Por C. Barroco Esperança
Quando, em 1953, entrei para o Liceu Nacional da Guarda, já conhecia a cidade. Vivia a duas léguas de distância, numa aldeia onde tinha ido um carro com a imagem da Sr.ª de Fátima rodeada de pombinhas, milagre que extasiava as criaturas e as fazia ajoelhar no chão, e de padres com pressa de recolherem o óbolo e demandarem outra paróquia.
Levava no currículo 4 sacramentos, que a Igreja não brincava em serviço, e três exames oficiais: o da 3.ª classe, feito em Vila Fernando, o da 4.ª, com distinção, na escola Adães Bermudes, e o de admissão ao liceu, mas já antes ia à cidade, onde o meu pai regressava após o exílio de cada promoção na hierarquia das Finanças. Recordava a deslocação para ver o Carmona, com o bigode e a farda da fotografia da minha escola, na Praça Velha, cheia de gente, e o carro de bombeiros ardido nesse dia. Vi a primeira farda com dragonas, com o homem dentro e o bigode de fora, sob o boné, aos ombros do meu pai.
Nesse ano esperei dois meses pelo seu regresso de Bragança, em casa de pessoa amiga, antes de nos hospedarmos na Pensão da D. Bernardina, até arrendar casa.
A Guarda albergava mais padres por metro quadrado do que Braga e os estudantes eram a maioria da população. Escasseava saneamento, luz e água canalizada em muitas casas, mas havia missas todos os dias e o terço no mês de maio, o mês de Maria, na igreja da Misericórdia e na de S. Vicente.
Quem precisasse de fazer um telefonema, depois do fecho dos CTT, tinha, até à hora do encerramento, o Café Cristal, que funcionava como posto público, onde os estalidos dos períodos de conversação desencorajavam, pelo preço, o excesso de palratório.
Nos três Cafés da cidade, Mondego, Monteneve e Cristal, só duas mulheres, ambas de nome Dores, celibatárias e tementes a Deus, frequentavam o Café. Uma, era a D. Dores do Centro (Centro de Assistência Social), e a outra, a D. Dores Mantas, que se tratavam reciprocamente por Sr.ª D. Dores e frequentavam o Café Mondego. Este era, dos três, o que tinha o melhor bilhar livre, o mais saboroso café e o mais nauseabundo sanitário. Entrava-se nos urinóis com a respiração suspensa. Um dia, um engraçado escreveu em letras garrafais, na parede, à altura dos olhos, «Ninguém diga desta água não beberei», e o odor passou a agredir demoradamente as pituitárias, vítimas do riso irreprimível.
Merece referência o ‘Centro’, onde a D. Dores era a precetora de jovens que não tinham posses para frequentar o liceu ou o colégio. Era meritória a obra pia, estabelecimento de ensino de alunos pobres da cidade e internato dos que vinham das aldeias, uns e outros moços de recados antes de chegarem a empregados de balcão nas lojas onde a D. Dores negociava funções e salários com que ajudavam a pagar a educação. Alguns chegaram longe, devendo ao Centro o impulso que os levou à Universidade, passando por diversos empregos com que custearam os cursos superiores.
Nesse tempo, por constrangimento social e ativismo pio de alguns professores, era usual a desobriga coletiva dos estudantes antes das férias da Páscoa, com o preenchimento de uma ficha destinada ao padre Isidro, destino duvidoso se acaso fosse esse pároco, de tão pouco siso, o responsável do ficheiro. Mas era um meio de controlo ideológico, isso era.
Eram parcas as diversões na cidade. As bicicletas, alugadas à D. Prazeres, eram o regalo caro e apetecido. O circo, o carrocel e os carrinhos de choque surgiam com a feira de S. Francisco, em outubro, e a de S. João, em junho. Depois, só restavam os matraquilhos.
A televisão foi o acontecimento da década de cinquenta. Perante ela, perdeu relevância o dedo de S. Francisco Xavier, exposto três dias na Sé, onde, no adeus, sermoneou o padre e deputado da U. N., Pinto Carneiro. Foi uma notável peça de parenética, antes de a relíquia prosseguir em rali pio, pelo país. Só a visita de Humberto Delgado, em 1958, inflamou os ânimos, mas os alunos do liceu ficaram retidos, a pretexto de uma palestra imposta, sobre Gil Vicente, enquanto o general, candidato a PR, permaneceu na cidade.
A Guarda foi um alfobre de quadros do País, e caíram no esquecimento as mulheres que foram das aldeias com filhos, sobrinhos e filhos de vizinhos, deixando o campo, a casa e os maridos, para serem o suporte dos estudantes numa espécie de albergaria onde os que não eram filhos se alojavam ao farnel, pagamento em géneros e cem escudos mensais, geridos de forma a que todos pudessem frequentar os estudos e singrar na vida.
A amnésia coletiva sobre essas heroínas anónimas, tantas vezes analfabetas, que faziam de mães e criadas, que colocavam o dedo tingido nos contratos de arrendamento, da luz e da água, que iam à praça, compravam os víveres, o carvão, a carqueja e o petróleo, faziam as camas, lavavam a roupa e preparavam as refeições, é uma injustiça para quem fez a dádiva que evitou à geração seguinte a repetição do sofrimento que foi o seu.
No despojamento, no sacrifício silencioso e na determinação dessas governantas houve uma epopeia coincidente com o papel que era reservado às mulheres, o maior sacrifício e o mais generoso tributo na mais anónima condição e na mais pungente ingratidão.
E ainda arranjavam tempo para, durante os exames dos filhos, se ajoelharem na peanha do lado esquerdo do transepto da igreja de S. Vicente, para implorar ao patrono que os protegesse.
No lado direito, noutra peanha, sob o olhar resignado da Virgem, rezavam ave-marias as prostitutas que vinham dos bordéis, ali perto, na Rua Poço do Gado, e que, às vezes, soía serem mães, também. Não faltavam, aliás, à ditadura, filhos delas, não dessas que agora recordo, mas isso são contas de outro rosário, isto é, prosa para outras crónicas.
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