Grande Angular - Cuidar dos vivos
Por António Barreto
Os últimos anos foram destruidores. Entre as crises financeiras, a pandemia e agora a guerra na Ucrânia, pouco nos foi poupado. Com um resultado sempre previsível: sofre mais quem menos pode. Doentes, desempregados, idosos e pobres são mais atingidos do que os que o não são. Com as crises, as desigualdades aumentam sempre.
As últimas décadas foram devastadoras. Crises económicas, guerras “locais”, muito terrorismo, um crescimento intolerável da corrupção, a crescente predação dos bens públicos e o agravamento acelerado das perturbações do clima. É verdade que, em prazos longos, o melhoramento das nossas vidas foi evidente. Toda a gente (ou quase) está melhor hoje do que há cinquenta anos. Mas também é certo que a desigualdade, depois de ter francamente diminuído, voltou a agravar-se marcadamente.
O último meio século foi fulgurante. A globalização aproximou toda a gente. Os progressos da ciência e da tecnologia foram fenomenais. Os avanços da medicina foram espantosos. O aumento da produção alimentar formidável. Mas a democracia, depois de mostrar avanços significativos, começou a recuar, por força dos seus inimigos e por fraqueza dos seus adeptos. A paz, na Europa e no mundo, afirmou-se claramente, mas depois, com o terrorismo e os governos autoritários, começou a perder e está hoje ameaçada e ferida.
Que podemos fazer? Tudo o que é dramático e decisivo para a mundo, a guerra, a miséria, a doença e a opressão estão fora do nosso alcance, quase nada podemos fazer para resolver. Mas podemos contribuir, tal como temos vindo a fazer, devagar, aos poucos, gradualmente. Na medida dos nossos recursos. Além disso, podemos tratar de nós, da nossa sociedade, dos conterrâneos. Será isto egoísmo, pura e simplesmente? Parece, mas não é. O melhor contributo que podemos dar consiste em tratar da nossa comunidade.
É muito pouco o que podemos fazer pelas vítimas da invasão russa na Ucrânia, contra a pandemia por todo o lado, contra a fome e a sede em África, contra a doença no mundo inteiro, contra as ameaças das alterações do clima…. É pouco, mas pode servir de exemplo. E talvez ajudar. Mas é muito o que podemos fazer cá dentro, na nossa comunidade, contra as desigualdades na economia, na sociedade e na Justiça. É muito o que podemos fazer para diminuir os efeitos desiguais das grandes crises. Sabemos que a pandemia e a pobreza afectam mais os pobres, os desempregados e as classes de rendimentos exíguos. Podemos fazer pouco ou nada contra a pandemia ou contra a guerra. Mas podemos cumprir os nossos deveres, cá dentro, em nossa casa.
Pode parecer patético comparar os milhares de problemas do nosso dia a dia com as mortes na guerra. Pôr em paralelo as dificuldades no acesso aos serviços públicos e os milhões de mortos da pandemia parece deslocado. Como é delicado confrontar as desigualdades no acesso à justiça, à saúde e à educação com a fome e a seca que se desenham diante dos mais pobres e desafortunados deste mundo. É verdade que há qualquer coisa de paradoxal. Mas o que está ao nosso alcance é tratar com justiça e humanidade os nossos iguais, a nossa comunidade e a nossa cidade.
O tratamento que as empresas dos serviços, dedicadas ao que se designa por serviços públicos (“public utilities”), reservam aos cidadãos portugueses é geralmente desastroso. Mau grado a permanente enxurrada de cartas, “newsletters”, circulares e avisos que recebemos todos os dias na caixa do correio ou no email, a verdade é que os cidadãos em geral são tratados com desprezo e desigualdade. É frequentemente infernal tratar do telefone, da electricidade, das multas e dos reembolsos fiscais. Isto, apesar dos meios técnicos fabulosos que estão ao nosso alcance. Infelizmente, servem para ganhar dinheiro, não para aliviar o cidadão.
As filas de espera nos centros de saúde e nos hospitais e as listas de espera para consultas, cirurgias e internamentos continuam aflitivas, não melhoram, melhoram pouco ou agravam-se ano após ano. Por causa da burocracia, das regras processuais e dos recursos, os tempos de espera na justiça deixam em crise todo o sistema. As empresas dos grandes serviços públicos, como a electricidade, o gás, a água, o esgoto, o correio, as comunicações, a televisão e os transportes públicos esmeram-se na venda e na propaganda, mas são geralmente negligentes no serviço, na assistência e na manutenção. As esperas ao telefone nos “call centers”, nova praga insuportável, podem medir-se por horas, com música evidentemente, tantas vezes sem resultado.
As grandes administrações públicas, a começar pelas dos impostos e a acabar nas da justiça, persistem em tratar desigualmente, por vezes indignamente, os cidadãos em geral, os fracos especialmente. Ou antes, tratam toda a gente mal, mas quem tem meios defende-se, quem tem conhecimentos protege-se e quem tem recursos satisfaz as suas necessidades.
Os atrasos nos reembolsos de impostos, taxas ou pagamentos indevidos penalizam sempre os que menos podem. As grandes administrações de serviços públicos alteram os preços, modificam os contractos, mudam as regras e agravam as condições com majestática indiferença e absoluto desprezo pelos consumidores e pelos seus clientes. Sabem que quase não há concorrência, que o “cambão” (ou entendimento entre agentes económicos) é fácil e tolerado.
Acesso, resposta, atendimento, consulta, manutenção, reparação e reembolso: eis alguns dos termos que colocam em crise o Estado social moderno e os serviços públicos. São os pecados capitais dos serviços públicos. Estado e serviços estão sempre disponíveis para vender e divulgar o mais moderno e o mais caro. Mas têm absoluto desprezo pela manutenção e a reparação.
A sociedade é fraca. As associações de defesa de consumidores e contribuintes são débeis e tantas vezes dependentes das autoridades. Os municípios e as freguesias pouco se interessam e têm poucos meios. As entidades reguladoras, grande arma do capitalismo de rosto humano e do socialismo democrático, têm-se revelado incapazes de se ocupar destes problemas, os da maneira como são tratados os cidadãos, os consumidores, os eleitores e os contribuintes, para já não falar dos idosos, doentes, crianças e pobres. Se as associações civis quisessem e soubessem, o nosso país seria diferente. Melhor.
Público, 28.5.2022
Etiquetas: AMB