Por António Barreto
As memórias e as biografias dos
dirigentes políticos são interessantes. Já não têm influência, mas oferecem a
oportunidade de rever a história. E ajudam-nos a compreender episódios que, sem
a dimensão pessoal, poderiam ficar misteriosos. O problema é que as versões
contraditórias sobre os mesmos assuntos são inevitáveis.
O que, esta semana, sobre a
Cimeira dos Açores, nos disseram Jorge Sampaio e Durão Barroso, não foge à
regra do erro de paralaxe. Este decorre, segundo os dicionários, de um desvio
óptico. Muda o observador, mas parece que é o objecto que mudou. Isto é: tudo
depende do ponto de vista. Se, com observadores, o erro é possível, com
protagonistas é provável. Os ângulos de visão de Sampaio e Barroso provocam
visões diferentes do objecto. Este último, no caso vertente, não é pequeno: é a
guerra e a paz.
Foi em 2003 que se realizou a
cimeira que precedeu a guerra do Iraque. Bush, Blair, Aznar e Durão Barroso
conversaram durante umas horas. O Português era o anfitrião. A participação de
Portugal nas operações que se seguiram não estava em causa. Mas a hospitalidade
tinha valor político. A meio do Atlântico, acolhida por um membro da NATO cujos
membros estavam divididos, o local da reunião tinha mais significado do que o
expediente geográfico.
É um momento forte da diplomacia e
da posição de Portugal no mundo. De avaliação das alianças internacionais. E de
decisão importante para a paz e a guerra. O então Chefe de Estado, Jorge
Sampaio, e o então Primeiro-ministro, Durão Barroso, não têm hoje a mesma visão
do que se passou. Tinham ideias diferentes sobre os méritos da questão, o que
não é inédito nem grave. Que tenham hoje recordações diferentes é mais
aborrecido. Mas útil. Porque podemos aprender com a história. Ou antes, com as
histórias.
Dias antes do início da guerra,
já os jornais portugueses falavam dessa iminência, garantiam que a reunião dos
Açores era a última tentativa pacífica e relatavam declarações do presidente
americano segundo as quais os americanos estariam dispostos, com ou sem
autorização das Nações Unidas, a atacar o Iraque. Os mesmos jornais sublinhavam
que Durão Barroso concordava com o ataque militar.
Temos duas versões do mesmo
acontecimento. Em quem confiar? Não tenho nenhum motivo para acreditar piamente
no que me dizem Sampaio ou Barroso, sobretudo se estão um contra o outro. Creio
que nunca saberemos a verdade. A não ser por fé, o que não parece ser bom
critério. Mas é possível, mesmo sem testemunhas autênticas, reflectir sobre o
caso.
Se Sampaio tem razão, não é
admissível que, sobre assunto tão importante, o Primeiro-ministro o tenha informado
tardiamente. Ou lhe tenha ocultado o que estava em causa e omitido conversas
com os aliados. Se Sampaio tem boa memória, o que se passou é inadmissível. Ou
antes: é sintoma do sistema de semipresidencialismo em que vivemos. Sampaio não
devia, em tema tão grave, dizer apenas “nada a opor”. Sampaio não pode dizer
que ficou estupefacto e deixou correr. Sampaio não podia desconfiar da urgência
e nada ter feito para impedir a precipitação. Sampaio não pode dizer que tinha
reservas e desculpar-se com a falta de competências do Chefe de Estado.
Se a memória de Barroso é mais
fidedigna do que a de Sampaio, não é admissível que em assunto tão grave o Presidente
da República tenha apenas dito “nada a opor”. Nem que se tenha mantido passivo.
Se Barroso está a dizer a verdade, o que se passou é inadmissível. Dois dias de
prazo são insuficientes. Dispensar o acordo do Chefe de Estado ou satisfazer-se
com o “nada a opor” é erro. Aceitar o “nada a opor” é não perceber que o
presidente “lavava as suas mãos”.
Portaram-se ambos mal! Por
decisão ou ocultação. Mais uma pérola para as aventuras do
semi-presidencialismo!
DN, 15 de Maio de 2016
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