.

Objectos maiores resistem ao calor da fricção e conseguem chegar até à superfície da Terra: são os meteoritos, rochas peculiares que podemos observar, apanhar e estudar. Diga-se que este termo foi “construído” apondo o sufixo -ito (próprio da nomenclatura científica alusiva às rochas) à palavra meteoro que, como se disse atrás, designa as ocorrências, as partículas e os restantes corpos próprios do céu. Com efeito, os meteoritos são rochas ou pedras caídas do céu. 

Por outras palavras, dá-se o nome de meteoróides aos pequenos corpos do espaço interplanetário, que tanto podem ser pequenos asteróides ou os seus fragmentos, como restos de núcleos de cometas, e de micrometeoróides às pequenas partículas que produzem as atrás citadas “estrelas cadentes”, uma vez que são a expressão milimétrica ou inferior dos meteoróides.

Podemos agora dizer que meteoritos são todos os meteoróides que nos caem, vindos do céu, ou que um meteoróide muda de nome, para meteorito, só depois de “aterrar”. Só então o vemos, o apanhamos e podemos estudar.

Para os antigos, meteoritos eram os bólidos (ou bólides), versão portuguesa do termo grego bolis, alusivo a tudo o que se desloque a grande velocidade, o que é, precisamente, a característica destes corpos vindos do espaço. 

Alguns meteoritos, recolhidos na Antárctida, têm sido interpretados como provenientes da superfície de Marte, de onde teriam sido arrancados por uma grande colisão com outro corpo sólido.

Muito pequenos ou muito grandes, entre pedras que cabem numa mão e blocos com dezenas de toneladas, os meteoritos são antigos, vêm de longe e trazem consigo uma parcela importante da história do Sistema Solar, nos seus primórdios. Foi com os corpos (meteoróides) que representam que, há uns 4600 milhões de anos (Ma), se iniciou a formação de todo ou parte dos corpos sólidos do Sistema Solar, isto é, os planetas telúricos ou rochosos (Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Lua e os muitos satélites de outros planetas), os interiores sólidos dos planetas gigantes, ditos gasosos, os asteróides e os núcleos dos cometas. Podemos, mesmo, dizer que com eles se iniciou a nossa própria história como parte que somos deste mesmo conjunto. 

Errantes no espaço interplanetário, os meteoróides colidem entre si ou com os planetas, originando crateras de dimensões entre decimétricas e quilométricas, em função da magnitude dos impactos, variável esta, por sua vez, em função da massa e da velocidade a que se deslocam. Muitos deles caem na Terra num número bastante superior ao daqueles que são recolhidos. Sujeitos ao aquecimento durante a vertiginosa travessia da atmosfera, perderam parte da respectiva massa, deles restando porções maiores ou menores. 

Estima-se em algumas centenas o número destes corpos que, por ano, atingem a superfície do nosso planeta. Destes, dois terços perdem-se no mar, estimativa que tem em conta a muito maior área correspondente aos oceanos. Dos caídos em terra, só cerca de uma dezena, em média, chega ao nosso conhecimento. 

A importância dos meteoritos é essencialmente científica, pois, como se disse, constituem documentos importantes para o estudo da história do Sistema Solar, em geral, e do nosso planeta, em particular. Muitos deles mostram semelhanças com certas rochas do manto superior terrestre, nomeadamente, os peridotitos. Além das espécies minerais aqui identificadas, entre as quais diamante, grafite, feldspatos, piroxenas, olivina e alguns sulfuretos, contêm outras até agora desconhecidas na Terra, como seja, ferro elementar (não combinado), formando ligas com níquel, e ferro combinado com enxofre, sob a forma de troilite, um sulfureto de ferro afim da pirite, mas magnético. Para além de elementos químicos comuns na crosta terrestre (oxigénio, silício, alumínio, ferro, magnésio, cálcio, sódio, potássio, titânio), os meteoritos caracterizam-se pela presença significativa de outros particularmente raros nesta mesma crosta, como irídio, platina, ósmio, paládio, ruténio, níquel e arsénio. 

O estudo dos meteoritos levou à definição de três tipos fundamentais: 

- Meteoritos líticos, essencialmente rochosos, por vezes referidos como areólitos. 

- Meteoritos férreos, formados, sobretudo, por ligas de ferro e níquel, a que se deu o nome de sideritos. 

- Meteoritos lito-férreos, simultaneamente líticos e férreos, conhecidos por siderólitos.

Os meteoritos líticos reúnem dois tipos que muito interessa distinguir: condritos e acondritos 

Mais numerosos de todos os meteoritos conhecidos (cerca de 86%), os condritos são maioritariamente formados por pequenas esférulas milimétricas (1 a 4 mm), ou côndrulos, com olivina e piroxenas, ligadas entre si por uma pasta predominantemente vítrea (amorfa). Contêm, também, partículas ricas em Fe-Ni, sulfuretos e alguns silicatos que estão entre os minerais que primeiro se formaram no sistema solar. Os condritos são os mais antigos de todos os corpos sólidos que orbitam o Sol. Foram criados a partir dos materiais de nébula que deu origem ao Sistema Solar e têm idades compreendidas entre 4550 e 4600 Ma. Não sofreram diferenciação uma vez que não foram fundidos no interior de um planeta ou de um asteróide.

Os côndrulos são interpretados como condensados de gotículas dessa matéria primordial remanescente e em rotação em torno do Sol recém-nascido. Tendo passado por uma fase inicial de fusão, as ditas gotículas arrefeceram e solidificaram, como pequenas esferas, a temperaturas que se estimam próximas dos 1200 oC. As proporções entre os elementos químicos presentes nos condritos são as mesmas que se encontram no Sol, o que também aponta para o seu carácter primitivo como corpos solidificados da nébula solar em arrefecimento. Por outras palavras, os condritos são corpos indiferenciados, testemunhos inalterados das primeiras partículas sólidas geradas em torno do Sol. De entre as dezenas de milhar de condritos recuperados e conservados em Museus, destaca-se o condrito de Jilim, o maior de entre uma chuva de meteoros que caiu próximo desta localidade chinesa em 1976. Com cerca de 1,9 toneladas, produziu, no impacto, um buraco com 5,5 metros de profundidade. Numa outra ocorrência deste tipo, registada em 1912, em Holbrook, no Arizona (EUA), o número de condritos caídos conta-se por milhares.

Com teores de carbono que atingem os 3%, sob a forma de grafite, carbonatos e alguns compostos orgânicos, incluindo aminoácidos, os condritos carbonáceos são um tipo particular de condritos. Podem conter água e minerais hidratados. Uma tal composição indica não terem estado sujeitos a altas temperaturas.

O tão falado meteorito de Allende, alude a um meteoróide que explodiu antes de colidir com o solo, em 1969, perto do povoado do mesmo nome, no estado mexicano de Chihuahua. Os muitos fragmentos recolhidos totalizam cerca de duas toneladas, sendo, até hoje, o maior condrito carbonáceo conhecido e, também, o mais estudado. O grande interesse que lhe é atribuído resulta de se acreditar que representa o tipo de objectos mais antigos do Sistema Solar.

Uma particularidade deste meteorito é a de conter um óxido de titânio desconhecido na Terra, a que foi dado o nome de pangüite, em alusão a Pan Gu, o antigo deus chinês, criador do mundo através da separação de yin (terra) de yang (céu). Mineral refractário, a pangüite formou-se sob as temperaturas extremamente altas reinantes no início do nosso sistema solar, há mais de 4570 Ma, sendo por isso considerado um dos minerais mais antigos que nos é dado observar.

A esta fase seguiu-se a acreção (crescimento por aglutinação sucessiva) de corpos sólidos progressivamente maiores, que podemos exemplificar com os asteróides, atingindo as dimensões dos planetas como o nosso e os que nos acompanham no Sistema Solar. Os corpos suficientemente massivos, com mais de 500 km de diâmetro, diferenciaram-se, à semelhança da Terra, com a formação de uma zona externa, na qual foram geradas as rochas granulares a que pertencem os acondritos (destituídos de côndrulos), uma zona central, ferro-niquélica, como nos sideritos, e uma zona intermédia propícia à coexistência de ferro-níquel e material rochoso, como nos siderólitos.

Nesta concepção, largamente aceite pela comunidade científica, acondritos, siderólitos e sideritos são considerados meteoritos diferenciados, oriundos, respectivamente, das zonas externa, intermédia e central desses asteróides e, portanto, mais recentes do que os condritos. Após fragmentação destes, na sequência de eventuais megacolisões, os seus restos vagueiam no espaço e, sempre que se aproximam da Terra, o suficiente para ficarem submetidos ao seu campo gravítico, caem, passando a chamar-se meteoritos.

Não chega a uma dezena o número de meteoritos caídos em Portugal e dos quais ficou registo. São eles:

- Meteorito da Tasquinha (Évora Monte, Alentejo), em 1796, com 4,8 kg;

- Meteorito de S. Julião (Ponte de Lima), um siderito achado em 1877, com 162 kg;

- Meteorito de Olivença (na fronteira com o Alentejo), um condrito caído em 1924;

- Meteorito de Vila Verde da Raia (Chaves), um acondrito caído em 1925, com 2,9 kg;

- Meteorito do Monte das Fortes (Ferreira do Alentejo), um condrito caído em 1950, com 2,1 kg;

- Meteorito do Alandroal (Alentejo), um siderito caído em 1968, com 25,5 kg;

- Meteorito de Ourique (Palheiros, Alentejo), vários fragmentos de um condrito caído em 1998.

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20.5.24

Camões, Gama e os "envergonhados" que nos envergonham

 

Hoje é o DIA DA MARINHA, em que se comemora a chegada de Vasco da Gama à Índia (em 20 de Maio de 1498), o ponto mais alto de uma viagem que este Senhor imortalizou, mas cujo 500° Centenário os nossos “medíocres de serviço” parecem esquecer. 

“Revoltante mas não surpreendente”, como se sabe.

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18.5.24

Grande Angular - Prova dos nove

Por António Barreto

A mudança de governo e a transição entre governos de partidos diferentes são momentos excepcionais na vida da democracia. No mundo inteiro e também em Portugal. São testes ao funcionamento da democracia. Verifica-se o grau de consolidação do regime, assim como a solidez das instituições. Analisa-se facilmente a força das organizações partidárias e das clientelas políticas. Percebe-se a importância que se atribui à imagem, a expensas do conteúdo. Compreende-se o valor dos rituais, essenciais para a democracia. Tem-se a possibilidade de observar o grau de cortesia e as boas maneiras democráticas seja no Parlamento seja no governo. Quando a sucessão, a alternância e a transição correm mal é sinal de que faltam hábitos e experiência que só o tempo e a cultura acabarão por trazer.

 

No caso actual, a transição está a fazer-se mal. Já houve debates inúteis e de má-fé, como sejam os das contas de despesas, que não esclareceram ninguém. Pelo contrário, aumentaram a confusão. Mas tiveram, infelizmente, uma utilidade: os eleitores ficaram a perceber que aqueles debates não têm outra utilidade a não ser a de passar rasteiras e denunciar os torpes enganos dos adversários. O que poderia ter sido uma importante discussão sobre os fundamentos do orçamento transformou-se numa cena cruzada de engenharia financeira e de maquilhagem de contas, a fim de “passar na televisão” e de impressionar os eleitores. Que já não se deixam impressionar porque, simplesmente, não percebem. Nesse sentido, o melhor orçamento é o que incomoda o adversário, não o que faz melhores contas.

 

A transição também está a correr mal noutros sectores, não apenas nos debates parlamentares. Como, por exemplo, na Saúde, na Cultura, na Segurança Social e Trabalho, na Defesa Nacional e na Segurança pública… Para já não falar da Santa Casa da Misericórdia, que não é uma pasta de governo, mas certamente importante. Nestes casos, um problema central é ou foi o das demissões de responsáveis e das respectivas substituições. Os mandatos não acabam, as substituições são feitas intempestivamente, não se percebe muito bem o que assiste à decisão de demissão e nomeação. Muito facilmente se levantam dúvidas e suspeitas sobre a competência e a honestidade de quem sai, assim se destruindo reputações e carreiras. Muito rapidamente também se acusa o novo governo de corrupção, nepotismo e arrogância. Na transição em curso ainda não se atingiram limites conhecidos noutras ocasiões, pois tudo é ainda muito recente. Mas já assistimos a momentos confrangedores.

 

questão das nomeações de altos cargos da Administração Pública nunca esteve bem resolvida. Quem entra, facilmente demite, condena e arrasa, a fim de nomear quem quer. Chama-se a isso, na gíria nacional, confiança política. Quem sai, queixa-se de injustiça, nepotismo partidário e ilegalidade. Chama-se saneamento.

 

Quem entra tem bons argumentos. Não é possível fazer as “nossas” políticas com os funcionários de outros. Os altos funcionários têm de partilhar os planos de quem governa. Não é possível bem governar com ideias de um partido e dirigentes do outro. Se um governo perde eleições é porque o seu pessoal e os seus programas foram derrotados e trata-se agora de ter tudo novo. Há razão nisto tudo. Um governo novo tem de poder nomear directores capazes de pôr em prática os novos projectos.

 

Só que… As instituições são duráveis, não se limitam a fazer o que um partido manda. Há ideias e programas em curso durante anos e décadas, sem atenção ao que cada partido diz. A execução de políticas é, muitas vezes, a concretização de opções, sendo que estas podem mudar, mas a execução concreta, as regras, as responsabilidades e a prestação de contas dependem das instituições que consagram mais continuidade do que alternância partidária. As mudanças totais, ao sabor dos resultados eleitorais, são causa de desastres, de perdas de direitos e de prejuízos incalculáveis. Há projectos e programas que duram anos a consolidar, não podem ser apagados só porque um partido assim o entende.

 

A verdade é simples, mas difícil. Há situações em que se justifica a “confiança política”, isto é, as nomeações dependerem de critérios políticos. Como há situações em que não se justifica o recurso à “confiança política” que não é mais do que uma alcunha para a clientela política. Há cargos para os quais se exige partilha de ideias com o governante, mas também os há que exigem independência pessoal e competência técnica. Quer isto dizer que a solução perfeita reside algures na convergência de vários critérios. Conformidade com as orientações. Confiança política. Concurso público e isenção. Competência e seriedade. Convenhamos que não é fácil.

 

As melhores soluções não se encontram apenas em dispositivos aleatórios. São também regras conhecidas pela população. São hábitos de escrutínio público. Por exemplo, a formação de um novo governo não deveria exigir um voto parlamentar de aprovação ou de confiança? Quem fica satisfeito com a ideia de ver um governo “passar” sem voto positivo? O próprio programa de cada ministro não deveria ser escrutinado, pelo menos uma vez?

 

Não seria vantajoso para a democracia que numas dúzias de cargos superiores os indigitados tivessem de ser ouvidos em comissões parlamentares? Funções institucionais de especial relevo, na magistratura, na defesa nacional, na segurança pública, nas contribuições e impostos, nas provedorias, na diplomacia e nas informações, entre outras, não deveriam estar assim condicionadas a processos de audição pública parlamentar? As nomeações para grandes empresas e instituições autónomas não deveriam depender de audição pública prévia? Não seria conveniente abandonar a hipocrisia actual e estabelecer uma lista permanente de umas dúzias de cargos e funções que ficariam à mercê do poder discricionários dos ministros, com total dispensa de concursos públicos, mas condicionados a audiência pública? 

 

Não estamos a falar de governo de assembleia, nem nada parecido. Defende-se, isso sim, uma ideia de governo responsável perante o parlamento e de um parlamento com real competência política. Com o actual rumo dos hábitos parlamentares, o que está em curso é a transformação do Parlamento num a câmara de minas e armadilhas, de quezília e chicana. O parlamento, pelo caminho que leva, é uma espécie de auditório onde se preparam espectáculos públicos para a televisão. A função parlamentar é cada vez mais um exercício de “vida real” para entreter.

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Público, 18.5.2024

17.5.24

No "Correio de Lagos" de Abril de 2024

 

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11.5.24

Grande Angular - Desperdícios

Por António Barreto

É sabido que a situação de Portugal é difícil. Já esteve pior. E já esteve mais fraca. Apesar de algumas boas notícias relativas aos últimos anos (sobretudo de carácter económico e financeiro), sabemos que as dificuldades são grandes. Agravadas por uma situação internacional e mundial ameaçadora, muito perigosa e que todos os dias causa ruína e morte. Dito isto, tudo indicava que as autoridades políticas vissem os problemas, percebessem que não há tempo a perder e se entendessem sobre uma linha de rumo. Não unânime, pois claro. Negociada, com certeza. Mas capaz de aguentar os próximos anos e de retirar o melhor possível do que temos. Assim é que se esperava, sinceramente quase toda a gente esperava um arranjo político, sério e honesto, que fosse capaz de garantir alguma estabilidade governativa, uma base de apoio com um módico de solidez e um denominador comum capaz de orientar o melhor o que está à nossa disposição. Por exemplo, finanças razoáveis. Uma economia internacional que ainda oferece algumas oportunidades.  Meios nacionais e europeus pelo menos suficientes para suster um choque. E, apesar de alguma reserva de energia sindicalista e reivindicativa em certos sectores, uma disponibilidade segura da população para compreender um esforço colectivo. Desde que se percebam os objectivos, claro!

 

Em vez disso, temos de contar com expectativas estranhas e viciosas. A principal esperança do PSD e do Governo é que as coisas corram tão mal para as oposições, PS e partido do Chega, que tal seja um enriquecimento sem justa causa. A sua retórica é idiota: façam bem a oposição! Cumpram os seus deveres! É exactamente o contrário do que o Govenro espera.

 

A principal esperança do PS é que as coisas corram mal para o PSD e o Governo. E já agora também para o país. Se corressem bem, seria a sua tragédia. Seria a sua derrota. A retórica é simples: o Governo que cumpra o seu dever e governe bem. Exactamente o contrário do que pensa e espera.

 

A principal esperança do partido Chega é que ninguém cumpra o seu dever, ninguém tenha qualquer espécie de bom resultado, que o Governo se mostre desastrado e que o PS se revele impotente. Deseja que haja mais corrupção e mais saneamentos. Que o governo não consiga aprovar leis e que o PS não aprove projectos.

 

Nos confins da Galáxia, a principal esperança das oposições de esquerda e extrema-esquerda é que a economia corra mal, assim como os serviços públicos e sociais, os que mais se fazem sentir. Com esperança que o governo fique à deriva e que o PS não perceba e não seja capaz de ter influência. Qualquer êxito do PSD, do PS e do Chega é uma derrota para as esquerdas.

 

De comum ao partido Chega e às esquerdas: que não haja aliança, nem coligação, nem entendimento entre o PSD e o PS. Claro?

 

O partido Chega espera que haja acidentes e incidentes com imigrantes. Confia no aumento do crime. Deseja ardentemente que as filas de espera nos hospitais não se resolvam, que os professores e os policias façam greve, que haja desordem na rua e que a corrupção cresça e se multiplique. Já percebeu que as suas únicas hipóteses são as que resultam de catástrofes nacionais. 

 

O PS tem as suas melhores pessoas a fazer leis que distribuam dinheiro, pensões, reformas e subsídios. Para ganhar créditos e para obrigar o governo a dizer que não. Apesar das boas condições, o PS sabe que só o desastre do PSD e do Governo lhe voltam a dar votos.

 

Entretanto, no meio dos comuns mortais, exige-se rápida acção e urgente intervenção nas ruas das principais cidades do país, a começar por Lisboa e Porto, onde situações de miséria, sem abrigo, ilegalidade, indignidade humana e pobreza proliferam, sem controlo nem remédio. Volta a haver bairros da lata em Portugal. Lamenta-se a diminuta, inoperante, impotente ou nula atenção prestada às cidades portuguesas, ao absoluto declínio das ruas e das praças, ao esterco nas ruas, à habitação miserável, sobretudo a falta de habitação. Em vez de acção, temos direito a debates teóricos sobre a engenharia orçamental.

 

Esperava-se pronta intervenção no SNS donde chegam notícias alarmantes quanto a filas de espera, questões laborais e salariais e gestão das consultas e das cirurgias. Em vez disso, demite-se o seu director, sem motivos nem fundamentação.

 

Pensava-se que as guerras na Ucrânia e em Israel, a crescente ferocidade ameaçadora da Rússia, assim como as ameaças americanas de suspender a NATO já eram suficientes para que o debate da Defesa Nacional e das Forças Armadas estivesse no domínio público e preocupasse boa parte dos cidadãos, mas, em vez disso, tivemos, do Ministro da Defesa, a idiota proposta ou reflexão, se é que se pode chamar a isso uma reflexão, sobre as capacidades correctivas das forças armadas e sobre o seu papel na recuperação de delinquentes.

 

Esperava-se acção forte e destemida do Presidente da República relativamente às deficientes e agravadas condições de governação, sem maioria e com confusão de executivo e de legislativo. Em vez disso, tivemos o inútil, incompreensível e excêntrico apelo à reparação das malfeitorias portuguesas durante 500 anos.

 

Em vez de acudir ao que é urgente, empurram-se os partidos uns para cima dos outros. E tivemos direito a um dos maiores absurdos de história de Portugal, uma das maiores idiotias que só não é risível porque é indigna e dramática: a acusação de alta traição à Pátria feita ao Presidente da República pelo partido Chega.

Na Administração Pública, começou mais uma série de movimentos telúricos dito enxurrada, fornada e saneamento. Na política portuguesa, tal ficou com um cognome: chama-se confiança política!

 

Para atacar as dificuldades, havia tudo, quase tudo. Meios, conhecimento, tempo e necessidade. Há uma situação económica e financeira melhor do que se pensava ou receava, há a possibilidade de, com coligação de esforços e de votos, reorientar para o investimento, melhorar a produção, aperfeiçoar o Estado social. Mas, em vez disso, temos uma querela de adolescentes malcriados para saber quem é culpado e quem é responsável pelas poupanças existentes, pelos subsídios distribuídos, pelos impostos aforrados… Havia tudo. Há tudo. Só não há maioria parlamentar, nem esforço conjunto para governar.

 

É mentira, mas é conhecido: são os pobres que desperdiçam mais. Ou antes, é aos pobres que o desperdício faz mais falta!

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Público, 11.5.2024

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4.5.24

Grande Angular - Escola única, livro único

Por António Barreto

que é irreparável não tem reparação. É simples, mas é difícil compreender. Ou antes, dá jeito utilizar o conceito, na esperança de compensação. Que não se confessa, com certeza. Mas a reparação contemporânea do colonialismo, da escravatura e da “conquista” é muito útil para alimentar o “ego” ou obter vantagens económicas. Os países que pediram perdão e já começaram a reparar, têm todos ou quase todos interesses políticos, económicos e militares nos países beneficiários.

 

A escravatura é irreparável. Ponto final. Todas as suas vítimas estão mortas. Os que com ela ganharam também. Aceite por quase todos na altura (menos as vítimas, claro), é hoje repudiada por toda a gente. Os males que a escravatura fez, a violência que usou, a crueldade com que agiu, a injustiça que praticou e os milhões de vidas que destruiu, não têm reparação, a não ser demagógica ou com interesses disfarçados.

 

Pedir perdão pela escravatura é inútil e, sob a aparência de beatitude, é hipócrita. Não apaga crimes, não repõe justiça. Não castiga malfeitores. Não compensa vítimas, geralmente mortas há séculos. Relativamente à escravatura, à conquista, ao colonialismo ou ao racismo, essencial é não encontrar sucedâneos de igual natureza, mas sim respeitar as pessoas, aceitar a dignidade de todos e cultivar a liberdade.

 

Em vez de reparar o irreparável, importante é cultivar a liberdade e o pluralismo, não substituir pensamento único por único pensamento. Quase todos os movimentos de opinião dos últimos séculos têm um ponto comum: o desejo de reformar a educação, de dar uma orientação às escolas e aos programas, de redigir os novos manuais e de formar consciências. Os Republicanos pensaram em expurgar as escolas da perfídia monárquica, adaptando-as ao novo sistema de vida, à gloriosa República. Contra os malfeitores Republicanos, Salazar garantiu que não havia uma “escola neutra”, refez programas e criou o “livro único”, ajustando tudo aos novos tempos de “Deus, Pátria e Família”. Contra os Fascistas de diversos tempos, os Democratas não tiveram sossego enquanto não tentaram fazer uma escola de programas democráticos. Contra a Democracia liberal e plural, nunca os socialistas, comunistas e outros marxistas deixaram de se preocupar com uma escola formadora de consciências e com programas que anunciem a nova sociedade. Contra as tradições ocidentais dos últimos séculos, múltiplos movimentos empenhados na raça, no género e na idade, tentam hoje adaptar a escola aos novos valores, moldar espíritos das novas gerações e formar novos cidadãos. Entre as maneiras de o fazer, conta-se a elaboração de programas e a redacção de manuais.

 

Este processo de substituição não tem falhas. Quem pretende criticar o que lhe parece errado, elimina a ortodoxia e aprova nova orientação. Com o propósito de formar consciências. Afonso Costa e Salazar, Hitler e Mussolini, Estaline ou Mao Tsé-Tung tiveram em comum o apetite de orientação doutrinária. Ainda hoje, programas educativos e respectivos manuais traduzem a tentação de “moldar espíritos”.

 

Nas modas actuais, a inclinação dirigista, para não dizer totalitária, está sempre patente. A muito pouca gente ocorre admitir a ideia de uma escola livre, de programas abertos e de manuais plurais. Ou antes, de uma pluralidade de manuais, ficando os estudantes e as suas famílias responsáveis pelas escolhas. Não, não é essa a ideia preponderante. É, isso sim, o propósito de uma ordem alternativa. Para apagar o racismo, destruir o machismo e derrubar o capitalismo, são necessários a escola e os manuais devidamente orientados.

 

Explicar o colonialismo e a escravatura, por exemplo, é tarefa permanente. Ainda recordamos os manuais do Estado Novo. As suas “narrativas” e as suas explicações para os Descobrimentos, a colonização, a escravatura e a conquista traduziam o que se espera e conhece. Não faltavam a superioridade da civilização ocidental e a missão evangelizadora dos portugueses. O descobrimento e a conquista eram o resultado do esforço dos missionários e dos descobridores portugueses. O que os guiava, a eles e aos poderes metropolitanos, não eram o interesse, a cupidez, a ambição e a vontade política, mas sim a “missão” e a “vocação” do Ocidente em geral e dos Portugueses em especial.

 

Qualquer pessoa com um pouco de idade recorda esses manuais. Às escondidas, denunciava-se a explicação metafísica, beata e hipócrita, revelava-se o verdadeiro interesse imperialista e colonialista dos portugueses e dos ocidentais. Agora, há quase cinquenta anos, é constante o esfoço de construção de uma nova ortodoxia. Com novas actualizações. Já se exige a elaboração de novos manuais taxativos em questões de colonialismo, racismo, exploração capitalista, machismo e ditadura de género. Parece que é preciso demolir a ideologia dos Descobrimentos. Entre activistas e militantes, entre sociólogos e pedagogos, dá-se voz às exigências de novas escolas, novos métodos, novos programas e novos manuais a denunciar a “culpa” dos Portugueses, dos capitalistas, dos colonialistas e dos esclavagistas.

 

O tão urgente esforço de exigência de isenção para a escola pública, para o programa e o manual, está já substituído pela pressão de uma nova ideologia. Raras, muito raras são as pessoas que defendem um esforço de isenção. É verdade que nada é absolutamente neutro na vida, a escola também não. Mas, lutar por uma neutralidade ideológica é uma luta superior. Por que razão não haverá manuais mais ou menos marxistas e materialistas, ao lado de idealistas e confessionais? Por que não será possível conviver, na mesma escola, com todos os manuais possíveis, ficando às famílias a faculdade ou o dever de escolher?

 

As escolas que praticam obrigatoriamente o cristianismo, o islamismo, o judaísmo e qualquer outra forma de imposição de valores não são progresso da liberdade, bem pelo contrário. São sempre formas, mais ou menos radicais, de imposição de valores e de intoxicação. A China e a Coreia do Norte, tal como o Irão e Cuba, são bons exemplos de sistemas escolares despóticos.  A proibição de ensinar Darwin e o evolucionismo, em vigor em várias regiões americanas, é do domínio do obscurantismo. Como são todas as tentativas de impor novas ortodoxias, mesmo as que se designam por libertadoras, democráticas e progressistas. 

 

Por que diabo se exige das autoridades que façam leis e aprovem novos programas e novos manuais? Descolonizar não deveria implicar a imposição de uma nova doutrina. Libertar não deve criar novos livros únicos. Reparar a escola opressiva, não se faz com uma escola de livro único. Nem sequer democrático.

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Público, 4.5.2024

 

 

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