26.10.24

Grande Angular - Lisboa sempre, Lisboa nunca

Por António Barreto

Lisboa é uma das mais belas cidades do mundo. Olhem para ela a partir da ponte do Tejo, da outra Banda, do Panteão, do Castelo de S. Jorge, de Santa Justa ou dos mais altos edifícios da cidade: o deslumbramento é incansável. Veja-se Lisboa a partir das ruas da Madragoa, de Belém, da beira rio e até da Baixa: o encanto é inconfundível. Esta Lisboa, que já foi e quase não é mais, está a desaparecer. Sem ordem nem ideia, sem plano nem cuidado. Lentamente, os lisboetas adaptam-se e habituam-se a tudo: ao lixo nas ruas, à erva dos passeios, à calçada levantada, aos buracos nas ruas, aos abrigos rodoviários desfeitos, aos edifícios em ruína deliberada, ao estacionamento em segunda fila, às filas de carros evitáveis e às filas inevitáveis de cidadãos diante dos serviços públicos. Os lisboetas habituaram-se aos monumentos em ruínas, às casas abandonadas, às fachadas históricas deformadas e à publicidade luminosa de parolo e pechisbeque. Os lisboetas habituaram-se ao desmazelo, à fealdade e à sujidade. Tal como se habituaram ao pobre, ao sem abrigo e ao pedinte. 

 

Pior do que tudo, os lisboetas habituaram-se à desigualdade, à miséria, à imigração explorada, aos trabalhadores estrangeiros ilegais, aos alojamentos imundos, aos bairros segregados e aos novos guetos étnicos. Lisboa tem hoje a mais, sem previsão nem ordem, turistas, imigrantes, ilegais, pobres, comerciantes e outras populações errantes. Lisboa e Portugal podiam ter tudo o que têm, e muito mais, se fosse melhor, se estivesse previsto, se houvesse políticas e regras.

 

De repente, por causa de um incidente desastrado e fatal, em que um agente da polícia matou um cidadão, os lisboetas acordaram para uma Lisboa difícil, segregada, desmazelada, ilegal, drogada, explorada e pronta para a violência.

 

Não. Ainda não. Lisboa não está a arder. Mas queima. O que há muito se receava, mas que era adiado, aconteceu. Desacatos, violência, vandalismo e repressão. Em meia dúzia de localidades de outros tantos concelhos. Todos na área metropolitana de Lisboa. Estragos, incêndios, feridos e um morto. Discute-se, como era de prever, a morte de cidadão com bala de polícia. Não se sabe ainda e não se saberá talvez nunca em que circunstâncias exactas. Legítima defesa? Violência desproporcionada? Repressão com violência desnecessária? Agressão de ódio? Provocação descarada?

 

Rapidamente, começou a ver-se em funcionamento a tenaz do irracional. De um lado, a culpa dos incidentes reside na polícia, no governo, nos brancos, no racismo, na direita, no capitalismo, no regime democrático, na desigualdade social, na pobreza, no desemprego e na extrema-direita. Do outro lado, a responsabilidade é dos bandidos, dos marginais, dos negros, dos imigrantes, dos drogados, dos ladrões, dos ilegais, das minorias, dos muçulmanos, da complacência das autoridades, da permissividade do regime e da covardia dos dirigentes políticos. E não faltaram uns políticos tolos a propor que se matem alguns…

 

E não se pense que se trata de notícias falsas e de boatos sem identidade. Não. Nos jornais e nas televisões, grande parte daqueles preconceitos são apresentados com palavreado académico e mais ou menos verniz, sempre com estatísticas de apoio.

 

Nesta tenaz de preconceito, as generalizações são quase a regra. Os portugueses são racistas. Os africanos são ladrões. Os muçulmanos são violentos. Os chineses são mesquinhos. Os indianos são manhosos. Os brasileiros são aldrabões. Os romenos são ciganos. E os ciganos são mentirosos. 

 

Estas visões do mundo são geralmente obstáculos à compreensão e ao diálogo. O que quer dizer que tornam difícil, às vezes impossível, qualquer tentativa de resolver problemas e pacificar situações de conflito. Não só porque o preconceito é ele próprio uma barreira ao diálogo e à negociação, mas também porque vem acompanhado de juízos de contexto que tornam incompreensível a realidade. E que desviam para abstracções políticas os esforços para tratar de casos reais. Mas sobretudo eliminam o sentido de responsabilidade pessoal e individual, um dos fundamentos da civilização. 

 

A irrupção de violência nos bairros periféricos de Lisboa tem, para uns, causas evidentes: são os imigrantes, os africanos e os muçulmanos, que vivem da segurança social e da droga, que se aproveitam da escola e da saúde pública, que recebem toda a espécie de subsídios e que se acham com todos os direitos. Para outros, as causas, também evidentes, são as políticas dos governos, o comportamento dos portugueses, o racismo dos brancos, as empresas capitalistas, os bairros sórdidos, o ambiente de opressão nas fábricas e as casas esquálidas.

 

Uns e outros dizem o mesmo: a culpa é do contexto. Do quadro geral. Da política. Da sociedade. Como é evidente, todas as circunstâncias, toda a herança cultural e todo o ambiente comunitário têm importância decisiva, ajudam os fenómenos sociais, influenciam os comportamentos. Mas não justificam as acções individuais, não explicam o crime, não desculpam o delito, não absolvem a infracção.

 

É verdade que o meio social, o ambiente, o quadro geral, a classe social, a comunidade, o bairro e a vizinhança ajudam a compreender fenómenos e acções. Nada pode ou deve ser feito pela política ou pela reforma social sem ter isso em conta. Mas nunca, de todo, nunca esse contexto pode desculpar o crime e justificar o ódio. Estes são acções do individuo e como tal devem ser avaliadas, julgadas, recompensadas ou castigadas. Nada substitui a responsabilidade individual. Quem mata. Quem pega fogo. Quem dispara. Quem rouba. Quem viola. Quem tortura. Quem mente. Sem responsabilidade individual, não há cidadania nem direitos humanos.

 

Se a responsabilidade individual é o imediato, o mais vasto, a prazo, é o tratamento das questões gerais que ficam para resolver. As políticas de imigração, por exemplo. Sem essa discussão e sem as regras a definir democraticamente, nada se resolverá nunca. Mas tenhamos consciência de que o debate está, actualmente, inquinado. Está mergulhado no irracional. Os seus protagonistas são quase sempre os fanáticos. Sejam os racistas residentes e os nacionalistas integristas. Sejam os racistas imigrantes ou os defensores das portas abertas e da destruição da comunidade. Entre defensores da integridade da nação pura e adeptos da dissolução da comunidade nacional, não há meio termo. A discussão e as soluções só serão possíveis fora do dilema dos fanáticos.

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Público, 26.10.2024

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24.10.24

Entretanto, em Lagos...


 Os assassinos de árvores, em Lagos, não têm descanso...

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O AMENDOAL



Por A. M. Galopim de Carvalho

Como no tempo da lenda, todas as primaveras, o amendoal alentejano cobre-se de fores branca como se de neve se tratasse.

Uma outra importante cultura que o Alqueva trouxe ao Alentejo foi o amendoal de regadio. Pequena árvore caducifólia (não ultrapassa os 8 a10 metros de altura) a amendoeira (Prunus dulcis) é, entre nós, uma das mais antigas árvores de fruto a ser plantada. Do seu fruto liberta-se o caroço, dentro do qual se encontra a semente, ou seja, a amêndoa.

Introduzida em Portugal, a partir do Médio-Oriente, durante a invasão árabe, a amendoeira, em regime de sequeiro, começou por se fixar no Algarve, passando daí, no mesmo regime, para as terras secas de Trás-os-Montes e Alto Douro. Depois de anos de relativo abandono neste sector, Portugal é hoje um país de vanguarda na produção de amêndoa a nível mundial.

O aumento da procura da amêndoa, a nível internacional, deu aso ao aparecimento, no Alentejo, de vastas áreas de amendoais de regadio, em regime intensivo. A seguir à região de Trás-os-Montes e Alto Douro, o Alentejo tornou-se a segunda maior região produtora de amêndoa, do país, afirmando-se como uma alternativa apreciável às explorações agrícolas tradicionais, nomeadamente, os cereais, nesta região.

Nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março, de há “meia dúzia de anos”, a paisagem alentejana mostra uma imagem nunca antes vista, com vastas áreas cobertas por uma infinidade de amendoeiras em flor. Admirável espetáculo da Natureza é, ainda, o chão coberto por uma “neve” levemente rosada, trazendo à ideia a conhecida lenda algarvia do rei mouro e da princesa de um país do Norte.

A Lenda das Amendoeiras é uma muito antiga história de amor que reporta ao tempo da ocupação árabe da Península. Um poderoso rei mouro, algures no Algarve, tinha, cativa, no seu palácio, uma jovem princesa de um país do norte da Europa, por quem estava apaixonado. As saudades de casa que ela sentia eram tantas, que lhe tiravam toda a alegria. Percebendo o drama da jovem, o rei mandou então plantar, nos campos em redor, um imenso amendoal. 

Assim, todas as primaveras os campos se cobriam de flores brancas, como se de neve se tratasse.

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21.10.24

A NOVA PAISAGEM ALENTEJANA



Por A. M. Galopim de Carvalho

Relativamente ao clima, excepção feita à grande irregularidade verificada nos últimos anos, o Alentejo (e também o Algarve) caracteriza-se por um clima de características marcadamente mediterrâneas, onde a seara de trigo, o olival, a vinha e o porco alentejano, a “tetralogia mediterrânea”, no dizer de Alfredo Saramago, foram base de uma economia rudimentar, limitada ao todo nacional. Nas últimas décadas, desta tetralogia” apenas o azeite e o vinho têm alcançado desenvolvimentos, com importância considerável na economia nacional e expressão no mercado externo. O porco alentejano, de que falaremos mais tarde, tem uma importância bem mais modesta e a seara de trigo está em via de extinção.

É do domínio comum que a produção cerealífera no Alentejo, tem vindo decrescer substancialmente. Vivemos hoje de trigo importado, na ordem de mais de um milhão de toneladas/ano.

Em contrapartida, o olival, a vinha e, também, o amendoal (uma inovação no panorama agrícola local) ganharam lugares cimeiros na economia desta vasta região do país.

“Uma açorda comida por estes dias dificilmente será confecionada com pão de trigo alentejano. Em contrapartida, a possibilidade de ser temperada com azeite da região aumentou, e muito, nos últimos anos”.

Esta expressiva e feliz frase do jornalista Aníbal Fernandes, do Diário do Alentejo, tem o aroma dos poejos e diz, com palavras a condizer, uma realidade que estamos a viver.

Em aproveitamento da água da barragem do Alqueva, o maior lago artificial da Europa Ocidental, assegurando, em 2022, cerca de 120 mil hectares de regadio”, em crescimento, temos assistido, nos últimos anos, à substituição da “seara de pão”, não só pelo olival (ocupando mais de 70 mil hectares e em crescimento), como também por outras culturas de regadio, como o amendoal (com cerca de 20 mil hectares), o girassol, o milho, as pastagens e as forragens (azevém, luzerna e sorgo). 

Falemos agora do olival

O olival de que falam Orlando Ribeiro e Alfredo Saramago é o que hoje chamamos de olival antigo. Antigo, porque há um novo, dito moderno. Em uma trintena de anos, passou-se de um trabalho tradicional, duro, da colheita manual no chão, feita no inverno, para uma colheita mecanizada, onde a azeitona é colhida em verde, sem ser batida, nem cair ao chão, permitindo a produção de azeites de alta qualidade.

Introduzido, na Península, por gregos e fenícios e alargado pelos invasores romano e árabe, o olival a que se referiram os citados autores, resiste, meio disperso na paisagem, com oliveiras, muitas vezes, centenárias e, algumas, milenárias. Foi durante séculos base de uma exploração de sequeiro, tradicional, e de uma indústria meio artesanal, incapazes de prover às necessidades de consumo nacional. Durante as três últimas décadas, o olival português transformou-se num olival de regadio, de exploração intensiva, elevando o Alentejo à região do país com maior produção de azeitona, na ordem das 10 a 12 toneladas por hectare. De país importador, Portugal passou a país exportador de azeite de qualidade superior que ganha prémios no estrangeiro.

Fala-se hoje deste olival moderno, como uma autêntica revolução no panorama agrícola nacional, graças ao “milagre” da água da Barragem do Alqueva. Vastas áreas do Alentejo são hoje um tapete verde, devido ao plantio superintensivo (no dizer dos ambientalistas) do olival de regadio. Os opositores a esta “revolução” falam de destruição de biodiversidade, de esgotamento de recursos hídricos e de poluição atmosférica. Do outro lado de interesses, os agricultores contrapõem que o olival moderno é responsável por mais de 85% do total da produção de azeite nacional, um valor em crescimento, uma vez que a área de plantio tem vindo a aumentar. Contrapõem, ainda, que é uma cultura com baixas exigências hídricas, que degrada menos o solo e que, pelo contrário, lhe aumenta a quantidade de matéria orgânica, que sequestra mais CO2 da atmosfera (presentemente estimada em cerca de 540 mil toneladas/ano), sendo, portanto, mais sustentável, havendo quem o defenda como o expoente máximo da tecnologia ao serviço da qualidade do azeite e da sustentabilidade ambiental.

Inclino-me para o lado dos ambientalista e duvido sempre das boas intenções destes  superemprendimentos.

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19.10.24

MOLUSCOS, ALGAS E OUTROS SERES MARINHOS, NA ORIGEM DA GRANDE MAIORIA DOS CALCÁRIOS.


Por A. M. Galopim de Carvalho

No que respeita a origem orgânica destes calcários, ditos biogénicos ou organogénicos, a pergunta que se coloca à partida é: - Como é que os seres vivos marinhos e, à semelhança destes, os lacustres e outros aquáticos, sintetizam o carbonato de cálcio com que edificam os respectivos esqueletos?

Num esquema muito geral, especialmente simplificado para o efeito, a resposta é simples de abarcar.

Recuemos, então, por exemplo, uns 170 milhões de anos, ao Jurássico médio, muito bem representado em Portugal, nos calcários das Serras do Sicó, Aires e Candeeiros, num tempo em que o território a que corresponde a Península Ibérica se encontrava numa latitude intertropical, sob um clima de tipo tropical húmido, com temperaturas sempre superiores aos 20 ºC e acentuada pluviosidade anual, à semelhança do que acontece nos dias de hoje nesta zona da Terra. 

Nestas condições climáticas, a alteração dos minerais de muitas rochas das terras emersas é imensa, quer nos continentes (granitos calcoalcalinos, granodioritos, dioritos e gabros, entre ouros), quer nas ilhas vulcânicas (sobretudo, andesitos e e basaltos). Muitos minerais dessas rochas (plagioclases, horneblenda e augite, entre outros) contêm cálcio nas respectivas composições.

Por um processo químico conhecido por hidrólise, aqui apresentado, como se disse, de forma muito esquemática, (essencial à compreensão do mesmo), a água no estado líquido, morna e abundante, como é próprio destas latitudes, dissocia os iões destes minerais (mais intensamente do que em qualquer outra zona climática), entre eles o catião cálcio, bivalente positivo (Ca2+) que transporta, através dos rios, a caminho do mar e dos lagos. Também a calcite (carbonato de cálcio) dos calcários e a dolomite (carbonato de cálcio e magnésio) dos dolomitos, existentes nas terras emersas se deixam dissolver pelas águas gasocarbónicas da chuva, que, como é sabido, contêm dióxido de carbono em solução, libertando o dito catião. Recorde-se aqui que, juntamente com a água, o dióxido de carbono comporta-se como um ácido.

Para que os seres vivos “fabriquem” o carbonato de cálcio dos respectivos esqueletos, têm de juntar o catião Ca2+ ao anião carbonato (CO32-) sempre presente e abundante na água do mar, uma vez que esta dissolve o dióxido de carbono (CO2) do ar, no imenso contacto que tem com a atmosfera.

Uma vez na água, o dióxido de carbono dá origem ao referido anião.

O carbonato de cálcio surge então da combinação:

Ca2++ CO32- → CaCO3

Quando atacamos o calcário com um ácido, como, por exemplo, o ácido clorídrico diluído em água (a 10%) a efervescência, ou seja, o borbulhar gasoso que se produz corresponde à libertação, sob a forma de dióxido de carbono, do oxigénio e do carbono da atmosfera contemporânea da sua formação. O cálcio envolvido nesta reacção química fica dissolvido na água sob a forma de cloreto de cálcio, segundo o esquema:

2HCl + CaCO3 → CaCl2 + H2O + CO2

Representando a imensa maioria dos calcários, os classificados de biogénicos resultam directa ou indirectamente da actividade de seres vivos, em águas litorais pouco profundas e mornas, mais precisamente, nas zonzas neríticas (do grego nerítes, alusivo a conchas, moluscos), das regiões intertropicais. Referidos por alguns como calcários neríticos, uns são o produto da acumulação seguida da diagénese (petrificação ou litificação) de restos esqueléticos ricos em carbonato de cálcio, acumulados mecanicamente, por gravidade e, nesta medida, são ditos bioacumulados. Outros resultaram da actividade de certos organismos fixos, construtores de recifes, sendo, por isso, referidos como bioconstruídos ou bioedificados.

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18.10.24

Dentro de um mês, nas bancas


PREFÁCIO

O livro de alguém que continuará a existir depois de todos partirmos 

Este prefácio arrisca-se, e logo ao primeiro parágrafo, a ser profundamente redundante, mas ainda assim arrisco: António Galopim de Carvalho é um farol, um dos poucos que nos consegue iluminar com uma sabedoria feita de procura da simplicidade, de encontro diário com um mundo que continua a valer a pena nos seus olhos ávidos e inquietos, esperançosos e otimistas – mesmo quando escreve palavras tristes ou cansadas é sempre a esperança que nos ocorre.

“Aprender a Gostar de Saber” é um livro obrigatório. Pode ser lido hoje ou amanhã, mas pode também ser lido numa qualquer eternidade pelos netos dos nossos netos. Há memória, mas o passado em tudo o que faz é sempre futuro. Quando nos escreve sobre o que lhe sabia a comida na infância, conseguimos sentir o cheiro do que nos faz falta; quando nos conta de episódios que só a ele importariam, são os nossos episódios que vamos buscar; quando nos fala de ser professor, ambicionamos uma escola que não existe; quando nos exalta com a geologia, navegamos num sonho mais largo; quando nos confessa detalhes familiares da sua relação com Isabel, ou dos seus dois filhos, é ternura e compromisso e amor; quando nos diz do Alentejo, e dos seus cismas, percebemos tudo o que é aquele lugar e as suas sombras. 

António Galopim de Carvalho deixa-nos estes textos quando acaba de completar 93 anos. Nasceu em 1931, antes de Hitler se apresentar a mundo, antes até da Guerra Civil Espanhola. Os seus olhos viram muito sobre a história e a condição humana. Nasceu num lugar agreste e isolado e nunca foi bom aluno até ser um grande aluno na universidade. Quem seria capaz de dizer em Évora que aquele menino, irmão de Francisco José, estrela da música portuguesa, um dia viria a tornar-se um dos melhores portugueses, um dos cientistas mais reconhecidos, um dos professores mais aplaudidos, um dos defensores da nossa identidade histórica, mais apaixonados, e o diretor do Museu de História Natural mais emblemático e popular? Quem adivinharia?

Bastaria estar atento às suas fotografias de criança e adolescente. Aqueles olhos cheios de curiosidade e espanto, aquela vontade de saber, de se encontrar, de partir à conquista de um mundo maior, mais largo, menos aprisionado a um destino que nos obriga a desistir de sonhar. Bastaria isso para termos percebido que o pequeno António um dia poderia ser o que quisesse ser. E ele foi o que quis ser. Com Isabel, sua companheira de sempre, navegou para fora de pé sem ter garantias de nada, apenas a sua curiosidade o poderia ajudar na tentação do acomodamento. 

“Aprender a Gostar de Saber” é um livro para pais com crianças na escola. Um livro para os mais velhos e mais novos. Uns encontrarão o que são ou poderiam ter sido. Outros, ensinamentos que são puro ouro para quem caminha sem bússolas visíveis. Um livro também para os que gostam de viver e para os que têm dúvidas. Uns por perceberem o quanto a sua intuição estava certa, os outros pela constatação de que perderam um tempo que agora podem recuperar. 

António Galopim de Carvalho é um dinossáurio. Não é o avô ou o pai dos dinossáurios, ele é um deles. Há 65 milhões de anos resistiu à extinção quando não se esperava que o fizesse. E hoje, tantas dezenas de milhões de anos depois, há quem não acredite que conseguiremos resistir à turbulência que causámos ao planeta. Oiçamo-lo então. Passemos pelos seus textos sem pressa, aprendamos com quem sabe do que está a falar. Afinal, ele é eterno e veio para nos contar estórias que fiquem antes do sono. Estórias que nos impeçam de adormecermos para a necessidade de não desistirmos, de continuarmos a combater por uma ideia de bem. Eis é um livro obrigatório de um homem que continuará a existir depois de todos partirmos. Um farol que ilumina quem o lê com a luz dos sábios. 

 

Luís Osório

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17.10.24

No "Correio de Lagos" de Setembro de 2024

 


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12.10.24

Grande Angular - Fascismo e Antifascismo

Por António Barreto

O debate orçamental foi muito rico. Tem sido, até agora. Não pelo conteúdo económico ou social, mas por alguns aspectos políticos. Não no sentido nobre do termo, mas na sua acepção de coreografia e comportamento. Nada revelou sobre o pensamento político dos principais partidos, mas muito exibiu das suas paixões menores, das suas armadilhas e provocações. Conhecemos hoje melhor, muito melhor, o PSD de Montenegro, o PS de Santos e o Chega de Ventura. Tal como disseram os seus protagonistas, bastou uma frase para iluminar todo o processo: “dado que não foi possível chegar a acordo, vamos ler o orçamento”!

 

A margem financeira de diferença entre o que seriam os orçamentos dos três grandes partidos poderá ficar muito perto do 1%! As diferenças entre concepções estavam diluídas na querela estritamente política. O importante era derrubar ou não o governo; aliar-se com a extrema-direita ou não; coligar-se com a extrema-esquerda ou não; convocar novas eleições ou não. O PSD pretende ficar sozinho ao centro, empurrando o Chega para o fascismo e o PS para o antifascismo. O PS quer atirar o PSD para o fascismo e ficar a liderar a esquerda antifascista. Mau grado o seu insignificante eleitorado, as esquerdas do Bloco e do PC querem que o PS abandone a direita e se junte a elas. O Chega quer tudo: estar fora e dentro, ser democrático e não democrático, aproveitar tudo o que é irracional e populista e designar-se a si próprio como reserva do nacionalismo.

 

Em menos de um ano, o Governo impressionou pelo activismo e pelo lançamento de projectos que se atrasavam. Mas sobretudo ilustrou-se pela multiplicação dos pães e dos peixes. Aumentou tudo o que estava à mão, prepara-se para aumentar ainda mais todas as profissões. Distribuiu benefícios e subsídios como ninguém. Deu incentivos. Fez descontos. Isentou de taxas e impostos. Deu mais um poderoso contributo para uma figura em crescimento que é a do “orçamento de geometria variável”. Há orçamentos e regimes fiscais conforme o sexo e o género, a idade, os estudos, os locais de residência, a origem e a actividade. Já se ultrapassou a fronteira do aceitável, isto é, da fiscalidade conforme ao rendimento. Estamos a entrar num novo mundo que é o da diferença de direitos e deveres de acordo com os estatutos sociais e a condição humana. Não só é a base de uma profunda desigualdade, como é a chave para o mais clientelar dos Estados. Isto é, os benefícios e os direitos dos cidadãos dependem das preferências dos governantes e do grau de reverência dos cidadãos. “Quem se porta bem, tem direitos, quem se porta mal tem deveres”, será a divisa do futuro.

 

Há, todavia, questões que ficam em aberto e ultrapassam largamente o pormenor orçamental. É, como alguns pretendem, a divisão da sociedade e da política. A dicotomia. A alternativa. O frente-a-frente. A classe contra classe. É o fascismo e o antifascismo. Há muita gente nos partidos que pretende esse género de vida. Repete-se a lengalenga de que o “centrão” é o ninho da corrupção, o caldeirão de interesses e o lugar-geométrico de todas as indecisões. Muitos desses defeitos serão reais. Mas é necessário garantir que as outras vias são menos isso tudo, o que está longe de ser seguro. Por outro lado, a catilinária contra o centro, ou contra as políticas de centro, esconde o que realmente se pretende: a política radical de oposição pela exclusão. 

 

O fascismo é detestável. O antifascismo também. O paralelo com o racismo e o anti-racismo é aceitável: ambos são igualmente detestáveis. Já agora, comunismo e anticomunismo estão na mesma categoria. Sabemos as razões pelas quais fascismo, racismo e comunismo são condenáveis. A pergunta é: então o anti é bom? O problema é mesmo esse. É que não é. Quem faz profissão de fé anti qualquer coisa está a fazer a economia da inteligência. Quem trata os seus opositores de anti isto ou aquilo está a poupar no rigor. Durante décadas, os comunistas trataram os seus adversários de anticomunistas: os perseguidos têm sempre razão, era essa a ideia. Durante décadas, os salazaristas trataram os opositores de comunistas: era um atalho do pensamento, o caminho mais curto para a ditadura. Há décadas também que os que a si próprios se designam por anti-racistas tratam todos os outros de racistas. Vivemos actualmente momento revelador: o anti-racismo militante, razão última de activismo, é sectário e assume-se como virtuoso. É como tal reconhecido. Para mal dos nossos pecados.

 

Estes insultos e outros (como antipatriótico, antinacionalista, antidemocrático, além de fascista, comunista e racista) têm como funções alinhar inimigos, dispensar o pensamento, regimentar distraídos e polarizar em duelos diferenças que têm outras naturezas. Quem se orgulha de incluir no seu currículo termos como antifascista, anti-racista ou anticomunista, está a designar-se da maneira mais deficiente e simplória que se pode imaginar.

 

Entre nós, a luta entre fascista e antifascista tem, por razões obvias, especial ressonância. Foi uma espécie de gazua para a acção política. A tal ponto que ainda hoje faz efeitos. E atrai políticos, apesar dos nos faltarem boas definições do fascismo. Da sua espécie fundadora, a italiana de Mussolini, não será difícil encontrar uma designação certeira. O pior é a sua generalização. Em poucos anos, fascista passou a ser tudo o que é nacionalista, católico, capitalista, conservador e autoritário. Melhor: tudo o que não era comunista ou socialista.

 

O regime de Salazar não foi fascista. Os melhores pensadores quase todos concordam com isso. As características próprias do Estado Novo faziam dele um regime autoritário, reaccionário, conservador, nacionalista e imperialista. Mas fascista, não. Aliás, não será atrevido afirmar que, fascista, só mesmo o italiano.

 

O antifascismo é um mistério ainda maior. A levar a sério certas esquerdas, antifascista é o que é socialista, comunista, contra a ditadura, contra o capitalismo, contra a iniciativa privada, contra a democracia parlamentar e contra a burguesia. As esquerdas não se deixam impressionar com o facto de, entre os principais regimes de esquerda antifascista, desde há cem anos, se contarem ditaduras, regimes totalitários, nacionalistas e conservadores. Mesmo mais: em cem anos de história das esquerdas no poder, há muito mais ditaduras do que democracias. Em cem anos de poder comunista, há só ditaduras, nem uma hora de democracia.

 

Tentar, hoje, refazer um bloco fascista e um grande movimento antifascista, é mais do que um regresso ao passado. É um pesadelo.

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Público, 12.10.2024

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11.10.24

No "Correio de Lagos" de Setembro de 2024

 

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8.10.24

Apresentação da obra "Ao Romper da Aurora"


no PAVILHÃO DO CONHECIMENTO- CIÊNCIA VIVA.

14 de Outubro, 18.30-20.30h

 

A sessão tem entrada livre e será apresentada por Júlio Isidro. 

 

Inclui leitura de excertos da obra "Ao Romper da Aurora", sessão com o Prof. Galopim de Carvalho e Q&A (Perguntas e respostas) com o público.

 

Intervenções:

Rosalia Vargas – Ciência Viva

António Baptista Lopes – Âncora Editora

Jorge Relvas – Ciência Viva/Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa,

 

"Ao Romper da Aurora" é uma compilação de textos escritos pela noite dentro que exploram as várias vertentes da vida e da obra do próprio. 

 

Abertura

Boas-vindas pelo Grupo Coral e Etnográfico AlCante ao som do Cante Alentejano

Encerramento e sessão de autógrafos

Cocktail de encerramento com atuação do Grupo Coral e Etnográfico AlCante.

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5.10.24

Grande Angular - A metamorfose do Partido Socialista

Por António Barreto

É provável que tenha vencido a incerteza. Todos receavam as eleições. O PR não calculava o que poderia acontecer. O PSD e o Governo não tinham qualquer certeza quanto ao resultado. O PS não tinha consciência do que se seguiria a uma crise motivada pela falta de orçamento. Nestas condições, o mais acertado é adiar. O Governo cedeu. O PS prepara-se para ceder. O Governo aproveita para governar “fora do orçamento” e distribuir benefícios como nunca se viu. O PS enviou o recado à população: a estabilidade política e o governo dependem de si.

 

Entretanto, todos avistaram de repente e perceberam um drama que se desenha no horizonte: o PRR, o famoso Plano de Recuperação e Resiliência, com mundos e fundos indispensáveis para a economia e a administração pública, está pelas ruas da amargura, com pouco uso e mau proveito, um dos piores registos da Europa. Com nova crise de governo e novas eleições, esta espécie de desastre seria uma calamidade. Presidente, governo e partidos perceberam que sobre eles se abateria um justo e furioso vendaval. E de nada serve passar culpas: todos serão condenados.

 

Ainda faltam alguns dias para termos a certeza de todos os acontecimentos e para conhecer as surpresas que o Governo e os partidos nos prepararam. Mas o essencial parece estar assegurado: adia-se a crise, espera-se por mais certezas. Ainda é possível que as coisas não corram bem, veremos. De qualquer maneira, é útil olhar para além da espuma e do orvalho. As negociações em curso e o orçamento são importantes. Tal como o que se segue. Mas há, em profundidade, outras tendências e outros factos que merecem atenção. As relações entre as direitas do PSD e do Chega são de enorme importância e vão conhecer novos capítulos. Assim como as relações entre os centros de esquerda e de direita, o PS e o PSD, que vão talvez iniciar uma nova vida. Mais importante ainda, pelas suas repercussões, é o futuro do PS que parece estar em jogo.

 

Este futuro é ainda incerto. Mas já há quem o desenhe. Ou antes, quem revele possíveis traços de um futuro diferente para este grande partido. A frase de Pedro Nuno Santos (“prefiro perder eleições a abdicar das convicções”) pode ser um infeliz deslize a meio caminho entre o machismo e a ingenuidade. Mas pode também ser, com mais probabilidade, o anúncio de novos tempos para o partido. De que se trata na verdade? O que são convicções, profundas ou não? O que são crenças inabaláveis? Estaremos a falar da democracia, da liberdade individual e da dignidade humana? Da recusa de violência, da solidariedade e da luta contra a pobreza? Ou falamos também de um escalão de impostos, de um subsídio de IRS e de uma ajudinha de IRC? Misturar umas e outras, dar-lhes a mesma dignidade significa perder de vista o essencial.

 

Mas tal não é gratuito. Pelo contrário, tem ar de ser uma declaração solene da natureza do novo PS. A gradual e inexorável transformação do Partido Socialista num Bloco de Esquerda “mais” é o que parece estar nas cartas. Pedro Nuno Santos, o secretário geral, afirmou-o convictamente, sem tremer nas palavras e calculando os efeitos. Ele quer construir fronteiras, elevar obstáculos e definir linhas dogmáticas. Preferir perder a esquecer convicções é uma frase inútil, sempre certa, para dar nas vistas. Toda a gente dirá isso, acredite ou não. É retórica barata, para uso de conjuntura. Ou então… Ou então estamos diante de manifestação real de intenções, anúncio de processos de liderança, desejo de transformação do partido e de sua doutrina. Tudo a que o secretário-geral tem direito, com certeza. Mas deve ser mais sincero no seu propósito.

 

O grande objectivo parece ser o de ocupar o lugar do Bloco, do PC e do Livre. Em termos plebeus, encostar o PSD à direita. Ajudar a construir um grande bloco de direita e extrema-direita e contribuir para o noivado PSD/CHEGA. Para assim receber os votos sociais democratas do PSD transformado em direita radical. Com a finalidade de melhor separar esquerdas e direitas. Isto é, repensar uma esquerda ideológica, refazer um programa sectário e chamar-lhe convicção e doutrina. 

 

A revogação do estatuto do Partido Socialista como partido mediador ou “partido charneira” (como lhe chamava Mário Soares) é o gesto mais feroz de que o partido pode sofrer. Pior do que isso, só a liderança de José Sócrates, cujos efeitos se fazem sentir por anos e décadas. Querer fazer do PS “o” partido da esquerda, radical, da alternativa, federador dos grupos de esquerda e o partido de classe, como se dizia antigamente, significa romper com o que de melhor havia naquele partido. O que não seria grave se fosse só o partido a sofrer as consequências. O problema é que é o país, a sociedade e a democracia portuguesa que vão sofrer. 

 

O Partido Socialista, nestes cinquenta anos que leva a democracia, teve inesquecíveis momentos de grandeza e criatividade, como também conheceu momentos de baixa moral e incompetência. Mas o balanço da sua vida é singularmente positivo. Talvez tenha sido o partido central da democracia. Sem ele, tudo seria diferente, talvez pior. Outros partidos deram o seu contributo, a começar pelo Partido Social Democrata. Mas, em termos globais, há uma hierarquia entre os dois.

 

Desde a coligação implícita e explicita com os militares moderados e democratas de 25 de Abril, até à resistência frontal contra os revolucionários e os comunistas, o PS brilhou. Depois, da defesa de algumas conquistas sociais (como o SNS) à manutenção de um clima de paz e de diálogo com os parceiros sociais, igualmente o PS se distinguiu. Também na integração europeia o seu contributo é imperecível. Finalmente, tem relevo o seu papel como defensor das regras democráticas e das fronteiras de liberdade. Assim como a sua função de equilíbrio do regime.

 

Evidentemente, a sua folha de serviços não é apenas de brilho e glória. Também tem as suas nódoas negras. A tenaz incompetência para gerir o sector público empresarial é grandiosa. A sua complacência perante a corrupção é imperdoável. A excessiva volúpia nas relações financeiras com os grandes interesses merece nota. A incapacidade para reformar o sistema de justiça é lendária. Todos estes defeitos, aliás partilhados com outros partidos, não chegam para apagar o serviço prestado. É o partido imperfeito da liberdade.

 

Trocar o papel que foi o do PS durante as últimas décadas pelas “suas convicções”, fazer destas o critério de definição da doutrina e da estratégia do partido, é um acto de enorme presunção, a rondar a autocracia.

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Público, 5.10.2024

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4.10.24

GALOPIMITES




Por A. M. Galopim de Carvalho

Em Inícios de 2006, José Teixeira, da empresa Minermós, 
um dos comerciantes habituais na Feira de Minerais Gemas e Fósseis, 
no Museu Nacional de História Natural, telefonou-me de Porto de Mós, 
onde reside, solicitando-me que o recebesse, pois tinha algo que achara 
e lhe parecia único no contexto da grande diversidade de espécimens que 
conhecia nas muitas feiras internacionais que frequenta. 
Passados alguns dias, trouxe-me uma concreção de areia cuja forma 
faz lembrar as bem conhecidas Lössdols (bonecas de loess) 
resultantes da aglutinação de materiais detríticos muito mais finos 
(silte ou limo), arrastados e acumulados pelo vento.
 

Com este exemplar nas mãos, configurando um arenito pouco consolidado, notei que, friccionando-o com os dedos, libertava grãos de areia que, logo ali, observada à lupa, me pareceu idêntica à das nossas praias. Interessado em conhecer melhor este capricho da natureza, a que dei o nome de “bonecas-de-areia”, procedi ao seu estudo no campo, em Pedreira, um local na vertente ocidental da Serra dos Candeeiros, no interior de uma caverna, explorada no passado como areeiro, e solicitei ao investigador do Museu, João Cascalho, meu ex-aluno, que as analisasse no laboratório. O resultado deste trabalho foi apresentado em Setembro desse ano, ao VIII Congresso Nacional de Geologia, em Estremoz.

 

A história geológica destas concreções é simples e recente. Há uns escassos milhões de anos o mar cobria uma imensa faixa aplanada, hoje situada a cerca de 200m de altitude (plataforma pliocénica de Aljubarrota), mantendo aí um litoral arenoso. O vento, soprando de Oeste, varreu parte destas areias para o interior, criando depósitos do tipo das dunas que esbarraram de encontro à base da serra, invadindo quaisquer reentrâncias nela existentes, como é o caso da caverna em questão. Aí, as águas enrriquecidas em carbonato e bicarbonato de cálcio, após o percurso no interior do maciço calcário, do Jurássico médio (Dogger), acabaram por cimentar parcialmente (cimento dito drúsico) a areia, gerando as ditas bonecas. José Teixeira, o seu achador, baptizou-as de “galopimites”, e é com este nome, ainda não homologado pela comunidade dos geólogos, que surgem agora nas feiras, à disposição dos coleccionadores e demais curiosos.

O estudo microscópico, à lupa binocular, destas areias, depois de libertadas da referida película carbonatada, põe em evidencia a sua origem numa praia seguida de transporte pelo vento, para este local.

Essencialmente quártzicas, os seus grãos variam entre redondos e subarredondados, estando os maiores visivelmente marcados por picotado eólico, em resultado dos choques sofridos durante o transporte pelo vento. Além do quartzo, contêm algum feldspato e raros minerais acessórios. 

 

Nota:

Loess – internacionalização do termo alemão Löss, refere um depósito silto-argilo-calcário, não coeso, de origem eólica, depositado em regime periglaciário, com capacidade agrícola reconhecida. Descrito, pela primeira vez, na Europa central, m 1823,  mas é no noroeste da china que tem o maior desenvolvimento.  O termo Löss radica no germânico lösch, que significa solto, móvel

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2.10.24

LIVRARIA DO MONDEGO"



Por A. M. Galopim de Carvalho

Segundo a letra da lei (Decreto-Lei 19/93, de 23 de Janeiro), Monumento Natural é “uma ocorrência natural contendo um ou mais aspectos que, pela sua singularidade, raridade ou representatividade em termos ecológicos, estéticos, científicos e culturais, exigem a sua conservação e a manutenção da sua integridade”. 

Em palavras da Autarquia visada, a Livraria do Mondego constitui um “monumento natural que marca a paisagem das margens do rio, junto a Penacova. Depois de ter recebido o Alva, seu afluente da margem esquerda, o Mondego estrangula-se ao atravessar o contraforte de Entre Penedos”. E é, com toda a propriedade, um Monumento Natural, porém, incompreensivelmente, não se encontra ainda classificado.

É aqui que, na margem direita do rio, as camadas de quartzito com 480 a 490 milhões de anos (do período Ordovícico) empinadas à vertical, configuram uma série de livros arrumados numa estante. 

Obras levadas a efeito pela Câmara Municipal, no sentido da preservação e valorização do sítio, permitem hoje ao visitante uma perfeita visão desta antiquíssima e singular ocorrência geológica.

Para entender o significado desta “livraria” temos de começar por dizer que todo o interior do País e da Península Ibérica, é o que resta de uma pequena parte de uma grande cadeia montanhosa, com mais de 300 milhões de anos, que se estendeu pelo que é actualmente o sul da Europa, o noroeste africano e o leste norte-americano, numa época da história da Terra em que estes continentes, unidos entre si, formavam um único supercontinente conhecido por Pangea. No que se refere a toda a península Ibérica, a erosão actuante no decurso da imensidade de tempo que se seguiu, quase arrasou o vigoroso relevo que aqui existiu, pondo a descoberto toda a complexidade das entranhas desta montanha, hoje esventrada, de que fazem parte diversos tipos de rochas transformadas em profundidade (onde as temperaturas e as pressões são elevadas), a partir de outras, na maioria depositadas no fundo e nos litorais de um muito antigo oceano que aqui existiu antes do dito supercontinente.

Para os leitores mais afastados destas conversas dos geólogos, e no propósito de terem uma ideia muitíssimo simplificada de como nasce uma montanha, convido-os a imaginarem uma série de lençóis, mantas de diversas qualidades e espessuras, cobertores, colchas e o mais que quiserem, tudo bem esticadinho em cima da cama. Imagine-se que este empilhamento representa uns quilómetros de espessura das camadas de sedimentos depositados no fundo de um grande oceano, ao longo de uma ou duas centenas de milhões de anos, como é, por exemplo, o que está a acontecer no Oceano Atlântico, aqui ao nosso lado. Vamos agora abrir bem os braços e agarrar esta pilha de roupa, uma mão de cada lado, e empurrar tudo para o meio da cama. Fica tudo amarrotado, com dobras para cima e outras para baixo. Com a força dos nossos braços (que nesta imagem representam dois continentes em aproximação), enrugando dois metros de roupa, em segundos, fazemos, assim, o que a Terra faz, com todas as forças do enorme brasido do seu interior, em milhares de quilómetros de fundo de um oceano a fechar (como está a acontecer com o Mediterrâneo, que já foi um grande oceano) em mais de cinco dezenas de milhões de anos. Nesta exemplificação, a porção das dobras que fica para cima, representa a parte da montanhosa que se eleva à superfície do terreno e a porção que fica para baixo representa a parte que se afunda na crosta terrestre, ou seja, como se pode dizer, a sua raiz.

As camadas de quartzito da Livraria do Mondego são a parte empinada, quase à vertical, de uma dobra.

«Mas o que é o quartzito?» Pergunta quem não sabe.

Como nos dias de hoje, os mares litorais desse antigo oceano acumulavam grandes quantidades de areia, trazidas pelos rios, resultantes da erosão das terras emersas. São camadas destas areias que, tomadas durante a formação da referida cadeia de montanhas, aquecidas e apertadas no seu interior, se colaram, grão a grão, fortemente entre si, transformando-se na rocha coesa e a mais dura de toda a nossa paisagem, a que foi dado o nome de quartzito.

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