Por António Barreto
Por mérito próprio e demérito dos seus adversários, é provável que o Partido Socialista ganhe as próximas eleições. Faltam poucas semanas e não se vêem sinais vencedores de outros partidos. Também é possível, mas não provável, que ganhe as eleições com maioria absoluta. Haverá, talvez, nova solução de governo, não necessariamente a mesma que temos hoje.
O exame dos programas eleitorais já foi exercício interessante. Eram programas para serem lidos. Raras vezes para serem tomados a sério, mas eram peças de doutrina que significavam alguma coisa. Hoje, a sua leitura é cada vez mais uma perda de tempo. São enormes, mal escritos, têm de cobrir todas as áreas, prioridades, eleitores, tribos e interesses. É aliás provável que sejam elaborados para não serem lidos. Têm só de ser feitos. Mas, com mais de uma ou duas centenas de páginas, não se destinam evidentemente a ser lidos. Nem por profissionais.
Vale a pena olhar para o programa do PS, com 140 pesadas páginas. É o provável vencedor e a maior parte dos outros ainda não está disponível. O programa é interessante porque traduz o seu actual carácter. Não é programa de governo, esse virá depois das eleições. Muitos capítulos deverão ser ponderados, mas, globalmente, há algo a salientar. O PS está a viver o seu momento mais estatal, dirigista e centralizador de sempre. A sua viragem à esquerda, a fim de impedir o progresso do Bloco e do PCP, fica aqui consagrada. O reforço do Estado está bem visível neste programa.
O PS não se propõe “libertar” energias, cidadãos, empresas, autarquias ou iniciativas. O PS propõe-se enquadrar, comandar, dirigir, orientar e, numa palavra, fazer. O PS não quer deixar fazer, não deseja que outros façam, quer fazer. E o que ele não fizer, proíbe ou dificulta.
O programa erige o Estado em salvador da sociedade. O Grande Leviatã está de regresso. Depois de devaneios com o espírito liberal, a sociedade civil, o mercado e a social-democracia, o PS dá sinais de regresso a uma das suas origens, a mais estatizante e jacobina. Este programa confirma, acima de tudo, o papel do Estado, o enquadramento pelo Estado, a iniciativa do Estado e a intromissão do Estado na vida dos cidadãos.
Não, não vale a pena recear o comunismo do PS, que não está no programa. Aliás, basta o Estado português e os “Fundos” da UE para substituírem, com vantagem, o comunismo clássico. Já não são de recear os efeitos do actual governo, isto é, o PC não conseguiu converter o PS. Pelo seu lado, o Bloco comoveu os socialistas, deu-lhes inspirações para a superstrutura, os comportamentos, as virtudes, a ética, o sectarismo cultural e a correcção política, mas não parece ter convencido nas áreas mais importantes do sistema político, da democracia representativa e da economia de mercado. Pode, todavia, recear-se a deriva autoritária do PS no que toca às regras de vida colectiva, a sociedade dirigida pela virtude e o endeusamento do Estado.
Fazer, ordenar, proibir, organizar, comandar: essas são as palavras do PS, esses são os temas! Aqui, não se pensa em libertar, demolir muros, remover obstáculos, permitir… Só se pensa em fazer, mobilizar, planificar… Deixar fazer é impensável. Permitir é sinal de fraqueza.
Antigamente, governava-se por campanhas. As de África ficaram na história. Na República e no Estado Novo, prosseguiu-se e desenvolveu-se a tradição com as Campanhas de Alfabetização e de Educação de Adultos, com a Campanha do Trigo ou da Vacinação contra a Tuberculose. No início da democracia, a famigerada Campanha de Dinamização Cultural foi a mais interessante de todas: a pretexto de sensibilização democrática, lançou-se um dos empreendimentos mais totalitários da história política portuguesa.
Com o fim das Campanhas, apareceram os Planos. Mais intelectuais e aparentemente mais sérios. Surgiram assim os Planos de Fomento. Logo a seguir à revolução de 1974, passou-se a um Plano de Desenvolvimento Económico e Social, seguido das veleidades constitucionais das Grandes Opções do Plano e do Plano a longo prazo. Agora, entrámos na fase das Plataformas, dos Programas e dos Planos Nacionais, às dezenas. Planos para tudo e para todos. Para as Artes, o Regadio, a Literacia, a Energia e os Transportes.
Hoje, verdadeiramente sofisticada é a noção de Estratégia. Estratégia Nacional para isto ou para aquilo. Acompanhada de um ou vários Observatórios. Estratégia implica inteligência. Sugere esforço organizado. Exige mobilização e sensibilização. Motivação e recursos. Neste programa, entre as já existentes e as novas, agora propostas, há dezenas de Estratégias Nacionais, como, por exemplo: de Mobilidade Activa, para a Igualdade e a Não Discriminação, para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, de Combate à Pobreza, para a Integração dos Sem-Abrigo, da Indústria 2030, para a Bioeconomia Sustentável 2030, para o Mar 20/30, para a Reutilização de Águas Residuais, de Educação Ambiental, para uma Protecção Civil Preventiva, de Desenvolvimento Integrado das Regiões de Fronteira, de Empreendorismo e de Turismo 2030.
Sem esquecer, evidentemente, os Planos Nacionais. São dezenas deles: Ferrovia 2020, de Literacia Democrática, de Leitura, das Artes, Sectorial da Defesa Nacional para a Igualdade, de Gestão Integrada de Fogos Rurais, de Segurança Rodoviária 2021/2030, Energia e Clima 2030, de Promoção de Biorrefinarias 2030, de Gestão das Regiões Hidrográficas, de Gestão de Riscos de Seca, de Gestão de Riscos de Inundação, de Ordenamento das Albufeiras de Águas Públicas, Poupança Floresta, de Acção para a Economia Circular, de Acção Litoral XXI, de Situação do Ordenamento do Espaço Marinho Nacional, de Aquacultura em Águas de Transição e não ficamos por aqui. Ainda faltam os Programas Nacionais, os Fundos, as Bolsas e as Plataformas.
Para tudo isto, é necessário ter instituições, leis orgânicas, funcionários, subcontratações, ajustes directos, impostos e confiança política. Pode não ser totalitário, mas este Estado é partidário, ineficiente, burocrático e autoritário. Não desenvolve, nem deixa desenvolver. Não cria riqueza, nem deixa criar.
O Estado pode ser uma das grandes criações da Humanidade. Mas também é capaz de ser, tal como o fizeram os comunistas, os fascistas, os nazis, os corporativistas, os revolucionários do Terror e outros, um dos maiores horrores da espécie humana. No outro extremo, a ausência e a fraqueza de Estado, tal como querem os neoliberais e os anarquistas, podem ser a raiz de outras formas de totalitarismo e de selvajaria. Entre os dois modelos, o PS oscila.
Público, 25.8.2019