27.5.23

Grande Angular - Golpe de misericórdia

Por António Barreto

Discutem-se, com leviandade, as hipóteses de dissolução e de convocação de eleições antecipadas. São maus hábitos. Quando há crise, em Portugal, logo se pensa na dissolução. Além de ser um pensamento inadequado, é pouco frequente nos países democráticos. Nestes, quando atravessam crises, a dissolução é mesmo o último recurso, quando já não há governo possível nem solução parlamentar.

 

A decisão de dissolver um Parlamento e convocar eleições antecipadas pertence, nos países democráticos, ao Chefe de Estado, Presidente ou Monarca. Mas a iniciativa é do Governo ou do Parlamento. Portugal é, neste capítulo, país à parte, um dos muito raros, quase único, onde a iniciativa e a decisão pertencem a quem não governa nem legisla, isto é, ao Chefe de Estado. É mais uma especialidade de um regime inventado por juristas sofisticados.

 

Países há, como a Itália, onde a iniciativa e a decisão parecem pertencer ao Chefe de Estado, mas, na verdade, aquele age depois da tomada de posição do governo e do parlamento. Também há países, nomeadamente a França, onde o Chefe de Estado toma claramente a iniciativa e a decisão. Mas o chefe de Estado francês também é, para todos os efeitos políticos, chefe de governo.

 

É legítimo defender a utilização intensiva do poder presidencial de dissolução do Parlamento e de convocação de eleições antecipadas. Acontece que tal prerrogativa pode ser muito negativa para a estabilidade institucional, assim como pode ser danosa para a natureza do regime. Realmente, em regimes parlamentares, a decisão da dissolução e da convocação de eleições é assunto do governo e do Parlamento.

 

É difícil sublinhar a inspiração parlamentar do regime português. Na verdade, quase tudo se inclina sempre para reforçar o seu lado presidencialista. É pena. O carácter semipresidencialista é tipicamente nacional. Nem peixe, nem carne. Juridicamente sofisticado. Deliberadamente complexo. Inocentemente destinado a criar problemas, não a resolvê-los.

 

É notoriamente mais democrático um entendimento restritivo dos poderes de dissolução. Só em caso muito grave. Só em caso de ingovernabilidade. Sem cuidar de sondagens ou de alternativas. Sem pedir ao Presidente que encare as hipóteses de ajudar este ou aquele. Sem lhe dar a oportunidade de fazer o que mais lhe convém. Os exemplos que temos da história recente mostram como a dissolução pode ser vassoura de aprendiz ou ferramenta de feiticeiro. Nem uma nem outra parecem úteis. Para a convocação de eleições antecipadas, os argumentos essenciais são a maioria impossível ou esgotada, a impossibilidade de formar governo e de aprovar orçamento e a necessidade, sentida pelo governo, de refazer uma legitimidade. O resto, os sentimentos e as sensações do Presidente da República, deveriam ser evitados.

 

Há hoje uma crise política? Há. Há ministros incompetentes? Não é o que falta. Há governantes inexperientes? Muitos. Há fragilidade na coordenação governamental? Visível. Há oscilações programáticas e de orientação? Flagrantes. Há ministros imaturos desejosos de conspirar? Sabemos quem são. Tudo isto se resolve com meios tradicionais e soluções conhecidas. A remodelação pontual é feita para isso. As grandes remodelações servem grandes desígnios, nomeadamente o de começar de novo. A demissão do governo, a pedido do Primeiro ministro, a quem o Presidente da República solicita nova solução, é remédio usado em todo o mundo democrático.

 

Outros meios mais simples têm os mesmos efeitos, os de renovar e corrigir. Por exemplo, a apresentação ao Parlamento de novo programa de governo. Tal como o recurso à moção de confiança devidamente votada. Ou o uso da moção de censura, tão denegrida, mas tão útil. É interessante saber se a maioria ainda existe, se esta se mantém coesa, se a composição do governo pode ser ajustada, se os apoios parlamentares podem ser renovados, se ministros mais competentes podem ser chamados e se é conveniente afastar ministros moralmente fragilizados ou metidos em sarilhos. Há tantos meios constitucionais que devem ser utilizados antes da dissolução! As eleições antecipadas são ferramentas naturais, mas excepcionais. Dissolução, só em último caso. Não é por acaso que lhe chamam “bomba atómica”!

 

Em que medida uma dissolução resolveria um dos problemas actuais? Visivelmente, nada! O que é que a dissolução não resolve? A Justiça! Os serviços públicos! O SNS e as filas de espera. Os alunos sem aulas. As greves dos transportes públicos. As greves dos tribunais. Os adiamentos dos processos judiciais. O custo de vida e os preços dos alimentos. As migrações clandestinas. Os trabalhadores ilegais empilhados em dormitórios. Para tudo isto, há soluções conhecidas: novos ministros e dirigentes da administração, novos programas e orçamentos… Dissolução é que não!

 

Mesmo a questão do SIS, verdadeiramente demoníaca, pode ser resolvida de mil maneiras sem ser necessário recorrer ao poder de dissolução. Aliás, esta última, em si, nada resolveria. O caso do SIS necessita de várias respostas: demissões de membros do governo envolvidos, substituição de responsáveis, alteração da lei orgânica e redefinição de regras de envolvimento. A dissolução da Assembleia é que não leva a sítio nenhum.

 

Nas actuais circunstâncias, a dissolução, antes e em vez dos outros mecanismos, parece um capricho do Presidente, um cheirinho a sondagens, um favor, um jeito, um palpite, um receio, uma vaidade… A verdade é que não se deveria dissolver, nem antecipar eleições, com desígnios suspeitos, como por exemplo o de proporcionar maiorias aos amigos ou facilitar a vida a outro partido.

 

Antecipar eleições destina-se a pedir legitimidade e decisão ao eleitorado, não a pedir confirmação de desejos secretos do Presidente da República. Não se dissolve a pensar nas sondagens. Nem nos amigos a crescer ou nos inimigos a diminuir. Seria condenável dissolver com segundas intenções.

 

No momento presente, seria aliás inaceitável o PR dissolver um Parlamento e pôr um termo a uma legislatura no momento em que prossegue um dos mais complexos e controversos inquéritos parlamentares! Seria um gesto político que permitiria especulações legítimas. Favoritismo? Proteger um ministro? Favorecer um governo? Destruir um inquérito que poderia revelar factos inquietantes? Ao dissolver, o PR estaria a liquidar um inquérito, incluindo possíveis conclusões. Convocar eleições nestas condições é evidentemente suspeito e inquietante!

 

Dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas é mais um golpe na democracia parlamentar.

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Público, 27.5.2023

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20.5.23

Grande Angular - Uma República de Garotos

Por António Barreto

Podemos ter a certeza: neste caso da TAP, dos respectivos antecedentes e das devidas sequelas, há, entre os seus intervenientes, um ou vários malfeitores. O problema consiste em saber se são todos ou só alguns.

 

Podemos ter outra certeza: há, neste processo, um ou vários mentirosos. Falta saber se são todos ou só alguns.

 

É ainda certo que há alguém a preparar um roubo, a cometer uma fraude, a obter algo indevidamente, a tentar assassinar politicamente alguém, a liquidar um adversário e a destruir quem sabe segredos. Só não sabemos se é só um, se são vários ou se são todos os intervenientes.

 

Sabemos também que estão envolvidos titulares de cargos políticos, altos funcionários do Estado e altíssimos responsáveis da Administração Pública, universo este que pode incluir um Primeiro ministro, vários ministros e ex-ministros, diversos secretários de Estado e ex-secretários de Estado, chefes de gabinete, adjuntos, assessores, auditores jurídicos e administradores de empresas públicas. Uma vez mais, não sabemos se todos ou só alguns têm culpas e responsabilidades.

 

É seguro que algo está em causa, mais importante do que um computador, dois socos, três bofetadas e uma ameaça de agressão. Num ministério como este, das Infra-estruturas, é difícil encontrar documentos confidenciais muito sérios. Também num país como o nosso, não é crível haver segredos de Estado vitais, ainda por cima gravados no computador de um adjunto! Muito dinheiro, muitos interesses, enormes favores e imensas negociações: eis o que pode estar em causa.

 

Temos diante de nós a coreografia ou o cenário perfeito da mentira: do mesmo acontecimento, dos mesmos factos, com os mesmos protagonistas, existem pelo menos duas versões contraditórias, dois elencos factuais diferentes e opostos e evidentemente dois perpetradores.

 

Um bando em funções de Estado, instituições supostamente respeitáveis, departamentos governamentais com responsabilidades, deputados eleitos e representantes directos dos cidadãos, empresas públicas, escritórios de advogados famosos, salteadores de capitais internacionais, funcionários de Estado obrigados a limpar as estrebarias e empresas internacionais de consultadoria estão atarefados à volta de um ministério. Este, por sua vez, ocupa-se de tudo quanto é importante na economia futura do país: aviões, aeroportos, comboios, caminho-de-ferro, portos fluviais e marítimos, grandes pontes, energia, rede eléctrica nacional, barragens e centrais térmicas e mais, tanto mais, em duas palavras, quase tudo, nas mãos de um ministro… É isso que está em causa! São decisões de muitos milhares de milhões! São os marcos da economia futura do país. É o maior investimento de que há memória e de que haverá crónica no futuro! É isso que está em causa, não é um computador, um telemóvel, uma ameaça contra quatro mulheres, um murro de um homem, uma grosseria de um ministro, um engano de um telefonema… 

 

Já se percebeu que houve mentira, traição, ciúme, engano, ameaça, violência e abuso. Mas porquê? O que estava em causa realmente? Dinheiro? Interesses estrangeiros? A companhia de aviação? O aeroporto? O lítio? Os comboios e o TGV? A rede eléctrica nacional? As “renováveis”? Uma coisa parece certa: para que os intervenientes se tenham deixado enredar em cenas ridículas próprias de telenovela, é necessário estarem de acordo sobre um ponto: o silêncio sobre o essencial. Fica-nos a certeza de que este silêncio e a zanga têm origem num passado de cumplicidade.

 

Ao longo deste processo, pelo que se sabe, alguns ou todos se portaram mal, abusaram de poder e de funções, mentiram, esconderam, ameaçaram, agrediram, roubaram, destruíram, quebraram, negaram, tentaram liquidar, apagaram documentos, “limparam” telemóveis e computadores, sonegaram provas, esconderam fontes e acusaram falsamente outras pessoas. Todos? Só alguns? Quem?

 

Raramente, nestas décadas que levamos de democracia, se atingiu um ponto tão baixo de miséria moral, de atentado político, de vilania, de imoralidade e de sem vergonha! Há gente que, por bem menos, reside actualmente na Penitenciária, em Custoias ou em Pêro Pinheiro. Raramente como agora a Justiça portuguesa esteve tanto em causa. Raramente como agora o Estado de Direito esteve tão ameaçado.

 

Na mafia, nos gangues de Nova Iorque, entre oligarcas de Moscovo, nas redes de tráfico de droga, no mercado do sexo e de trabalhadores clandestinos, nos serviços de imigrantes, no comércio de armamento, nos arranha-céus de magnates do petróleo ou nos resorts dos bilionários dos metais raros, há procedimentos parecidos com aqueles que se adivinham neste processo. Com a diferença de montantes e de pessoas envolvidas, com certeza. Mas com uma similitude moral indiscutível.

 

Parece a República dos Garotos. Pelo que se julgam superiores e infalíveis. Pela superioridade moral de que crêem usufruir. Pela inteligência sistémica com que tratam as estratégias de longo prazo e nada entendem da vida real. Pelo desprezo com que avaliam os outros, a opinião pública e os eleitores. Pelo modo como substituem as regras e as leis pelos seus gestos, o seus gostos e os seus valores. Pelo seu carácter atrabiliário e pela irascibilidade adolescente. Pela palavra gratuita, pela moral que muda, pela crueldade constante, pelo cinismo indisfarçável e pela hipocrisia como hábito e regra: por estes e outros atributos, estas pessoas, algumas destas pessoas, muitas destas pessoas não deveriam ter acesso a postos de comando, nem ter a capacidade de influenciar a vida de outros. Estamos perante pessoas que só têm regras claras e precisas: eles próprios, os seus amigos, os seus partidos, as suas famílias, as suas empresas e as suas auréolas de glória narcisista que designam por interesse público. Estes Garotos divertem-se com o mal dos outros, brincam e desprezam os inferiores e os menos dotados, odeiam e perseguem os superiores e mais capazes. E têm enorme consideração por si próprios.

 

Como é possível que alguns ministros capazes, alguns governantes decentes, alguns altos funcionários competentes, alguns deputados honestos e alguns profissionais honrados se deixem enlamear por estes Garotos? Nunca se perceberá a razão pela qual académicos probos, professores dedicados, engenheiros competentes, autarcas responsáveis, sindicalistas empenhados, intelectuais com sentido moral da vida e políticos ciosos do bem comum se deixam envolver nesta história a todos os títulos tão sórdida.

 

 

Público, 20.5.2023

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13.5.23

Grande Angular - Prestar contas

Por António Barreto

É certamente uma das mais nobres e interessantes actividades da política: prestar contas! Aos clientes, aos militantes e aos apoiantes. Aos adversários, aos independentes e aos neutros. Às instituições, às empresas, aos sindicatos e às associações. Mas sobretudo aos eleitores.

 

A prestação de contas, um dos trunfos, uma das virtudes e uma das armas mais importantes da democracia, inclui actividades diversas. Por exemplo, comparar o que se fez com o que se prometeu. O que é anunciado nos programas eleitorais, os balanços e os relatórios, os programas para novas eleições e sobretudo a liberdade de expressão revelam o grau de cumprimento. A palavra dada foi cumprida? Será que se ficou aquém ou foi além? Os imprevistos justificam-se? Há quem proponha melhor?

 

Além de outras formas de prestação de contas, a mais importante, mais certeira e mais concreta é a que se traduz em custos. A noção de contas revela a sua absoluta adequação. Quanto custou? Quanto se gastou? Quem pagou? Como compara com o prometido? Justificam-se os custos a mais ou as despesas imprevistas? O que se gastou é superior ao que se ganhou? Quem ganhou e quem perdeu?

 

A nossa democracia, que faz em breve 50 anos, tem muitos defeitos e muitas virtudes. Como todas. Mas tem um mal particularmente chocante: a falta de prestação de contas. Curiosamente, não são só as autoridades que não prestam contas (o que prometeram e o que gastaram), como são as oposições que raramente se interessam por isso, provavelmente na esperança ou com o receio de que chegue um dia a sua vez.

 

Os orçamentos do Estado (assim como os orçamentos das instituições, das administrações e dos serviços) são belos exemplos desta falta de prestação de contas e da respectiva explicação. Diz-se quanto se vai gastar (é uma necessidade legal e contabilística), mas não se diz quanto se gastou, quanto se perdeu, quanto se ganhou. Quando se aprova um orçamento anual, nunca se tem em mãos os resultados do ano ou dos anos anteriores, o que faz com que o essencial das discussões se resume aos governos a gabarem-se do que querem gastar e as oposições a dizerem que é pouco, que não basta e que é preciso gastar mais com todas as rubricas: saúde, educação, obras, autarquias, estradas, segurança social e tudo o resto.

 

Por várias razões, entre as quais figura o desnorte actual do governo, vivemos tempos em que a ausência de contas e de prestação se faz especialmente sentir. As perdas imprevisíveis, como as das crises internacionais, da inflação, dos custos da energia, da guerra na Ucrânia e da pandemia, têm sido enormes e transformaram as contas em nebulosas. Mas isso, que os governos entendem ser justificações para a sua incúria, o seu abuso e o incumprimento de dever, é exactamente o contrário: tudo deveria ter como efeito uma maior exigência de informação, uma mais apurada prestação de contas e um reforçado rigor na sua apresentação pública. Mesmo a louvável e talvez bem conseguida política de “contas certas” tem que se lhe diga. Na verdade, as “contas certas” são de ordem orçamental, contabilística e global, não política, não democrática e não pormenorizada. São contas certas feitas de rubricas incertas.

 

Quanto se gastou já com o aeroporto de Lisboa? Em estudos, indemnizações, expropriações, contratos e preparativos? Quanto custou mudar três ou quatro vezes de ideias e de opiniões? Quanto custaram os projectos e as avaliações? Quanto está previsto que venham a custar os novos projectos e as novas avaliações? Quais são as implicações das mudanças e dos adiamentos? Em novos custos? Em obras na Portela? Em voos perdidos? Em passageiros, emigrantes e turistas desviados para outros aeroportos e outros países? Quanto se gastou e perdeu já em expropriações e indemnizações? Quem pagou umas e outras? Quanto se vai gastar a mais por causa do adiamento e dos atrasos?

 

Quanto se perdeu já com a TAP? Quanto custaram as fantasias da privatização, os pesadelos da nacionalização e a loucura da reprivatização? Quanto se perdeu com as compras, vendas e trocas de aviões e outros equipamentos pesados, com as indemnizações, os adiantamentos e as compensações devidas pelos negócios frustrados, pelas alterações imprevistas e pelas mudanças intempestivas? Quanto perdeu a TAP? Quanto a TAP deixou de ganhar? Quanto perdeu o Estado accionista? Com tudo o que se passou recentemente, que valor a TAP perdeu no mercado e quais as perdas potenciais que se verificarão, em caso de privatização? O que custou mais à TAP e aos contribuintes: as greves do pessoal ou a resistência do governo?

 

Quanto tem custado aos cidadãos a desordem nos transportes públicos, sobretudo nos comboios? Quanto tem custado a falta de manutenção e de investimento nos caminhos de ferro? Quanto já custou o fecho da linha do Douro e os estudos para a reabrir? Quanto se gastou com o frustrado TGV, cujos estudos iniciais se fizeram, incluindo primeiros investimentos, obras paradas e interrompidas, grandes indemnizações pagas a empresas de construção e eventuais expropriações? Quanto se está a perder com os principais comboios e as principais linhas em estado deplorável?

 

Quanto custaram as privatizações aceleradas, seguidas de desmantelamento, fecho ou transformação radical das empresas de bens e serviços especialmente valiosas, como a electricidade, o gás, o petróleo, os cimentos, a celulose, a rede energética, as telecomunicações e outras?

 

Quanto se ganhou e perdeu, quanto se está ainda a perder, quem ganhou e quem perdeu, com a venda das empresas e das redes energéticas, assim como com a das barragens, cujos negócios parece terem sido ruinosos para o erário público, sobretudo para os cidadãos, mas cujos valores aproximados são desconhecidos?

 

Quanto se tem perdido, quem tem sido prejudicado, quanto perdem e pagam os cidadãos com as greves e a desordem nos tribunais, com deslocações inúteis, dias perdidos no trabalho e no emprego, despesas efectuadas e causas não resolvidas? O que o Estado tem perdido e o que tem sido pago pelo cidadãos não são já muito superiores aos custos de um possível acordo salarial com os oficiais de justiça? 

 

E, finalmente, a pergunta do bilião de dólares: quanto pagaram até agora os contribuintes pelos desmandos do BES, do BPN, do Banif e do BPP? Quanto poderia ter sido evitado?

 

Sem respostas a estas e outras perguntas similares, Portugal será sempre uma sociedade refém e uma democracia hipotecada.

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Público, 13.5.2023

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10.5.23

Maternidade em Luanda - *O bebé ainda não estava pronto

 Este testico…, texticulo é sobre a minha família

E só o publico porque lhe acho graça. 

Os tempos eram outros, as mentalidades

 Também não afinavam pelo actual diapasão.

Enfim ele aqui fica.

 Espero que não me batam…

Por Antunes Ferreira

Controvérsia em família moderada. Já tínhamos dois rebentos, o Miguel e Paulo, putos de quatro e quase dois anos, nascidos em Lisboa na Clínica de São Miguel do Professor Doutor Castro Caldas por recomendação do primo da Raquel o goês também Professor Mário Cordeiro e tudo tinha corrido sobre esferas.

Agora em Luanda de novo gravidíssima reuniram-se em nossa (alugada) casa as minhas cunhadas e o meu cunhado Mário (o Luís e a Maria Alice estudavam em Lisboa) para discutir o nome  da menina que iria nascer. O único discordante era eu: estava absolutamente convencido que viria mis um moço – o que motivava enérgicos protestos e recriminações da distinta assembleia. A esta só faltavam os auspícios dos deuses romanos familiares os Larae familiriae.

Para que não me acusem de partidarismo ou de ocultação de dados que poderiam levar à conclusão de que estava a favorecer a minha posição faço já uma chamada de atenção bipartida. Primeiro: os meus sogros estavam em Moçâmedes onde como funcionário das Alfândegas Ultramarinas fora colocado como director respeitando o Estado a sua posição em Goa e o casal tinha levado consigo a fila mais nova Belinha.

Segundo: os árduos defensores da feminilidade da nascitura (???) tinham apoios substanciais à tese deles. Veja-se, A minha mãe, que morava num apartamento na avenida dos Combatentes, tinha um “truque” consistindo numa fórmula misteriosa em que entrava a idade da grávida, a data da concepção (mais ou menos) e mais uns pozinhos; tudo conjugado: tiro e queda – uma menina.

A nossa lavadeira Miquelina (mais preta – como então e dizia – não podia ser) invocando um quimbanda que estava em contacto espiritual com um santo semelhante do Brasil pusera-lhe a questão e obtivera umas rezas para o efeito. Resultado: uma moça fora de quaisquer dúvidas. O Ju, meu irmão mis novo, caçador de fim-de-semana na mata, até atirando a elefante recebera do camarada com quem ia atirar outra certeza baseada não sabia em que conhecimento; mas lá que era uma donzela, jurava p’las cinco chagas de Cristo! 

E quanto ao nome a pôr na pia baptismal? Aí era o busílis. Na moda estavam as Tânias, as Vanessas, as Matildes e claro havia que ter em conta a tradição raqueliana. Portanto, Tânia Raquel, Vanessa Raquel, até uma Raquel Clotilde saiu a terreiro. Eu – mudo e quedo. Vendo-me assim, insistiram em ouvir a minha opinião. “Já que a querem saber, a menina vai chamar-se… Luís Carlos; Luís por parte do to, vosso irmão e Carlos porque é o nome do vosso Pai.”

Foi uma algazarra. Que porque sim, que porque assado. Cada um regressou às suas casas e os dias foram passando até que rebentaram as águas pela madrugada e levei a minha mulher à maternidade de Luanda. Nesse mesmo dia à tarde meti o Miguel e o Paulo no Colt e fui ver como paravam as coisas. Deixei-os no carro, subi e fui encontrar a minha cara-metade muito chateada pois ainda não nascera o bebé e as condições eram péssimas. “Que saudades da Clínica de São Miguel…”

Desci e quando entrei no Colt perguntou-me o Miguel “Ó pai então o mano não vem?” E o Paulo, sabichão: “Não vês que ele ainda não estava pronto!

Da cara do meu cunhado Mário de onde da sua casa telefonei para Moçâmedes à minha sogra informando-a de que tinha mais um neto que se chamaria Luís Carlos foi de tal modo que justificará outro escrito. Mas tenho de acrescentar que o Mário se tornou o maior amigo do sobrinho que desejara que fosse sobrinha e que na devida altura ainda não estava pronto…      

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6.5.23

Grande Angular - Quem perdeu. E quem ganhou.

Por António Barreto

Foram, têm sido, momentos inéditos na recente história portuguesa. E não parece que tenham acabado. Foram momentos de confronto público particularmente graves e ácidos, com pouco ou nenhum precedente. Os cidadãos tinham o direito de ficar a saber melhor o que se passou e passa, mas sobretudo a conhecer para poder escolher. Qualquer pessoa pensou que o embate podia ser sério e grave. Mas não. Tratou-se de uma competição. E não se ficou a conhecer a causa nem o que estava em jogo.

 

Muito ou tudo parece resumir-se ao confronto entre o Primeiro-ministro e o Presidente da República. Este frente-a-frente, com origem aparente no governo e no mais incompetente e egocêntrico de todos os seus ministros, João Galamba, era simplesmente sobre as relações entre os dois órgãos de soberania.

 

Diante de grandes afrontamentos, há sempre quem pergunte: Quem ganhou? Quem perdeu? Neste nosso caso, não falha a regra. E a resposta não é muito complexa ou imprevisível: perderam todos. Uns mais do que outros, mas todos perderam. E os portugueses também. 

 

O governo perdeu. Perdeu força, sentido e seriedade. O governo ficou condicionado por este confronto e todos os seus membros ficaram reféns da solidariedade com João Galamba. Os ministros passaram a ficar sob inspecção, auditoria e fiscalização permanente por parte do Presidente da República, função inédita no regime constitucional. O governo desperdiçou um formidável capital, único desde há quarenta anos, que era a convergência com o Presidente da República e a solidariedade institucional.

 

António Costa perdeu. No partido. Em metade do governo. Perante o Presidente da República. Diante dos eleitores. Ainda se pensou que o seu ar de orgulhoso “Toreador” era prenúncio de vitória, mas não foi o caso. Perdeu em toda a linha. Saiu diminuído politicamente. E moralmente. Não se percebeu por que lutou nem por que esticou a corda.

 

O Partido Socialista perdeu. A entrada em novo e glorioso ciclo de vida, com maiorias possíveis e desejadas, sem amarras às esquerdas radicais, sem necessidade de recorrer à direita, nem de depender do Presidente da República, está definitivamente comprometida e perdida. O partido parecia conseguir libertar-se do legado de Sócrates e das lutas internas, assim como das obsessões da esquerda radical, demonstrou estar enredado e desorientado. O partido entrou em momento desnecessário de fracção e fragmentação. Já nem sequer sabe tratar do que tem.

 

Perderam os grandes aventureiros do socialismo, Pedro Nuno Santos e João Galamba. Amigos de teóricos e delinquentes, deixam deliberadamente o partido alquebrado e fracturado, mas tinham a esperança de o recuperar, a breve prazo, com a ajuda dos herdeiros de Sócrates, dos activistas de causas perdidas do comunismo e dos incansáveis derrotados do Bloco de Esquerda. O que era uma grande visão da esquerda do futuro será agora resíduo de marginais.

 

Perderam as infra-estruturas nacionais mais importantes, o aeroporto e o avião, o comboio e o transporte público, a rede eléctrica e os portos, as telecomunicações e a energia. Depois de uns anos de experiências atabalhoadas e de gestão narcisista, estão hoje, em geral, sem orientação e com financiamento imprevisível, sem destino nem eficiência, à espera de novos predadores internacionais. Foi o resultado da entrega de todo este sector, que incluía aliás a habitação durante um tempo, a inquietantes jovens políticos de elevado potencial e enorme ambição, sem currículo nem obra feita, a não ser no partido, na conspiração e nos manuais.

 

O SIS perdeu crédito, confiança e recato. Desde que um ministro, há décadas, mandou publicar no Diário da República a lista de espiões, o SIS demorou anos e anos a refazer a sua reputação. Vai ser difícil respeitá-lo.

 

A TAP perdeu fama, seriedade e sobretudo valor. Em vésperas de ser vendida, vale menos do que pouco. Ninguém respeita a autoridade do accionista, ninguém acata a avaliação que se vai fazer. Qualquer abutre ou predador pode candidatar-se e vencer. A TAP não vai descansar com tudo o que terá a fazer em tribunais, com as indemnizações que vai ter de pagar, com os processos que já estão a ser fabricados pelos melhores advogados portugueses e internacionais, com os movimentos dos seus trabalhadores cada vez mais inquietos. Quem quiser negociar com a TAP, quem pretender comprar a TAP e quem desejar associar-se à TAP, sabe desde já que terá de o fazer com Galamba, o mais desqualificado dos vendedores. Mas também, a partir de agora, o mais frágil dos negociadores. Chegou a hora dos que querem desfazer a TAP ou transformar Lisboa numa sucursal: sabem que o accionista é fraco e o vendedor incompetente.

 

Perdeu o Presidente da República. Apesar de ser dele a última palavra e de ter ficado para ele a última arma, sabe que ficou na praia, nem mar nem terra, nem cidade nem montanha. Fica com um suspeito, cansativo e inédito poder fiscalizador e de inspecção que obviamente não deveria ser o seu. Perderam o seu programa e a sua noção de solidariedade institucional. Sem parceiro, não há solidariedade.

 

Por que razão ocorreu este confronto entre Presidente da República e Primeiro-ministro? Quais eram e são ainda as causas deste combate? Havia uma discussão sobre a Europa, a NATO, a Defesa e as Forças Armadas? Era ameaçadora a crise na educação, na saúde, no custo de vida e na segurança social? A perturbada e perigosa situação da habitação exigia esclarecimento legal, medidas e recursos imediatos? Havia graves decisões a tomar sobre o investimento público ou privado, a fiscalidade ou a dívida pública? Havia dilemas importantes sobre a política de imigração, a situação dos imigrantes ilegais e a permeabilidade das fronteiras? Importava prosseguir, interromper, cessar ou acelerar a concessão indiscriminada de vistos e autorizações a estrangeiros? Havia a necessidade de fazer escolhas difíceis e complexas sobre a Justiça, este que é o mais grave, mais desajustado e mais ineficaz de todos os sistemas públicos? Estávamos novamente em momento de decisão dolorosa sobre o centro de gravidade da política nacional, à esquerda, à direita ou ao centro? 

 

A todas as perguntas que precedem, a reposta é sempre, sim. Mas também é, não, não foi sobre isso que houve este confronto. Uma coisa é certa: nada hoje está melhor do que antes. Com mais uma certeza, está pior. Com os eleitores mais desconfiados dos políticos e da política.

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Público, 6.5.2023

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