31.10.19

Notas Soltas – outubro/2019

Por C. Barroco Esperança
Freitas do Amaral – Faleceu o grande jurista e último líder dos partidos que fizeram a Constituição do regime democrático que os capitães de Abril nos legaram. Conservador e democrata-cristão, foi o fundador do CDS, partido que se radicalizou e o maltratou.
PR – O funeral de Freitas do Amaral, ex-presidente da AG da ONU, evitou a Portugal a vergonha de ver Marcelo ajoelhado em Roma no dia emblemático do regime que dá o nome ao órgão a que preside. Prestou, assim, o seu último serviço ao País. 
Jurisprudência – O acórdão da Relação confirmou que parte substancial do terreno que a Selminho reclamava é propriedade municipal. Está de parabéns a Câmara, que ganhou a ação contra o seu presidente e família, proprietários da empresa usurpadora.
Lula da Silva – A Câmara de Paris, ao conceder o título de Cidadão Honorário ao ex-PR, em reconhecimento do seu combate à pobreza e à discriminação racial, censurou a sua prisão iníqua e o golpe de Estado do juiz Moro e de Temer contra Dilma.
Eleições legislativas – A campanha, agitada pela Justiça, ruído da imprensa de direita e redes sociais, sem rosto, não conseguiu alterações sensíveis nos resultados eleitorais. O PR beneficiará da ausência de uma maioria de esquerda coesa.
PCP – A persistente erosão do partido que sobreviveu à clandestinidade e à perseguição fascista, e que mais sofreu na luta contra a ditadura, não resistirá aos modelos em que se revê, e continua imprescindível aos equilíbrios necessários à democracia.
PSD – A derrota mitigada não dará descanso ao líder nem enfraquece os ódios internos e ambições da tralha cavaquista, que apoiava Passos Coelho e lhe disputou a liderança através de Santana Lopes, o Menino Guerreiro que deu os últimos suspiros fora do PSD. 
CDS – O retorno ao partido do táxi exige a escolha de novo condutor e uma opção entre a insistência na truculência reacionária de Nuno Melo e Assunção Cristas e o regresso à matriz fundadora, conservadora e civilizada, onde ainda se encontra Mesquita Nunes.
Novos Partidos – A chegada do Livre à AR é uma lufada de ar fresco, mas a do Chega e do IL são o fermento preocupante, respetivamente, do neoliberalismo amoral, com vastos recursos financeiros, e do fascismo, racista, xenófobo e trauliteiro.
PAN – O mais inapto, ignorante e incoerente dos líderes foi o maior vencedor eleitoral, depois de ter alterado os objetivos e acabado a meter no mesmo saco o CDS, o PCP e o Chega. Espera-se dos novos deputados ideias boas e inovadoras para a democracia.
BE – A manutenção do grupo parlamentar é a retribuição justa da combatividade e valia dos seus quadros, mas a perda de eleitorado e, sobretudo, a hostilidade da campanha ao PCP e PS, inimigos principais, deixou marcas pouco saudáveis para a futuro imediato.   
PS – A inegável vitória eleitoral não garante um governo estável na turbulência política europeia e mundial, a exigir coesão para enfrentar desafios internacionais e as eventuais ambições do PR. 
Marcelo – Foi o vencedor das eleições. A direita superou o terço dos deputados de que carece para intervir na revisão da CRP, o PS não tem a maioria absoluta que temeu e o tornaria irrelevante, agora livre para influenciar a futura geografia eleitoral.
Partidos extraparlamentares – Animaram o folclore eleitoral e remeteram ao silêncio os cromos inevitáveis e os egos insuflados de quem delapidou os últimos resquícios da respeitabilidade do passado e da de quem nunca a teve ou mereceu.
AR – A maior diversidade de partidos devia ser um enriquecimento do pluralismo, mas é a forma de aumentar a turbulência política e dificultar a formação de maiorias, tanto mais necessárias quanto mais incertos os tempos que se avizinham.
Cavaco Silva – Quem pensava que o homem que radicalizou o PSD e manteve intacto o ódio à esquerda, incluída a do nome do seu partido, à custa do qual singrou, enganou-se. Ódio velho não cansa. Foi rápido a pedir a cabeça de Rui Rio e a propor Maria Luís.
EUA – O sacrifício de 10 mil curdos que morreram a derrotar o ISIS de nada lhes valeu. Quando deixou de precisar deles, Trump traiu-os e entregou-os à violência dos turcos de Erdogan que logo iniciaram a perseguição.
Síria – O abandono dos curdos abre a porta às ambições russas, ao regresso à guerra e à imparável tragédia humanitária que estava estagnada. Por sua vez os 10 mil elementos do ISIS, prisioneiros dos curdos, tornar-se-ão o fermento para a reorganização terrorista.
Alemanha – O ataque a uma mesquita e a granada contra o cemitério judaico, quando a extrema-direita ressuscita por todo o mundo, remete-nos ao pesadelo do antissemitismo e à memória pungente de Hitler e do III Reich. 
Filipinas –  Rodrigo Duterte, na cerimónia oficial em Manila, encorajou o novo chefe da polícia da cidade de Bacolod, ten.-cor. Jovie Espenido, a matar suspeitos de tráfico de droga: “Tens permissão para matar todos”. Um PR louco eleito democraticamente!
Francisco Franco – A trasladação dos restos mortais do genocida, depois de uma longa batalha contra a família do ditador, os Tribunais, os falangistas e a Igreja espanhola, foi, no seu simbolismo, a primeira vitória contra o franquismo.  
Banco Central Europeu (BCE) – Mario Draghi, governador, terminou o mandato e vai deixar saudades. Poucos resistiriam tanto, tanto tempo e com tamanha competência, na defesa do euro e na ajuda para salvar o espaço europeu da desintegração.
Brasil – Tudo o que possa esperar-se da ética, incultura e impreparação de Bolsonaro, é previsível, mas se se confirmar a participação do agora PR no assassinato da vereadora carioca de esquerda Marielle Franco, o Estado tornou-se um lugar mal frequentado.  
Ponte Europa / Sorumbático

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28.10.19

No "Correio de Lagos" de Out 19

Há uma meia dúzia de anos divulgámos, num espaço dedicado a Lisboa, umas quantas situações de cabos de telecomunicações mal encaminhados. Imagine-se agora a nossa surpresa quando fomos contactados por alguém das infraestruturas da PT (agora MEO), perguntando-nos quais as suas localizações, para que fossem feitas as intervenções correctivas — o que, no seguimento da nossa resposta, sucedeu no dia imediato! E, se fosse só isso, já era bom e de saudar; mas houve mais, pois foi-nos pedido que passássemos a reportar essas e outras anomalias de responsabilidade da empresa, incluindo tampas de caixas-de-visita deterioradas, deficientemente empedradas ou mal recolocadas. 
Essa colaboração informal, com alguém que não conhecemos pessoalmente (e que sempre nos agradece!), tem abrangido locais tão inesperados como Lisboa, Sintra, Aveiro, Loulé e — obviamente — Lagos, como foi agora o caso, no passado dia 13 de Setembro, nesta Rua Gago Coutinho, a que voltaremos por outros motivos. 
("Correio de Lagos" de Out 19)

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Grande Angular - O perdão e o remorso

Por António Barreto
A moção aprovada há dias pelo Parlamento Europeu e apenas contrariada, ao que parece, por simpatizantes do comunismo e do fascismo, condena um e outro, quase os equipara, de ambos diz que massacraram milhões, o que é verdade, mas cuja equiparação é absolutamente inútil e patética. Sabe-se hoje que, sem contar as vítimas da guerra, o Nazismo alemão causou a morte de dez milhões de pessoas e o comunismo russo perto de vinte. Fazer um “ranking” destas mortandades é ridículo. Estabelecer qual deles é pior é obtuso. Ambos são hediondos, ponto final. Equipará-los é inculto. São muito diferentes nos seus propósitos, mas são ambos medonhos nos meios e nos resultados. Declarar que o capitalismo é muito pior, pois desde há trezentos anos já morreram, nas fábricas e na guerra, com a indústria e a escravatura, muitas centenas de milhões de pessoas, é ignorante. E também não nos ajuda a compreender o mundo, mas tão só a odiá-lo e a descrer da humanidade. Anunciar que são iguais é tão idiota quanto afirmar que são radicalmente diferentes.
Julgar e condenar ou absolver a história parece inútil. Mas não é. Há sempre uma “agenda oculta” e um propósito implícito. Aqueles que, hoje, em Portugal e no mundo, lutam para culpar os homens, os brancos, os adultos, os ocidentais, os cristãos, os ricos, os heterossexuais, os democratas, os capitalistas e os militares estão evidentemente a tentar criar uma ortodoxia, uma cultura predominante e, sobretudo, a construir um “credo” que permita condenar e proibir, assim como limitar a liberdade de expressão. Fazem-no com a mesma intolerância e o mesmo preconceito com que outros, há bem pouco tempo, desprezavam os negros, consideravam as mulheres inferiores, garantiam que os jovens eram estúpidos, que os pobres eram culpados da sua condição, que os homossexuais eram doentes, que os chineses cheiravam mal, que os árabes matavam e que os ciganos roubavam.
Julgar a história, condenar o passado e condicionar o pensamento: eis três objectivos dos virtuosos do presente. A discussão sobre o alegado Museu Salazar foi, à nossa escala, um tema que permitiu exibir os mesmos reflexos condicionados. As polémicas à volta do Museu dos Descobrimentos tiveram o mesmo sentido. Curiosamente, nestes dois casos, tal como no resto do mundo e para outras matérias, os intolerantes estão a levar a melhor.
Decretar que não houve massacre de Arménios perpetrado por Turcos, proibir que se diga que o Holocausto não foi assim tão mau como dizem, culpar os Judeus pela morte de Jesus Cristo, garantir que não houve na Polónia massacres de comunistas e de Judeus e negar que tenha existido o Gulag na União Soviética são gestos prepotentes, mas muito em voga. Proibir o estudo de Darwin revela estupidez, mas é o que se faz em várias latitudes. Substituir o estudo, o debate público e a liberdade de expressão pelo decreto-lei é atitude hoje louvada por muitos, sempre com intuito oportunista de estabelecimento de um poder autoritário.
Ao mesmo tempo que os decretos que definem o que foi e não foi na história, surgiu também, nas últimas décadas, o imperativo do pedido de perdão. Pessoas, povos, Estados, políticos e Igrejas pedem perdão. Pedem perdão por todos os males e por factos de há dez, cem ou mil anos. Reinterpretam a história, inventam culpados, identificam os maus e as vítimas e pedem perdão a quem lhes convém.
Papas já pediram perdão aos Judeus. Alemães também, mas por outras razões. Muitos europeus pediram perdão aos árabes, aos muçulmanos e aos negros pelo colonialismo e pela escravatura. Americanos pediram perdão aos Índios. Espanhóis pediram perdão aos Incas, aos Azetecas e aos Maias. Portugueses ainda não pediram perdão aos Africanos, aos Indianos e aos Índios, mas vai acontecer em breve. Já houve Portugueses que pediram perdão aos Judeus. Franceses pedem perdão aos africanos, aos árabes e aos vietnamitas. Há Ingleses que se preparam para pedir perdão ao mundo inteiro, dos Índios aos Indianos, dos Negros aos Muçulmanos.
Já se pede perdão aos negros pela escravatura, aos índios pela conquista, aos indianos pelas descobertas, aos chineses pelas guerras, aos mouros pelas expulsões e aos árabes pelos massacres. E também está nas cartas que se vai pedir perdão aos republicanos pela monarquia e aos socialistas e comunistas pelo Estado Novo.
Por que diabo hei-de pedir perdão aos escravos, aos Índios, aos Indianos, aos Egípcios, aos Judeus e aos Mouros? É que se as culpas não forem minhas, são objectivas e históricas. Se não foste tu, foram os teus avós. Ou tetravós. Se não foste tu, foram os cristãos. Ou os brancos. Ou os Portugueses. Ou os europeus. Ou quem quer que seja. Mas de uma coisa podes estar seguro: és culpado, deves ter remorsos, tens de pedir perdão e, eventualmente, pagar reparações, conceder privilégios, bater no peito, deixar passar à frente e recolher-te à tua insignificância dado que alguém, algures e em qualquer tempo, maltratou, roubou, oprimiu e torturou. Evidentemente, as culpas têm momentos históricos e objectos precisos. Hoje, por exemplo, pedir-se-á perdão aos negros africanos e aos muçulmanos (desde que não sejam ricos…), mas não aos retornados, aos repatriados, aos frades, aos monges, aos aristocratas e aos proprietários.
Decretar o bem e o mal, condenar a história com cem ou mil anos, culpar por lei acontecimentos históricos e pedir perdão por factos longínquos: é estúpido, mas é moda. Vai ser difícil afastar esta praga: estabelecida uma ortodoxia do pensamento, dura sempre anos. Pena é que o pluralismo e a liberdade fiquem a perder. Mas ganha a moda que é a de pedir perdão pelo que outros fizeram. Pedir perdão pelo que antepassados, não importa quão remotos, fizeram ou beneficiaram com o mal e o sofrimento de outros. Pedir perdão a escravos que serviram mestres, a negros usados pelos brancos, a soldados que obedeceram a oficiais, a trabalhadores explorados por patrões, a mulheres batidas pelos homens, a jovens frustrados por adultos, a judeus queimados por arianos, a árabes humilhados pelos cristãos, a alunos dominados por professores…
Aos espíritos intolerantes não interessa saber que a culpa, o castigo e o perdão se dirigem aos indivíduos, por vezes associações ou grupos, nunca povos ou etnias.
Fernão Lopes garante que Álvaro Pais disse ao Mestre de Avis que uma das receitas para se ser rei e exercer o poder consistia em “perdoar a quem nunca te fez mal”! Esta agora é uma nova versão: “peço perdão a quem nunca fiz mal”! 
Público, 27.10.2019

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25.10.19

No "Correio de Lagos" de Out 19

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O Caldinho que nos estão a preparar

Por Joaquim Letria
A American Economic Review publicou recentemente um importante estudo acerca do impacto que a entrega do monopólio televisivo, pelo então primeiro ministro socialista Bruno Craxi, ao empresário Silvia Berlusconi, no início dos anos 80 do século passado, veio a ter na degradação da vida cultural, cívica e política da Itália, deixando-a à mercê dos três canais de televisão que viriam a transformar o antigo dono do AC Milan no mais duradouro chefe de Governo italiano desde a queda de Benito Mussolini.
Não vos escrevo isto somente por curiosidade ou por ter lido a revista americana que refiro, mas principalmente por ligar estes factos, reunidos e analisados por gente que sabe o que faz e o que diz, com a notícia irreversível de que em Portugal a TVI, pertença do grupo editorial espanhol Prisa, vai ser vendida à Cofina, proprietária do império Correio da Manhã por mais de 550 milhões de euros.
Chamo-lhe império Correio da Manhã porque é o que é, com um milhão de audiência no jornal em papel, mais milhão e meio de visualizações no site on line e dois milhões de audiência do CMTV .Mas nem precisa que lhe chamem império porque tudo isto mais a Rádio Comercial que pertence ao grupo Media Capital, que também é deles, e com a restante Imprensa portuguesa nos cuidados intensivos, o Dr. António Costa vai fazer o mesmo que o seu camarada Craxi, grande amigo do Dr. Mário Sores, fez em Itália. A nós resta-nos fugir para o NetFlix e o HBO ou vemos a BBC, a France Inter e a TV Galiza. Enfim, afinal de contas, Portugal moderno junta-se ao Berlusconi, em Itália, ao Bouyges em França e ao Rupert Murdock no Reino Unido.
A Itália tem estado nas mãos de palhaços e vê os novos fascistas a avançarem sem apelo nem agravo. Em França, os partidos tradicionais foram-se abaixo e a família Le Pen progride de vento em popa. No Reino Unido temos a confusão do Brexit que uns deputados pouco credíveis defenderam para nós acabarmos a ver o isolamento e a decadência em que aquela grande nação corre o risco de cair.
Em Portugal já experimentámos disparates desta ordem quando Cavaco Silva, cortando financiamento à RTP, entregou de mão beijada dois canais (SIC e TVI) a grupos privados, sem obrigações nem regras, num inexistente mercado publicitário, inventando uma instância reguladora que nunca regulou coisa nenhuma mas satisfaz apetites de jornalistas e magistrados mal aboletados que os partidos fazem o favor de para lá nomear.
Vamos ter mais informação escandalosa misturada com entretenimento chunga, o que  pode ainda não nos assustar, mas quando percebermos que é assim que se inventa e elege os Salvini, os Trumps e os Bolsonaros, então ou nos exilamos ou vamos rezar num qualquer templo evangélico dos muitos que já existem por aí.
Publicado no Minho Digital

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24.10.19

Comunismo e Nazismo

Por C. Barroco Esperança
Em 19 de setembro, o Parlamento Europeu (PE) aprovou (535 votos a favor, 66 contra e 52 abstenções) uma resolução que estabelece que “o comunismo e o nazismo são a mesma coisa”, portanto, igualmente condenáveis.
Surpreende a inoportunidade, ligeireza e iliteracia política dos deputados que a votaram. Não se discute o carácter totalitário nem os crimes hediondos que regimes comunistas e nazis ou fascistas cometeram, e devem ser execrados. É hipócrita a referência ao dia 23 de agosto de 1939, Pacto Molotov-Ribbentrop, que estipulava ‘a não-agressão entre a Alemanha nazi e a URSS comunista que dividia os territórios de Estados independentes entre os dois regimes totalitários’, como se não fossem já adversários e não se odiassem. O que explica a invasão alemã e 22 milhões de mortos da URSS na luta contra os nazis?
É abissal a diferença de objetivos na ideologia e nos inimigos. Como os fascistas, Hitler, no Mein Kampf, elegeu “o comunismo como verdadeiro inimigo a ser combatido”. As palavras não podem significar o que decidem os eurodeputados, usurpando as funções de filósofos, sociólogos, historiadores e semiólogos.
Mao, Estaline, Hitler, Franco e Mussolin foram criminosos execráveis, mas não se pode pensar que duas doutrinas antagónicas “são a mesma coisa”. E a que ideologia se atribuem, por exemplo, os crimes de Saddam Hussein, Idi Amin, Suharto, Chiang Kai-shek ou Théoneste Bagosora, do Ruanda?
Não se trata de defender qualquer das duas ideologias, mas exige-se a decência de não as confundir. Quanto a totalitarismos, não se podem ignorar as religiões e as atrocidades que perpetraram no passado e agora. Haverá totalitarismos piores do que as teocracias? Os índios foram exterminados por nazis ou comunistas? O genocídio dos muçulmanos rohingyas, na Birmânia, está a ser cometido por uns ou outros?
A Europa terá esquecido a Guerra dos Trinta Anos e a Cruzada contra os albigenses. Os eurodeputados ignoram as Cruzadas, a evangelização, a Inquisição e o apoio ao nazismo e fascismo pelo cristianismo; o do fascismo islâmico à opressão da mulher, terrorismo e à negação dos Direitos Humanos; e os crimes sionistas.
O comunismo e o nazismo deram origem a massacres hediondos, e não há entre ambos qualquer paralelismo conceptual. E pior foi a argumentação contra os comunistas: “não evoluíram e continuam a privar os cidadãos de liberdade, soberania, direitos humanos e desenvolvimento socioeconómico”, quando não há hoje ‘perigo comunista’ na Europa e há a iminência do perigo fascista. A instrumentalização do PE por neofascistas de vários pseudónimos, do Grupo de Visegrado e de outros países, criou a resolução que autoriza o seu uso perverso e revê a História de forma vesga e néscia.
A declaração do PE, cuja bondade se desconhece, ignora o maior genocida de sempre da Península Ibérica, apoiado por Hitler, Mussolini e a Igreja católica –, Francisco Franco, só hoje removido do Vale dos Caídos.
Os eurodeputados desconhecem que a sedição de Franco contra a República só triunfou graças ao apoio de Hitler e Mussolini. O carniceiro tinha a sua secretária ornamentada com a foto de Hitler, tal como Salazar, em Portugal, tinha a de Mussolini, então mais inspirador para o ditador de Santa Comba do que a Senhora de Fátima.
O revisionismo histórico ignorante é cego e perigoso. Continuo a ler Saramago, o maior ficcionista português de sempre, com o deslumbramento que torna irrelevante qualquer tentativa de lhe retirarem o Nobel do nosso contentamento.
E não há perigo de me tornar comunista.

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23.10.19

No "Correio de Lagos" de Set e Out 19



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21.10.19

A PEDRA DA “SOPA DA PEDRA” QUE SE FAZ EM ALMEIRIM

Por A. M. Galopim de Carvalho
Desde muito cedo, na história da Terra, os grãos de quartzo das areias acumuladas nas plataformas continentais de um e de outro lado de um oceano que se fechou (por aproximação e colisão dos dois continentes que o marginavam), sofrem as transformações próprias dos processos metamórficos associados ao respectivo orógeno, ou seja, à cadeia de montanhas que, a partir daí, se formou. Do mesmo modo que os pelitos (argilas+siltes) evoluem para xistos e os calcários, para mármores, as areias de quartzo soltas ou já consolidadas (quartzarenito) transforma-se em quartzitos.
O quartzito é, pois, uma rocha metamórfica essencialmente ou, por vezes, quase exclusivamente siliciosa, constituída por um mosaico de grãos de quartzo recristalizados por efeito das pressões e das temperaturas a que estiveram sujeitos. Mantém a estratificação da rocha sedimentar original, isto é, em camadas, via de regra, deformadas próprias da tectónica inerente um orógeno.
No caso da rocha original (protólito) ser um quarzarenito de cimento silicioso (microquartzítico ou calcedonítico), a recristalização afecta, em simultâneo, os grãos de quartzo e o cimento. Deixa, assim, de haver cimento, dado que este alimentou o crescimento dos grãos de quartzo do protólito. Um crescimento qualificado de sintaxial porque conserva a mesma orientação estrutural dos grãos a partir dos quais se desenvolve.
No caso português, quando um antigo e grande oceano se fechou, num processo que se iniciou há aproximadamente 375 milhões de anos (orogenia varisca ou hercínica) e que durou mais de 50 milhões, os sedimentos nele acumulados sofreram metamorfismo e enrugamentos, dando nascimento a uma grande cadeia de montanhas, hoje parcialmente arrasada pela erosão, de que a Península Ibérica é uma pequena parte. Quartzitos, xistos, grauvaques e mármores, entre outras rochas, que fazem parte do soco peninsular, são as entranhas dessa grande cadeia esventrada expostas à superfície.

LIVRARIA DO MONDEGO
Em Penacova, no distrito de Coimbra, a “Livraria do Mondego”, entendida (mas ainda não classificada) como um geomonumento à escala do afloramento, exibe um notável conjunto de camadas de quartzito ordovícico, tectonicamente empinadas quase à vertical, como se de livros numa estante se tratasse, aspecto muito particular e belo que deu origem à designação porque é de há muito conhecido.
Protegido e musealizado pela autarquia, está dotado de percursos de visita devidamente sinalizados, miradouros, guardas de segurança, pontos de descanso, parque de estacionamento para duas dezenas veículos e, ainda, dois pequenos cais para ancoragem da “barca serrana”, destinada a percursos permitindo a observação do geomonumento a partir do rio.
PORTAS DE RÓDÃO
Os quartzitos que, sendo as rochas mais duras e quimicamente as mais estáveis, são as que mais resistem aos agentes de alteração e desgaste do relevo, dando origem, por erosão diferencial, aos chamados “relevos de dureza”. Bem salientes na paisagem nacional, são referidos, entre geógrafos e geólogos, por “cristas quartzíticas”. Todas de idade ordovícica (488-443 milhões de anos), podemos vê-las, entre outras, no Buçaco, Marão, Marofa, Moradal, Penha Garcia e Serra da Talhada que, em Vila Velha de Ródão foi cortada e atravessada pelo Tejo, num processo designado por epigenia, ou seja, por encaixe ou aprofundamento de um vale numa formação geológica situada abaixo daquela onde se instalou.
Quando o Rio Tejo, no decurso da sua evolução, recuando, grosso modo, de sudoeste para nordeste, se instalou na região, a referida crista estava submersa num “mar de sedimentos” ou, por outras palavras, sob uma cobertura sedimentar (areias, argilas e cascalheiras) relativamente fácil de escavar. Na continuidade da sua evolução, o rio foi aprofundando o seu leito, até que encontrou a crista de quartzito. Mas o leito estava traçado e as águas do rio estavam-lhe confinadas, acabando por cortá-la, abrindo as de há muito conhecidas por “Portas de Ródão”. Invulgar geomonumento à escala da paisagem, classificado como Monumento Natural, em 20 de Maio de 2009, é a expressão grandiosa e espectacular do referido processo.
São, em grande parte, destas cristas os seixos rolados de quartzito abundantes nas grandes planuras e terraços fluviais ribatejanos, os mesmos que podemos encontrar no fundo da terrina que, em Almeirim, vai à mesa com a tão falada “sopa da pedra”.

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20.10.19

Grande Angular - Bom dia, Governo novo!

Por António Barreto
novo governo merece votos de boa sorte. Se as coisas correrem bem para ele, é provável que também corram bem para nós. Nem sempre é assim, já vimos governos fazer o que deve ser feito e ninguém lhes agradecer. E também já vimos os que não fizeram o que deviam ter feito e, mesmo assim, foram recompensados com votos ou benevolência. Os povos são ingratos e os governos também.
O governo velho, o que agora acaba, orientou-se, com sorte e habilidade, por princípios simples: a capacidade de negociação, a estabilidade e a duração. Conseguiu. Também adoptou ideias e valores de enorme simplicidade: ter as contas certas, manter uma firme política de contenção financeira, devolver e distribuir rendimentos. Deu resultados. Achou por bem seguir a onda e os ventos europeus, sem invenções nem projectos esquisitos. Teve êxito.
Para o governo novo, quase igual ao velho, não se sabe ainda o que António Costa nos reserva. Não é possível continuar a tratar só da duração e da estabilidade, pois nada será como dantes. É pena, aliás, que o Primeiro-ministro não tenha querido estabelecer uma qualquer base sólida (acordo, contrato, aliança ou coligação…) para o governo e a legislatura. Teria assim podido ocupar-se mais do conteúdo e dos objectivos e menos das habilidades e dos adjectivos. É possível que, no discurso de posse, na primeira ida ao Parlamento e noutra qualquer oportunidade, ele nos revele finalmente o sentido principal que pretende dar ao seu governo e ao seu mandato. Talvez tenhamos, como é costume, uma enumeração de prioridades, às dúzias, incapazes de definir uma ideia ou um destino. Mas não parece provável que apenas deseje repetir o primeiro acto, devolver, ceder e negociar, com um único objectivo, o de durar. Na verdade, os seus adversários e os seus amigos aprenderam, à sua custa, que esse estilo lhes é desfavorável.
Com a Catalunha à vista e o Reino Unido fora dela, com as ameaças nacionalistas conhecidas, com a crise da imigração sem sinais de abrandamento e com a altíssima tensão no Próximo Oriente, era excelente que o governo novo, mesmo com Primeiro-ministro velho, consiga ou queira redefinir um caminho. Não se trata de metafísica romântica, mas tão só de uma exigência clássica para a melhor política: dar um sentido ao governo. 
Todos sabem que as necessidades comandam boa parte da política. Assim é e assim será. A dívida continua grande, melhora muito devagar. O investimento está baixo, mas conheceu algum progresso. O crescimento está a melhorar. O défice parece estar em boa situação. Seria bom que o governo novo reforce estas políticas, mas mantê-las já seria avisado. O governo sabe que tem de tratar do poder excessivo das potências e dos interesses que adquiriram grande parte da economia portuguesa. Como não é novidade ser inevitável alterar as leis laborais a fim de facilitar o crescimento. O governo sabe isso, mas gostaria de adiar. Ou esperar que a simpatia internacional pela estabilidade e pelas contas certas fosse suficiente e não exigisse reformas dolorosas. Mas o governo sabe que a tal não escapará.
Ainda no domínio das evidências, está a necessidade de olhar para os serviços públicos essenciais, mais ainda, de encontrar recursos enormes para acudir a uma situação de quase ruptura. O atendimento público e as relações entre cidadãos e Administração estão no ponto mais baixo de há muitos anos. O Serviço Nacional de Saúde, que o PS acusa de ter sido destruído pela direita e pela troika, mas que na verdade foi também miseravelmente mal gerido pela esquerda, está a precisar de cuidado intensivo.
Nada disto faz o essencial. Nada disto é muito mais difícil do que a gestão normal da nossa vida colectiva, que nunca é fácil e que tem sempre dificuldades. Acima de tudo, em cada momento, está o que faz a decência na vida e nas instituições de um país. Nas nossas condições de vida e nas actuais circunstâncias, a confiança nas instituições, o respeito da Administração pelos cidadãos e a protecção essencial dos nossos direitos e liberdades, constituem o sentido principal da acção pública das autoridades. E para que isso seja possível, uma palavra: Justiça!
governo tem agora o dever de olhar com redobrada atenção, com vontade superior e com energia renovada, para a justiça, com especial relevo para os aspectos que mais se evidenciaram negativamente nos últimos tempos. As regras processuais, fonte de desigualdade e despotismo. A chicana burocrática que destrói a eficiência e alimenta a desigualdade. As garantias excessivas, factor de injustiça e paralisia. As relações entre magistratura judicial e ministério público, sem falar nas polícias, que se têm transformado em obstáculo sério à eficiência.
É imperdoável que António Costa continue a afirmar, com evidente cinismo, que “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. Quando algo está errado ou desempenha mal a suas funções, o tema transforma-se em política. De que se deve ocupar a política se não é justamente disso mesmo, do que está errado? Do que sofrem pessoas e cidadãos sem esperança nas instituições e no seu funcionamento normal? António Costa tem diante de si o imperativo moral e político de fazer, pela política e com o respeito pelas leis essenciais do seu país, o que a justiça não sabe, não quer fazer ou não consegue ser: justa, pronta e eficiente. Não se trata de fazer com que a política se substitua à justiça, erro absoluto. Mas trata-se com certeza de criar condições legais, institucionais, processuais e materiais para que a justiça funcione e cumpra os seus deveres. Apesar de muitas outras carências (sociais, económicas, culturais…) o que mais falta faz à democracia portuguesa é uma justiça eficiente, pronta e justa. Uma justiça que não dê razão aos que pensam que existe uma justiça especial para os poderosos, os afortunados, os amigos e os políticos. Uma justiça que seja o antídoto essencial contra a corrupção, em todas as suas formas, das famílias aos partidos, das empresas aos serviços públicos, à volta do núcleo central, o do poder político venal e cúpido. Este tema é eminentemente político, legal e constitucional. E o governo é, com o Parlamento, protagonista privilegiado e responsável maior.
Público, 20 de Outubro de 2019

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No "Correio de Lagos" - Out 19


Com pouco tempo de intervalo, morreram dois turistas estrangeiros (checos, ao que parece) nas arribas entre a Ponta da Piedade e a Praia do Canavial. Como habitualmente sucede nestes casos, o cidadão-comum sentencia que “a culpa foi só deles”, encolhe os ombros, e passa à frente. Contudo, nós fazemos a pergunta: mesmo dando de barato que as pessoas são descuidadas, não se pode fazer nada, mesmo nada?! Ora vejamos: elas vão para as arribas, pondo a sua vida em risco, porque PODEM... e vêem o caminho aberto. Mas então — e apenas retomando o que já tanta gente aventou, inclusivamente no Seminário dedicado ao tema — porque é que a barra inferior do passadiço não está descida uns 10 centímetros, impedindo a passagem por baixo dela? Porque é que não são plantados arbustos (nomeadamente espinhosas, de que até há espécies autóctones), pelo menos em alguns trajectos, para já não falar de redes de vedação nos locais mais perigosos, com avisos bem explícitos, como vimos junto ao Forte da Figueira? É que nada disto é novo, só os mortos é que sim, e isso seria dispensável.
("Correio de Lagos" - Out 19)

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18.10.19

Bicas e Cimbalinos

Por Joaquim Letria
Já devem ter reparado que desde o passado dia 6 não se fala de outra coisa senão das eleições, dos respectivos resultados, de quem vai sair e de quem se prepara para entrar, quais as alianças possíveis e quantas mulheres vão para o Parlamento desta vez. Ou seja, já não se aguenta mais os jornalistas, os analistas, os comentadores que as estações de TV nos oferecem. Parecem a CMTV com o crime do triatleta. Ainda bem que o futebol fez uma pausa que ninguém percebe porquê, senão levávamos com mais isso tudo em cima. Assim sendo, perguntarão os meus respeitáveis e estimados leitores: “então hoje este gajo vai escrever sobre o quê?"  Vão ver já a seguir!
Começo por manifestar a minha preocupação por haver agora cafés que são servidos “sem princípios”, tal qual quem os bebe assim pede. Não deverá haver país no mundo onde haja tanta variedade em como se toma uma bica ou um cimbalino. Podemos beber um café com cheirinho, em copo ou em chávena, esta pode ser fria ou escaldada, podemos ainda pedir um café duplo, um pingado, um carioca, um garoto, um galão ou uma italiana.
Claro que há também uma meia de leite, e no verão sabe sempre bem um mazagrin, ou um granizado. Os complementos também não são para brincar: em chávena fria, normal ou escaldada, podemos sempre mexer o café com açúcar, adoçante ou nada, e sem chegar a ser um cappuccino podemos sempre pedir com mais ou menos espuma de leite, de máquina ou cafeteira e enriquecido com canela ou chocolate em pó.
Enfim, julgo que os empregados de mesa ou de balcão deviam ter uma licenciatura e alguns, com a experiência e “savoir faire” que demonstram, deveriam merecer o grau de doutoramento.
Desculpem não me ter preocupado com a evolução próxima da política do país, nem vos manifeste o meu receio da guerra comercial entre a China e os Estados Unidos, do envolvimento bélico do Irão, da agressividade do regime turco nem chamado a vossa atenção para as preocupantes alterações climáticas, mas pareceu-me que merecíamos uma pausa e que a bica ou o cimbalino, principalmente agora “sem princípio” merecem toda a nossa atenção.
Publicado no Minho Digital

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17.10.19

O meu ingresso no Liceu Nacional da Guarda (Crónica)

Por C. Barroco Esperança

Fiz a instrução primária no Cume, sede da freguesia de Vila Garcia, que incluía Cairrão, Carapito da Légua e Quinta do Ordonho.
O exame da 3.ª classe, ah! pois, havia exame do 1.º grau na escola primária, não era só para adultos, e fui prestar provas a Vila Fernando onde a D. Marianinha e a minha mãe fizeram parte do júri. Não acusem o júri de nepotismo por ter a mãe do candidato como vogal. Além de bem preparado, ia muito bonito, esta segunda parte é suspeita, era a mãe a falar. Levei um casaquinho de mangas curtas que sempre atribuí a falta de pano e que a minha mãe afiançava que se usavam e me ficava muito bem. Que saudades da mãe, do casaco, não tanto.
O exame da 4.ª classe teve lugar na escola Adães Bermudes, na Guarda, onde voltaria como aluno-mestre da EMPG. O presidente de júri era o prof. Barata que dava aulas em Gonçalo, de onde a população o escorraçou, a ele e ao padre Joaquim, o Calhordas, nas eleições do Delgado, por terem substituído os votos do general por outros, do almirante. Foi preciso a GNR ir salvá-los para os levar para a Guarda e resguardar-lhes o lombo.
O padre foi parar ao colégio de S. José e o prof. Barata à Direção Escolar, promovido a adjunto do diretor. Quando aconteceu o 25 de Abril, duas décadas depois, o diretor foi saneado e ficou o Barata interinamente Diretor Escolar, função que acabaria definitiva, até à reforma. Mas isso são outras histórias que só marginalmente entram na minha biografia.
Fiz o exame da 4.ª classe, já o disse, e fiquei Aprovado com Distinção, o que era vulgar nos alunos da minha mãe, e devia ser uma grande honra porque os ministros de Salazar referiam o facto no currículo, com a vaidade com que muitas décadas depois o ministro Relvas exibia a licenciatura em Direito, por equivalência.
Depois desse exame fiz a prova escrita de admissão ao liceu num edifício muito grande, onde viria a ser aluno no dia 1 de outubro de 1953, no 1.º D. O número 1 era o Abílio Aleixo Curto e o 38, o último, o Francisco Jacinto Branco Velho. As turmas, ordenadas por letra alfabética, eram como se vê, pequenas.
Vários dias depois, num sábado, alguém bateu à porta de casa quando todos estávamos já deitados. Ó senhora professora! Ó senhora professora! E a minha mãe lá se levantou a saber quem era. Era um homem da Gata a quem pediram para dizer à professora do Cume que o menino dela, o menino era eu, tinha passado na prova escrita e iria à prova oral na segunda-feira. Alguém tinha vindo da Guarda à Gata, a pé, que era o meio de transporte habitual, pura generosidade, a pedir a uma pessoa da Gata para se deslocar ao Cume a dar o recado. Dividiram o caminho a meio e cada pessoa percorreu duas boas léguas na ida e volta.
É fácil calcular que o Cume, não tendo luz elétrica, água canalizada ou saneamento, não tinha telefone. Só tinha uma fonte de mergulho. As únicas infraestruturas eram a igreja e a escola, tendo esta, cheia de buracos no soalho, e onde chovia no meu tempo de aluno, ruído com a chuva de inverno numas férias de Natal. Só uma parede ficou de pé. Ali só chegava a religião, vinda de Casal de Cinza, de moto, com o padre Faria, para dizer missa ou levar o viático ao domicílio, aos moribundos. Até para encomendar sapatos, quem tinha posses, precisava de deslocar-se a Carpinteiro a tirar medidas aos pés, desenhados os contornos em papel pardo, a lápis, pelo sapateiro.
Volto agora ao exame de admissão. O meu pai estava em Bragança onde fora colocado na nova categoria a que ascendera no concurso de funcionário de Finanças.
Recebida a notícia de que tinha a oral marcada para o primeiro dia, o raio de ter Alfredo como primeiro nome, levou a minha mãe a preparar a ida e a dar instruções à Dulce, de 13 anos, para os dias da ausência, a fim de que as três miúdas que ficavam, ela e as minhas irmãs, de 8 e 4 anos, respetivamente, se amanhassem.
Domingo, depois do almoço, a minha mãe e eu lá fomos a caminho da Guarda, a calcorrear as duas léguas que nos separavam, sem necessidade de me falar das matérias de estudo, pois não havia rio ou afluente que me escapasse, linha de caminhos de ferro ou ramal que ignorasse, serra, cabo ou baía de que não soubesse o nome, rei de Portugal e filhos legítimos ou bastardos de que me esquecesse. Aliás, a oral era o meu forte, não havia erros de ortografia, única coisa onde podia claudicar, e em aritmética era águia.
Poupo os leitores aos problemas intestinais que me assaltaram por alturas dos Galegos, com a minha mãe impaciente para chegar à Guarda. E ao nervoso de ambos.
Entrámos pelo Bonfim, subimos a estrada em direção à R. Dr. Francisco dos Prazeres e, antes do cruzamento, na única casa do lado direito, depois da quinta dos Plomes, penso que era este o nome, vi a minha mãe bater a uma porta e chamar, ó Maria Alice! E logo surgiu à janela uma senhora que me pareceu ter ficado satisfeita, ó Mariazinha, e logo a porta se abriu. Bastou esticar o cordel que puxava o pincho.
Era uma antiga colega, mulher do sr. Zeferino, colega de meu pai, que logo nos garantiu quartos e comida. Eram férias, e os hóspedes, se os tinha, estavam ausentes.
No dia seguinte fiz a prova oral. Foi o terceiro exame, com prova escrita e oral, de um garoto com 10 anos e 4 sacramentos canónicos. Disseram que foi um lindo exame. De facto, fiquei nos primeiros lugares, mas nesse dia só soube que fiquei aprovado. Bastou para voltar ao Cume, com a mãe satisfeita e desejosa de saber como estavam as três meninas que ficaram em casa.
Os dez quilómetros percorreram-se num ápice.

Coimbra - Outubro/2019

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13.10.19

Grande Angular - Bom dia, democracia!

Por António Barreto
Um novo Parlamento merece ser saudado! Deve receber votos de uma longa vida, mais ou menos quatro anos. Mas também se lhe pode recordar as suas responsabilidades. E exprimir a esperança que este Parlamento dê passos para aumentar a sua autonomia. Até hoje, esta instituição vive sobretudo dependente dos partidos e do governo e muito pouco da sua identidade, que já poderia ter construído nestas quatro décadas. O “Parlamento arena” sempre levou a melhor sobre a instituição com carácter próprio. A disciplina de voto, o papel das comissões de inquérito e a falta de tradição de actividade de cooperação interpartidária são factores que atenuam a dignidade parlamentar. Até o papel individual do deputado traduz essa diminuição: um deputado é um membro de um grupo parlamentar, não é em primeiro lugar um membro da instituição. A sua liberdade individual e a sua dignidade dependem mais do partido do que do Parlamento. Será que vamos conhecer alguns progressos nos próximos tempos? O grande aumento do número de partidos representados pode criar condições para o reforço da instituição.
Os deputados eleitos já deviam estar sentados nas suas cadeiras. Uma semana depois da eleição, o Parlamento já devia estar a funcionar. Se faltassem uns deputados, os da emigração, por exemplo, a Assembleia poderia reunir e organizar-se. Os deputados da emigração já deviam estar eleitos logo no dia da eleição. É este um dos mistérios da vida democrática portuguesa: o Parlamento não reúne por direito próprio, fica à espera das mesas, das comissões, dos tribunais, do Ministério da Administração Interna, da Comissão Nacional de Eleições, de recursos e Deus sabe de que mais!
Compreende-se que a formação de um governo, especialmente quando se trata de coligações, acordos e alianças, demore dias ou semanas. Tem-se visto como o processo negocial pode durar meses. Na Espanha, na Itália ou na Bélgica são conhecidos casos extraordinários, até mais de um ano. Mas as negociações são uma coisa, os procedimentos burocráticos são outra. Em Portugal, nada justifica os prazos e as chicanas existentes, a não ser a submissão da democracia a regras que lhe são exteriores. 
Fez muito bem o Presidente da República em acelerar tudo, fazer mais depressa o que dele depende (além do Primeiro-ministro e de Rosa Mota, dez partidos recebidos num só dia, é obra!) e tentar estimular os outros a fazer o mesmo. Fez muito bem o Primeiro-ministro em despachar as primeiras reuniões entre partidos. É bem possível que as negociações demorem tempo, mas o ritmo de urgência está criado. Pode até ser necessário que o Parlamento assuma muitas das suas funções antes de o novo governo estar em exercício. Daí não vem mal ao mundo, desde que o mais importante esteja a funcionar. Um Parlamento não pode estar condicionado pelos outros órgãos de soberania, muito menos pela minúcia jurídica processual obsessiva.
O novo Parlamento bem pode organizar uma sessão de homenagem à obra de Diogo Freitas do Amaral. Liderou, com Amaro da Costa, o trânsito da direita portuguesa para a democracia. O seu contributo para a Constituição, mesmo votando contra, foi valioso. Também o foi para a elaboração de outras leis que marcam o nascimento da democracia, como a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas. Esta lei, aprovada em 1982, juntou-se à revisão da Constituição do mesmo ano. A natureza democrática do Estado português foi consolidada nessa altura. Se quiserem designar Freitas do Amaral como um dos quatro “pais da democracia”, com Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Ramalho Eanes, há razões para o fazer.
Outra obra que poderia ocupar o Parlamento, desde já, seria a de acabar com a vedação do Palácio de São Bento. Na verdade, o Parlamento está cercado por um estendal de barreiras à sua volta! Umas móveis e outras amarradas. Para proteger o Parlamento de manifestantes, alguém entendeu ser ideia brilhante proteger a instituição da liberdade e da democracia! Vai daí, cercou-a! É esteticamente horroroso. Politicamente desprezível. Presta-se a todos os sarcasmos, incluindo o de que o Parlamento receia o povo!
Até hoje, as ameaças físicas contra o Parlamento não foram muitas. Umas fotografias dos anos 1920 mostram as polícias a fechar as portas de São Bento! Também se conhecem imagens de Abril de 1974, quando militares do MFA tomam posição à volta do Palácio, o que aliás nem sequer era necessário, dado que ali não se passava nada. Depois existem fotografias do famoso cerco à Assembleia Constituinte de 1975: camionistas pesados, sindicalistas da CGTP igualmente pesados, comunistas, esquerdistas e alguns militares mais ou menos à civil mantiveram o cerco de muitas horas.
Durante as décadas de democracia que vivemos depois desse cerco, várias vezes se viram manifestações diante do Parlamento, umas mais atrevidas do que outras, umas com polícias a proteger, outras nem sequer. Mas em geral o ambiente era pesado, sem ser ameaçador. Até que um dia, uma manifestação de polícias ultrapassou os limites. Vários agentes, treinados para o efeito, fizeram um simulacro de invasão, para mostrar à população e ao poder político que eles entrariam se quisessem. E pararam à porta, depois de terem derrubado as vedações e afastado os piquetes de polícia destacados. Desde então, o Parlamento ficou protegido de modo permanente. Haja ou não manifestação, comício ou concerto de protesto, as vedações metálicas estão ali para ficar. Presas umas às outras, disfarçam um ar provisório, mas a verdade é simples: o Parlamento está protegido dos manifestantes. A coisa é esteticamente desastrada. Do ponto de vista da qualidade do urbano, um pavor. Mas pior do que tudo, do ponto de vista político, moral e cultural está ali um horror! O Parlamento exibe fragilidade e medo!
Nestes dias excepcionais de comemoração da democracia, uma alusão vem a propósito. O Tribunal Constitucional considerou inconstitucionais várias cláusulas de uma lei que conferia aos serviços de informações excepcionais poderes de vigilância e escuta dos cidadãos, nas redes de telecomunicação e na Internet. Uma declaração de voto de um juiz, aliás vice-presidente, João Pedro Caupers, devolve-nos algum orgulho! Diz o Juiz, exprimindo-se como toda a gente, em bom português simples e claro: “E não me venham dizer que a intromissão dos serviços de informações (…) é indispensável para que o Estado possa defender a minha segurança. Já ouvi isso, noutros tempos e em outros contextos. Se tivesse de escolher entre defender a minha segurança ou proteger a minha liberdade (…) optaria, sem hesitar, pela liberdade. Não me encerrem numa masmorra – ou numa torre de vidro – para me proteger. Como alguém disse, viver é sempre perigoso”.
Público, 13 de Outubro de 2019

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11.10.19

Vivam os Pequeninos!

Por Joaquim Letria
Não há grande interesse nem paciência para aturar os partidos em campanha, nem os respectivos políticos a jurarem pela mãezinha deles o que nos vão dar se forem eleitos e o que ficam agradecidos se nós votarmos neles. Felizmente que amanhã calam-se todos e depois se verá.
Por outro lado, agarraram nos partidos pequeninos, juntaram-nos todos para dizerem que faziam um debate sem excluídos, e com 17 homens e mulheres apertadinhos ombro a ombro num cenário vergonhoso puseram-se a dirigir-lhes perguntas de má vontade e com maus modos para nos mostrarem como os jornalistas são independentes.
Naqueles 17 havia de tudo, um cego, uma gaga profunda e gente sem experiência e confusa, mas também havia – há que reconhecê-lo – gente a saber muito bem o que queria para o seu país, com ideias arrumadinhas e de palavra fácil e inteligente que a gente nunca tinha ouvido nem nunca fixámos o nome do respectivo partido.
Dois destaques, se tal nos é permitido: a presença de Tino de Rãs, a quem querem transformar num bobo da corte mas que fala a sério, com respeito pelos outros e dando-se ele próprio ao respeito, e a humildade de Pedro Santana Lopes, que já foi presidente do Sporting Clube de Portugal, presidente da Câmara da Figueira da Foz, presidente do PSD, secretário de Estado, Ministro, primeiro Ministro e fora um dos meninos bonitos do Dr. Sá Carneiro.
Ainda importante, o acerto, concorde-se ou não, dos representantes do Livre, e do Nós Cidadãos, que bem podiam jogar na primeira liga em vez de estarem relegados para as divisões secundárias. As ideias e simpatia da dra. Joacine Katar Moreira, em muito prejudicada pela sua deficiência, são a demonstração clara da verdade da sua própria declaração: “Sou gaga a falar, mas não sou gaga a pensar”.
Já há bastante tempo que dou por mim a ver e a ouvir relatos de jogos de futebol das divisões secundárias. Há diversas razões para que assim suceda: os árbitros também se enganam mas roubam menos, os jogadores são geralmente piores mas entregam-se à luta e ao calor dos jogos e os adeptos conhecem todos as mães dos árbitros a quem tratam com grande intimidade.
Ainda que o futebol de segunda nada tenha a ver com os debates eleitorais, é mais divertido e interessante assistir a um Leixões-Sporting da Covilhã tal como é mais convincente ver os debates dos partidos pequeninos, que jogam para taça nenhuma, do que estar a ouvir os “líderes” (como eles dizem) a mentirem e a acusarem-se uns aos outros. Vivam os pequeninos!
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10.10.19

Os juízes e a política

Por C. Barroco Esperança

Quando um juiz sugere que a normal substituição da PGR, terminado o mandato, se deve a processos relacionados com a Justiça, entra no domínio da especulação e da ofensa aos detentores dos mais altos cargos da República, o PR e o PM.
A substituição da Dr.ª Joana Marques Vidal, pois é a esta que expressamente um juiz se refere, sabendo, como tinha obrigação de saber, pela ampla divulgação da comunicação social, que a própria considerava único o mandato, como referiu no Boletim da Ordem dos Advogados e reiterou numa conferência em Cuba, era pacífica.
Aliás, o constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa, muito antes de ser PR considerou, depois do prolongamento do mandato de PGR, que passava a ser único, embora a lei o não referisse de forma explícita.
E foi assim que a atual PGR, por proposta do PM e concordância do PR foi nomeada.
Ignora-se o que leva um juiz, cujas funções exigem ponderação, a fazer eco das atoardas da direita, com objetivos de luta partidária contra o Governo, ferindo titulares dos mais elevados cargos da República e que os ocupam com legitimidade do sufrágio popular.
insinuação do juiz Bártolo, injusta e gratuita, durante o interrogatório ao ex-ministro da defesa Azeredo Lopes, que Joana Marques Vidal não foi reconduzida na PGR devido a pressões da Polícia Judiciária Militar junto do Governo e de Belém, não honra quem a profere e lesa o respeito que é devido a um juiz, por ter faltado ao respeito que deve ao PR e ao PM.
A falta de escrutínio do poder judicial leva a afirmações deste jaez e à impunidade que lhes está associada.
Depois de terem recorrido à greve, caso exótico de membros de um órgão de soberania, os Tribunais, e de poderem ascender a vencimento superior ao de PM, fica a impressão, certamente errada, de que o que separa a democracia de uma República de Juízes é uma questão de tempo ou de oportunidade.
Espero que a interpretação dos jornais I e Expresso esteja errada, pois os Tribunais são o último reduto da legalidade democrática, mas, a ser legítima, não é com juízes assim.
Com semelhantes afirmações pode pensar-se injustamente que era razoável a especulação maliciosa de que a constituição de arguidos do caso Tancos, em plena campanha eleitoral, visava objetivos políticos.
Ponte Europa / Sorumbático  

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