27.7.24

Grande Angular - Comissões de inquérito

Por António Barreto

mais famosa Comissão de Inquérito Parlamentar era, até agora, a que tratou do “Caso Camarate”, isto é, o incidente com o avião que transportava Sá Carneiro e Amaro da Costa e seus acompanhantes, todos vítimas mortais. O caso era em si suficiente para ficar na história. Mas há mais motivos para não esquecer. Comissões de Camarate houve dez! E mais de trinta anos! A primeira foi criada em 1982, dois anos depois da “ocorrência”. A última, a décima, foi criada em 2012 e terminou os seus trabalhos em 2015. Nem todas as anteriores chegaram ao fim dos mandatos, mas as que chegaram aprovaram diferentes conclusões, desde a certeza da avaria, até ao erro humano e às dúvidas não fundamentadas, para acabar em suspeitas de atentado e até, finalmente, a garantia de que se tratou de crime. A vida deste inquérito é um caso irrepetível de má conduta, ineficácia, envolvimento político em processos judiciais, legislação absurda e tropelias de toda a espécie. Houve para tudo. Menos para se fazer justiça. Foram comissões de inquérito para a chicana, para o incómodo entre facções partidárias. Havia quem não quisesse inquérito. Como havia quem garantisse que se tratava de acidente, não existia nada para inquirir. Procurava-se incomodar sucessores de Sá Carneiro e de Amaro da Costa. Tentava-se descobrir uma conspiração internacional, mesmo antes de tentar descobrir a verdade. A última comissão terá talvez feito o melhor trabalho de todas. É provável que o seu relatório final seja certo e conclusivo, nunca se saberá realmente, mas foi fora do tempo, sem consequências penais ou políticas.

 

Nestes mesmos trinta e cinco anos, várias comissões parlamentares de inquérito, CPI, foram aprovadas ou recusadas, algumas delas deram espectáculo e tempo de antena. Foram perto de 90 as CPI aprovadas. Onze tinham como tema de investigação os bancos: sistema bancário, TOTTA, BPN, BES, CGD, BCP e BANIF. Boa parte destas comissões não serviu para nada. Ou não acabaram os seus trabalhos, ou não chegaram a conclusões. Por defeito próprio ou porque as legislaturas acabaram. Ou as conclusões eram ditadas pela maioria política, o que retira valor ao trabalho. Mas também houve casos em que as CPI deram origem a procedimentos de relevo. O que se passou, por exemplo, com o BES ou com a colecção Berardo, o BCP e a CGD, terá talvez começado ali, nas salas de inquérito da Assembleia. Parece que, em conclusão, houve algumas comissões que serviram para alguma coisa.

 

Nos últimos anos, a actividade de inquérito tem vindo a crescer ou a prometer. Para a presente legislatura, já há várias propostas feitas, sendo que só uma, a das “Gémeas”, iniciou os seus trabalhos. Antes disso, em legislatura anterior, o computador do assessor de Galamba, a demissão da presidente da TAP, o vencimento de secretária de Estado e a indemnização da administradora da mesma TAP já tinham brilhado como autênticas vedetas. 

 

A partir de agora, a CPI mais famosa pode bem ser a do “Caso das Gémeas”, tal como ficou designado pela voz corrente. O que se tem visto nas televisões arrepia! Tudo se pode ver ali. Guerrilha política. Telenovela de mau gosto. Insídia. Cinismo a jorros. Falta de educação e de cortesia. Sem hesitar, com respaldo em normas jurídicas obtusas, há deputados que exigem ver a correspondência privada, seja do Presidente da República, seja a dos vários protagonistas, mãe, médico e amigos das “Gémeas” ou até de pessoas apenas evocadas. Disse bem: correspondência privada! Como entendem exigir a apresentação de documentos privados de empresas estrangeiras. Como deputados, são maus inquiridores. Como inquiridores, são maus deputados. Como deputados inquiridores, têm dificuldade em perceber que há direitos dos cidadãos que constituem limites à sua acção.

 

Este inquérito ao “caso das Gémeas” é o mais recente exemplo de aviltamento de uma nobre faculdade, a de representar e apurar a verdade. Desde o início que se percebeu que a ideia era uma espécie de institucionalização da velhacaria, do disfarce e da dissimulação. Os autores da proposta, os seus principais actores e os protagonistas, de quase todos os partidos, lutam contra o Presidente da República, contra os governos, contra outros partidos, pelas suas reputações pessoais e partidárias… Quem acompanhe, pela televisão, estes debates, ou antes, estes interrogatórios, perceberá que o que está em causa é a política mais rasteira que se imagina. Com o acréscimo de se tratar de encenação perfeita. Em nome da verdade, a favor da igualdade de direitos e por conta da luta contra as cunhas, cria-se um espectáculo de justiça exemplar. Absolutamente enganador. O caso, pela mãe e pelas crianças, é comovedor. Pela cunha e pela mentira, é repelente. Pelo oportunismo e pelo cinismo, é desprezível. Mas é provável que já se saiba tudo o que há para saber. Que os juízos morais já estejam feitos. E que nada mais haja a fazer. É difícil levar a tribunal o Portugal das cunhas, a mentira dos notáveis e a arrogância dos deputados.

 

Estas comissões de inquérito sofrem de falta de eficácia e de boa organização do trabalho. Há sessões que podem durar cinco, dez ou mais horas. Há depoimentos que duram mais do que interrogatórios de uma polícia política. As instalações ao serviço dos deputados, dos inquiridos e das testemunhas, assim como dos jornalistas e assistentes, são horrendas, toscas, não dignas de trabalho parlamentar sério, sem cortesia nem facilidades de trabalho. Os deputados não se dão ao respeito. As testemunhas são maltratadas. Os visitantes são desprezados. Os inquiridos sentam-se nas esquinas das mesas, são tão respeitados como criminosos em tribunais.

 

Muitos deputados julgam que têm ali tribuna para a história. Fazem perguntas longas como relatórios. Maltratam as pessoas. Desconfiam dos inquiridos ou insultam as testemunhas. Debatem e exprimem as suas opiniões como se estivessem em sessão plenária, não em comissão de inquérito. Julgam que são da polícia judiciária. Pensam que são procuradores. Acreditam que são detectives. Comportam-se como juízes. Acham-se dotados de poderes acima dos mortais. Com algumas excepções de deputados que quase fizeram a sua reputação ali, pelo rigor e pela qualidade do seu trabalho, a maior parte dos inquiridores está preocupada com os seus camaradas, os seus eleitores, os jornalistas e os seus fans.

            

Solução? Ter paciência e esperar pelas próximas gerações.

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Público, 27.7.2024

25.7.24

EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA

Por A. M. Galopim de Carvalho

“Direi tantas vezes quantas as necessárias que a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se de facultar conhecimento, civismo, cidadania, em suma, à sociedade liberta do sufoco em que vivera. 

E, aqui, insisto em repetir, a Escola falhou completamente. Já o disse tantas vezes e a verdade é que os números não me desmentem.

Acontece que o eco deste falhanço, na opinião pública e nos media, fica demasiado aquém da urgência e importância que a Educação e a Escola Pública deviam merecer. A generalidade dos pais, já “educados” na mesma Escola Pública, pródiga em distribuir diplomas, mas muito parca em facultar conhecimento, quer é que os filhos passem e, se possível, com boas notas.

Os governantes sabem muito bem o que deveriam fazer neste domínio da sociedade. Bastava adoptarem procedimentos de sucesso já experimentados noutros países. Será que não o podem fazer? É um facto que o poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais, o que, traduzido para a nossa sociedade, diz que, quanto mais ignorante for o povo mais fácil é governá-lo. Será que é isto que tem vindo a acontecer?

Continuamos, alegremente, a desprezar o nosso maior património centrado na educação, na formação, na preparação dos alunos para uma cidadania plena. E não estou só nesta afirmação. Recordo, uma vez mais, as palavras do então Primeiro-ministro António Costa, em finais de 2015, na cerimónia de entrega do Prémio Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto. 

“De uma vez por todas, o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação.” 

Por vezes começo a perder a esperança de ver a mudança tão desejada. Não quer dizer que baixe os braços e a prova disso é que estou aqui, uma vez mais, a “arregaçar as mangas.”

Comecei, em princípios deste mês e continuo a sondar algumas personalidades das ciências, da arte, da cultura e da política que possam subscrever um Manifesto para a Reforma da Educação passível de merecer a maior e melhor atenção por parte do Governo, da Comunicação Social e, mesmo, por parte de uma grande parcela da população que anda distraída.

Uma vez alcançado o acordo dos Professores com o Ministério da tutela sobre a recuperação do tempo de serviço, tenho quase a certeza de que uma parte muito considerável da enorme massa humana que se manifestou nas ruas do Portugal inteiro, se sinta confortavelmente satisfeita e desinteressada do problema, de maior importância, a nível nacional – a inegável degradação da Escola Pública. Estou mesmo em crer que a necessária e urgente Reforma da Educação não é, sequer, popular, nem para os alunos desmotivados e com diploma garantido, que os há em quantidade preocupante, nem para os maus professores, os tais que sempre recusaram as avaliações a sério, que não são assim tão poucos e que veem na Escola um emprego assegurado até à aposentação. Neste capítulo, os Sindicatos têm tido um papel contrário ao do interesse nacional, ao porem ao mesmo nível os bons e os maus profissionais. 

Por outro lado, receio que, concluído o citado acordo, o Ministério se sinta desobrigado de atender às restantes reivindicações, as mais sérias e profundas, as que visam uma completa reforma deste importante pilar da sociedade que se deseja melhorar. Neste capítulo será preciso não esquecer que a liberdade de acção do Ministro detentor da respectiva pasta está condicionada pela política global do Governo, em particular da parcela do OGE que lhe for concedida. Mas, atenção, qualquer Ministro ou Secretário de Estado, que aceite trabalhar no quadro de uma governação que lhe cerceie os meios necessários para desenvolver a política de Educação que se impõe, fica conivente com ela. Ponto final. É para mim evidente que os sucessivos Ministérios da tutela só fizeram o que os seus governos permitiram. Mas também é verdade que foram coniventes com as limitações que lhes terão sido impostas.

Consciente desta degradação, dirigi a, no passado dia 11, a Sua Excelência o Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Educação, com cópia para Sua Excelência o Senhor Ministro da tutela, o documento intitulado “Escola Pública”.

 

Acontece que, seguindo as pisadas dos seus antecessores: “moita-carrasco”, uma maneira tradicional de dizer que Suas Excelências não responderam. É uma realidade muito nossa, a que eu já estou habituado. Os nossos governantes (com raras excepções) não respondem aos cidadãos. Via de regra, comportam-se como reis e senhores, de que nós somos simples vassalos que ousamos dirigi-lhes a palavra.

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20.7.24

Grande Angular - Complexos de superioridade

Por António Barreto

Somos tão melhores! Somos, quem? Conforme o caso, nós somos os Portugueses, os Europeus, os democratas, os ocidentais, os brancos, os cristãos e os intelectuais.

 

Somos melhores do que os outros. Os outros, quem são? São os Americanos, os Russos, os Asiáticos, os Africanos, os Judeus e os Muçulmanos.

 

Muitos Europeus, de esquerda e de direita, desprezam os americanos, têm medo dos russos, consideram os chineses inferiores e pensam que estão acima dos africanos. Os Europeus de esquerda acrescentam a esses preconceitos alguns juízos mais sofisticados. Os americanos seriam incultos, os russos brutos e os chineses atrasados. Mas sobretudo os Europeus consideram-se superiores moral, política e intelectualmente. Têm melhores sentimentos, história mais interessante, leram mais livros, são mais democratas, têm passaporte e falam várias línguas.

 

Os americanos seriam bebés grandes, atrasados mentais, populistas, prontos para matar os povos indefesos, amantes da violência, imperialistas e apenas ciosos de liberdade quando esta lhes traz dólares. A maioria dos americanos, para muitos europeus, de esquerda como de direita, é composta de gente analfabeta, dada a desportos violentos, a hambúrgueres e cerveja. Os americanos, que votaram Reagan, Bush e Trump, seriam idiotas, imperialistas, evangelistas e racistas.

 

Os franceses, com excepção dos intelectuais e dos profissionais da moda, seriam pequeno-burgueses de simpatias extremistas, racistas de tradição, exploradores de árabes, convencidos de que podem mandar na Europa. Os que votam nas direitas, aliás cada vez mais, seriam fascistas.

 

Os alemães são sempre os mesmos, pesados, brutos, exploradores, violentos, amantes de cerveja, eternos invasores dos seus vizinhos, disponíveis para aventuras fascistas, usaram os franceses para se promoverem a democratas, mas agora querem é mandar em todos. E só pensam, evidentemente, em conquistar os vizinhos e comprar as suas indústrias.

 

É assim que os Europeus se enganam.

 

Estão em curso mudanças profundas, tão vastas e tão rápidas como raramente se viu na história. Também é verdade que tudo anda mais depressa. Que tudo se sabe mais rapidamente. E que tudo e todos comunicam e estão ligados a todos e tudo. 

 

Muitos não souberam perceber o que se passava com as nações. Com as comunidades nacionais. Com as comunidades de língua, cultura e tradição. Consideraram que tudo isso era nacionalismo de pacotilha, conspiração obscurantista e capitalismo selvagem. Quando não fascismo puro e duro. E de qualquer modo racismo. Há uma falsa racionalidade na política democrática contemporânea que evita a nação e a história. As tentativas de reescrever a história, de restituir, de devolver, de reinterpretar e de traduzir em dialecto correcto a herança histórica europeia estão a destruir a democracia.

 

Muitos não conseguem entender que as populações estão em mudança acelerada, inescapável, em processo que ultrapassa as vontades de um governo ou de um só país. A circulação de pessoas, a miscigenação e as migrações são partes estruturais da história do presente. É impossível estancar, com democracia, tais tendências. Mas é possível ordenar, controlar, legalizar e administrar. Com o assentimento dos povos. Com tolerância. Caso contrário, a explosão racista e a desordem estão aí, ao virar da esquina. E a falsa igualdade generosa acaba por ser o mais eficaz estímulo ao mercado negro de pessoas, à ilegalidade e à exploração mais vil que se pode imaginar.

 

O contexto internacional é um incentivo à ansiedade. Os Russos procuram uma vingança histórica. Os Chineses querem consolidar um lugar no posto de comando das potências. A Índia não quer ficar para trás. A Europa está a perder e não quer perceber. Os Estados Unidos estão a deixar de ser hegemónicos, sendo embora ainda dominantes, mas não sabem como deixar de o ser e não toleram essa hipótese. África, América Latina e Ásia, que estão à venda a quem der mais, a quem envie ajuda militar e capitais, deixaram de ter fidelidades históricas ou amizades electivas. 

 

É uma verdadeira metamorfose aquilo de que se trata. Ao que dizem, para os animais que passam por essa via, é dos momentos mais dolorosos da vida. As nações e os continentes estão actualmente num processo desses, não se duvide. Quem não o percebeu será quem mais sofrerá. Os que menos percebem são evidentemente os que mais perdem na balança de poderes. Estados Unidos à cabeça. Europa a seguir. Estas duas potências, separadas ou em conjunto, deveriam repensar o seu lugar no mundo.

 

Na Europa, há várias reacções possíveis contra estes processos. Mas há sobretudo três erradas. A primeira consiste em negar e considerar que a Europa será sempre a grande Europa, mesmo que já não seja. A segunda é a aceitação e a rendição, deixando que a Europa se entregue aos grandes pesos pesados no mundo, a América, a Rússia, ou mesmo a China, quem sabe. A terceira é falar, denunciar e vituperar, sem nada fazer. Isto é, considerar que a crítica é suficiente para convencer povos, demover amigos e derrotar adversários.

 

A comparação entre o Parlamento Europeu, calmo, aparentemente estável, com a actual vida política nos Estados Unidos e em França, sem falar de Israel e da Ucrânia, deixa-nos uma suave e doce impressão. A tentativa permanente de encontrar uma base racional e de diálogo merece aplauso e dá-nos consolação. Mas não se apaga a sensação de que não se trata de racionalidade e serenidade, antes é sonambulismo e falta de poder.

 

Para tentar fazer o nosso lugar no mundo em que vivemos e sobretudo aquele em que vamos ter de viver, importa começar por perceber. Por que razões os nacionalistas, a extrema-direita e os radicais conservadores protestam, criticam e acabam por ganhar eleições e encontrar-se em via ascendente nas Américas, em França, na Itália, na Alemanha, na Hungria. Por que razões as migrações descontroladas provocam racismos de todos os lados, dos nacionais e dos estrangeiros. Por que razões a abstenção e o afastamento político da maior parte dos eleitorados persistem em crescer. Por que razões as novas teorias do género, das minorias, do legado histórico, da restituição e do arrependimento estão a destruir a Europa e a liberdade.

 

Quando os Europeus começarem a perceber, então talvez se possa fazer luz.

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Público, 20.7.2024

 

 

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16.7.24

No "Correio de Lagos" de Junho de 2024

 

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14.7.24

A ESCOLA PÚBLICA, 50 ANOS DEPOIS DA LIBERDADE, EM DEMOCRACIA



Por A. M. Galopim de Carvalho

Escrevi, há meia dúzia de dias, que a luta dos professores, numa intensidade nunca vista, com grande destaque no passado ano de 2023, trouxe ao de cima a degradação a que chegou este grande sustentáculo de qualquer sociedade democrática que, entre nós, dá pelo nome de Escola Pública.

Receio de que, uma vez alcançado o acordo com o Ministério da tutela, sobre a recuperação do tempo de serviço, volto a dizer, receio que:

 

1 – Uma parte muito considerável da enorme massa humana, que se manifestou nas ruas do Portugal inteiro, se sinta confortavelmente satisfeita e desinteressada do problema, de maior importância, a nível nacional – a inegável degradação da Escola Pública - e deixe, para a restante, a continuação da luta por uma verdadeiramente eficaz e respeitada Escola Pública; 

 

2 – O Ministério se sinta desobrigado de atender às restantes reivindicações, as mais sérias e profundas, as que visam uma completa reforma deste importante pilar da sociedade que se deseja melhorar.

 

 

Relembro:

 

1 – Reformar toda a política da Educação, numa profícua colaboração entre governo e oposições, para durar três ou mais legislaturas e que envolva gente verdadeiramente capaz de a concretizar.

 

2 – Atribuir à tutela a dotação orçamental adequada à importância deste sector na sociedade. 

 

3 - A falta de professores, que já se faz sentir é uma preocupante fatalidade anunciada, se não se olhar para esta realidade, a sério e com coragem para a resolver. 

 

4 – Preparação de professores pensada de molde a conferir-lhes níveis de excelência compatíveis com a sua real importância na sociedade. 

 

5 – Dignificação das carreiras de professores, com saídas profissionais adequadamente remuneradas e recolocação no patamar de respeito e de estatuto social compatíveis com a sua relevância na sociedade.

 

6 - Libertação de todas as tarefas administrativas, burocráticas e outras que não sejam as de ensinar, uma incompreensível realidade de há muito denunciada. 

 

7 – Resolução do gravíssimo problema da colocação de professores, com vidas insuportáveis material e emocionalmente, a dezenas de quilómetros de casa, separados das famílias.

 

8 – Supervisão científica e pedagógica dos manuais escolares e creditação científica e pedagógica dos autores e revisores.

 

9 – Tornar atractiva, em termos de preparação, dignidade e salários, a condição de assistentes técnicos e operacionais (anteriormente chamados contínuos), cuja importância, na Escola, se tem tornado cada vez mais evidente.

 

10- Tornar atractiva, em termos salariais, as funções de psicólogos, técnicos sociais, técnicos superiores de serviços administrativos e de vigilantes.

 

A.M. Galopim de Carvalho

Prof. Cat. Jubilado da Universidade de Lisboa

Grande-Oficial da Ordem da Instrução Pública

 

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13.7.24

Grande Angular - Pare, Olhe, Não escute!

Por António Barreto

As últimas semanas têm sido intensas com os assuntos relativos à Justiça. Há momentos em que se pensa em pequena guerra civil. Em rivalidade corporativa ácida. Em luta institucional sem tréguas. Ou conflito político irreparável. É provável que todos estes epítetos sejam adequados. Até insuficientes. Certo é que, tal como os vulcões, há turbulência grave periódica. Por causa das relações entre corpos da Justiça, por ingerência dos governos nos processos, por tentativa dos magistrados e dos procuradores de influenciar a política, por acção dos sindicatos, por estas e outras razões, há quase quarenta anos que os episódios graves se sucedem. Há outros tantos anos que os termos de “crise da justiça” e “justiça em crise” fazem parte do vocabulário. A ponto de se tornarem lugares comuns. E realidades com as quais estamos condenados a viver.

 

A corrupção parece estar no centro de tudo. Mas é só aparência. Mesmo com a porta giratória “Política/Justiça” e com governantes arguidos, vigiados, presos e condenados, há sinais de algo bem mais importante e mais grave: são as condições de exercício do poder político, seja pelas autoridades democráticas e dos partidos, seja pelas autoridades judiciais. Entre as primeiras, não falta quem queira condicionar a justiça e estabelecer regras de imunidade e de impunidade para os seus gestos. Entre as segundas, crescem e multiplicam-se os que pretendem capturar a democracia, condicionar a vida política e construir para si próprios um estatuto de intangíveis. 

 

Esta luta e este enredo duram há muitos anos. Com ganhos ora de uns ora de outros. Infelizmente, nas actuais circunstâncias, qualquer optimismo relativamente às “reformas da justiça”, ainda possível há dez ou vinte anos, não tem hoje fundamento. Os métodos e os vícios de trabalho, a desconfiança, a sede de poder e a vontade de vingança fazem com que não se veja quem possa levar a cabo as tais reformas. Não se vê quem. Quem, pessoa. Quem, partidos. Quem, autoridade. Os entendimentos entre partidos, corpos judiciários e restantes protagonistas, incluindo académicos e advogados, deixaram de ser possíveis. Esperam-nos anos de resignação e submissão a uma má justiça, até que novas gerações, gradualmente, consigam construir os alicerces e as bases políticas, legais, institucionais e constitucionais para uma justiça decente. Até que os eleitores, os políticos e os magistrados se entendam quanto ao essencial papel da justiça para a liberdade e a democracia. Até que novas gerações consigam, peça a peça, lei a lei, instituição a instituição, método a método, fundar a justiça na democracia e garantir a democracia com a justiça. Podemos, evidentemente, começar já. Quanto mais cedo, melhor. Mas tenhamos a certeza de que tudo vai demorar muito tempo.

 

Na crise actual, a escuta telefónica ocupa um lugar primordial. Esta simples ferramenta de investigação ganhou uma dimensão dramática. Foi graças às escutas, à sua utilização longa e intensiva; à sua proliferação sem critério; ao seu uso arbitrário; à comercialização dos seus resultados; e às manobras institucionais de cópia, apagamento e distribuição, que bom número de processos surgiram nos tribunais, nas polícias, nas televisões e nos jornais.

 

Já tudo foi dito sobre as escutas. Curiosamente, quase toda a gente aceita a sua utilidade. O que se discute é a parte operacional. Quantas pessoas? Quanto tempo? Quem decide? Quem avaliza? Como se guardam? Escutam-se só as pessoas de quem se desconfia ou também terceiros? Escutam-se pessoas, por métodos de rastreio, logo se verá se vem alguma coisa? Ou escutam-se apenas pessoas com culpas? Escuta-se quem corrompe ou quem é corrompido? Escuta-se quem comete crimes, quem trafica droga, armamento e sexo, quem prepara terrorismo e quem navega na alta finança? 

 

Tudo isto se discute, inclusivamente os procedimentos destinados a preservar direitos. Com e sem aval de juiz. Com pequenos ou grandes prazos de validade. Com e sem rastreio de inocentes. Com duração de escuta de meses ou anos. Com períodos de conserva de registos durante anos. Toda a gente tem ideias sobre estes temas.

 

Só falta de facto discutir o mais importante: devem ou não as escutas ser feitas e autorizadas? De todos os métodos de investigação, as escutas telefónicas e similares (microfones escondidos em casa, no emprego e no carro, câmaras de filmar disfarçadas) estão certamente entre as que mais ferem os direitos do cidadão e as que mais contrariam um invisível pacto de lealdade que as democracias deveriam respeitar. É um dos meios de investigação mais violentos. Tal como buscas a domicílio sem mandato. Ou intrusão domiciliária. Ou violação da correspondência. Ou perseguição disfarçada. Ou tortura e interrogatório agressivo. Ou tomada de reféns para obrigar à confissão e à denúncia. Ou chantagem e ameaças contra familiares e amigos. Alguns destes métodos são permitidos legalmente, muitos são proibidos ou de tal modo controlados que quase estão proibidos. Mas as escutas são as que mais vezes são usadas e talvez as que permitem mais abusos.

 

É estranho que se trate das escutas como mera técnica para a qual é necessário um processo de salvaguarda. Mas o problema é que a escuta é uma violação de direitos. Pura e simplesmente. De direitos que deveriam ser respeitados. E de métodos que deveriam ser banidos. Como a tortura. A busca e a vigilância domiciliária. A violação de correspondência.

 

Aliás, não se sabe com rigor, nem sequer com uma qualquer aproximação, o que as escutas evitaram. Ataques de terrorismo desmontados? Em Nova Iorque, em Paris, em Londres, em Madrid, em Moscovo, em Israel, na Cisjordânia? Crimes prevenidos? Droga apreendida? Contrabando de armas dissuadido? Fraudes financeiras evitadas?

 

Quem defende as vantagens da escuta tem a obrigação de assumir as suas opiniões. De mostrar as vantagens do procedimento. De garantir que não se trata de direitos fundamentais. De mostrar como os traficantes, os terroristas e os bandidos necessitam das escutas para as suas acções e não têm meios mil vezes mais sofisticados para comunicar.

 

A escuta, a vigilância, a intrusão e a perseguição, legais e ilegais, são hoje métodos correntes e aceites nas sociedades, sobretudo nas ditaduras, mas também muito nas democracias. É necessário começarmos a pensar e a discutir as escutas como uma questão de direito fundamental e, não apenas como um processo de investigação. Proibir as escutas é dar uma ajuda à liberdade e aos direitos dos cidadãos.

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Público, 13.7.2024

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10.7.24

ACADEMIAS E ACADÉMICOS

Por A. M. Galopim de Carvalho

Quando, na antiga Atenas, Platão, o discípulo de Sócrates e professor de Aristóteles, começou a agrupar outros pensadores para, em conjunto, reflectirem e dialogarem sobre múltiplos temas do pensamento, fê-lo nos chamados Jardins de Akademus (o herói dos mitos atenienses), pelo que o grupo passou a ser conhecido por “Akademia”. 

Actualmente, o termo designa estabelecimentos de ensino superior, sociedades de caráter científico, artístico ou literário, ou certas escolas onde se ministram práticas desportivas, artísticas, de cozinha e outras.

Para mim, academia teve sempre a conotação de algo relacionado com intelectuais senhores da sua importância (há excepções como em todo o lado), para não usar a palavra “sábios”, como se dizia antigamente. 

Há um bom par de anos, o Prof. Orlando Ribeiro (uma da excepções), geógrafo de prestígio internacional, meu mestre e amigo, contou-me que, numa das sessões que então se faziam na Academia das Ciência de Lisboa, um importante e enfatuado colega mais velho, académico como ele, de há muito jubilado, disse em conversa entre pares, para quem quis ouvir: 
— Com esta minha idade, faço tudo o que fazia na minha juventude.

Ao que ele, Orlando, num leve sorriso sacana, respondeu, de imediato:

— Vossa Excelência, Senhor Professor, deve ter tido uma juventude muito triste!

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9.7.24

LITORAL


Por A. M. Galopim de Carvalho

Uma definição de litoral deu-a Luis de Camões que, para além do grande poeta, foi homem de muitos saberes, com destaque para a geografia. No Canto III, de “Os Lusíadas”, pode ler-se:

 

“Onde a terra se acaba e o mar começa”. 

 

O termo litoral, trazido para os léxicos geográfico e geológico, começou por ser palavra do vocabulário vulgar. Como substantivo, refere a faixa de terreno junta ao mar ou à beira-mar, como também se diz. Como adjectivo qualifica tudo o que se relacione com esta mesma faixa. Substantivo ou adjetivo, contrapõe-se à palavra “interior”, também ela substantiva e adjectiva.

Não confundir litoral com costa ou orla costeira. Esta deve ser entendida como a linha que, no litoral, separa o mar da terra ou, por outras palavras, que marca a fronteira entre o continente emerso e o oceano, tal como é desenhada nos mapas, respeitando o alcance da preia-mar.

Em linguagem político-administrativa, litoral designa a faixa de terra junto à costa, abrangendo uma largura à volta de 50 km para o interior, variável de país para país. 

Em biologia, litoral refere o conjunto de ecossistemas localizados na fronteira terra/mar sujeitos à influência das marés, sendo que neste bioma podemos distinguir três unidade:

 

1 – zona supralitoral, supramareal ou supratidal (um anglicismo vindo do inglês “tide”, maré) - acima da linha da maior preia-mar; 

2 – zona mesolitoral, intermareal ou intertidal - entre a baixa mar e a preia-mar; 

3 – zona infralitoral, inframareal ou infratidal - imediatamente abaixo da baixa-mar.

 

Para o largo, com a profundidade a aumentar progressiva e suavemente, segue-se a zona circalitoral, adjacente ao litoral, já na plataforma continental (ou zona nerítica, de “Nerita”, um gastrópode identificado por Lineu, em 1758) que não sofre a influência das marés, penetrada pela luz solar e, daí, também, a designação de zona fótica.

Para o geólogo ou o geógrafo, numa visão muito próxima da do biólogo, litoral é, não só:

 

1 - a faixa emersa da linha de costa limitada superiormente (do lado de terra) por um acidente fisiográfico (uma arriba ou uma simples rotura de declive) ou pela ocupação permanente de vegetação não tolerante ao sal, mas também 

2 - a faixa imersa, limitada inferiormente por uma linha abaixo da qual o fundo marinho não é significativamente perturbado pela ondulação habitual na região. 

Na nossa costa ocidental, este limite inferior ronda a profundidade de 10 m, sendo de 6 m, em média, na costa sul (algarvia).

 

A adulteração da paisagem física, em nome do desenvolvimento, seja no interior, seja no litoral, é um facto que está a atingir proporções preocupantes. 

No que respeita o litoral, os reflexos da intervenção do homem são hoje bem visíveis e as soluções encontradas, para os minimizar ou eliminar, nem sempre são as melhores. A conclusão a tirar desta realidade é: 

“não se pode continuar a planear o litoral de costas viradas para os conhecimentos que a ciência já está apta a fornecer”.

Há, pois, que saber conviver com o mar e respeitar os seus códigos que já conhecemos com razoável pormenor. Sabemos hoje que a geometria e as características dinâmicas desta franja “onde a terra se acaba e o mar começa” resultam de oscilações naturais do nível do mar, demasiado lentas, só referenciáveis à escala geológica, que podem ser:

 

1 - eustáticas – subida ou descida do nível das águas; 

2 - epirogénicas - deformações da crosta, quer epirogénicas quer orogénicas.

 

Deixando de parte um conjunto de factores e condicionantes próprios da civilização que, por terem lugar à escala temporal do homem e da sociedade e/ou por serem mais visíveis, não é despiciendo conhecer melhor, interferem na configuração do litoral: 

 

1 - a natureza e a estrutura das rochas (e a sua maior ou menor vulnerabilidade à alteraçã e à erosão); 

2 - o clima, em especial no que diz respeito à pluviosidade, à temperatura, aos ventos e ao gelo; 

3 - as vagas (intensidade e orientação), 

4 - as marés e as correntes marinhas. 

5 - as decorrentes da alteração química e/ou da dissolução que a água do mar exerce sobre as rochas do litoral, com efeitos variáveis em função das respectivas naturezas.

 

Em conclusão, pode dizer-se que o litoral se define pelas leis naturais, ou seja, pelas leis da física e da química, sempre subjacentes aos processos geológicos e biológicos.

E os responsáveis pela “coisa pública” ou os técnicos ao seu serviço não podem desconhecê-las.

No sentido de minimizar os inconvenientes causados pelas referidas intervenções, tem-se recorrido a ensaios realizados em tanques especiais, onde, em modelos reduzidos, se procuram simular as condições naturais e as alterações a introduzir, a fim de estudar os seus efeitos. Modernamente, com o desenvolvimento dos meios informáticos, estão a utilizar-se modelos matemáticos com idênticos propósitos.

 

Sabemos hoje que a retenção, nas grandes albufeiras das barragens hidroeléctricas, da maior parte dos inertes em trânsito nos rios, é uma das causas dos recuos verificados em certas linhas de costa, nomeadamente, nas praias. Outra causa reside na extracção industrial de inertes (areia e cascalho) das praias, das dunas e dos rios, incluindo os estuários, na ordem de muitos e muitos milhões de toneladas por ano,. O desassoreamento de portos e barras constitui uma outra causa dos referidos recuos. A construção de enrocamentos, como sejam os molhes e os esporões, com o fim de proteger determinados sectores da costa, acabam sempre por transferir o mesmo tipo de problemas para jusante e, geralmente, de forma agravada.

 

As vagas, desencadeadas por acção do vento, transmitem até ao litoral a energia que dele recebem e têm a sua acção erosiva grandemente potenciada pelo efeito abrasivo dos materiais (areias, seixos, blocos) que põe em movimento. Em resultado desta acção formam-se os litorais de erosão, ou catamórficos, caracterizados por arribas, ou falésias alcantiladas, que recuam à medida que aumenta a plataforma litoral ou de abrasão marinha. A plataforma continental é a continuação desta mesma superfície, arrasada num passado geológico recente (Quaternário) e hoje submersa na sequência da subida do nível do mar nos cerca de 20 000 anos que se seguiram à última glaciação (Würm, na Europa, Wisconsin, na América do Norte) referida por transgressão flandriana (descrita na Flandres, no norte da Bélgica).

Temos exemplos de litorais catamórficos na Costa Vicentina e na que se estende para norte da foz do Douro. Deste recuo restam, como testemunhos, pontas rochosas, como são os cabos ou promontórios, muitas vezes prolongados mar adentro por pontuações igualmente rochosas (ilhéus, baixios, escolhos, abrolhos, calhaus, pedras, etc., nos diversos modos de dizer locais), com destaque para os cabos de S. Vicente, Sagres, Espichel, Roca e Carvoeiro, com a conhecida e elegante Nau dos Corvos.

 

Quando é o mar que recua, o litoral diz-se anamórfico ou de acumulação. Têm aqui lugar a praia, em geral arenosa (mas às vezes cascalhenta), e as dunas. Na sequência desta regressão do mar, a arriba fica liberta da erosão das vagas, passando a evoluir em ambiente subaéreo, até adquirir um perfil de equilíbrio ditado pela sua natureza e pelas condições climáticas ambientais. Facilmente reconhecíveis na paisagem litoral, estes testemunhos de antigos litorais são considerados arribas fósseis.

 

A praia é, na maior parte dos casos, uma acumulação instável de areia e algumas vezes de cascalho, seixos ou calhaus (três modos de referir os clastos mais grosseiros), no geral arredondados pela abrasão. Representa um ambiente onde o binómio morfologia-sedimentação se caracteriza por grande instabilidade. Qualquer modificação natural ou artificial introduzida na morfologia da praia ou no seu conteúdo sedimentar (areias e, eventualmente, cascalho) tem reflexos no balanço erosão-sedimentação.

São exemplos de litorais anamórficos todas as nossas praias, de norte a sul, de oeste a leste (no Algarve)

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NOTAS:

Eustáticas – Diz-se das variações lentas do nível do mar causadas por modificação do volume das águas (gelo e degelo glaciário) ou por deformações do fundo marinho. 

Epirogénicas – Refere movimentos ascensionais ou descensionais, lentos, da crosta continental, responsáveis, por regressões (descida do nível do mar) e transgressões (subida do nível do mar). 

Orogénicas - Diz-se de um conjunto de processos geodinâmicos internos geradores de cadeias de montanhas ou orógenos.

Inertes – Termo técnico, entre os engenheiros, para referir os sedimentos terrígenos, em especial, areia e cascalho.

Jusante - Do francês “jusante”, a partir do antigo advérbio “jus” (em baixo). Este termo, inicialmente empregue em relação com os escoamentos fluviais e afins, em que o sentido do movimento é, naturalmente, o de cima para baixo, (de montante para jusante), acabou por entrar na linguagem corrente com o significado de “para onde” (jusante) em oposição a “de onde” (montante). Na costa ocidental portuguesa, onde o transporte das areias se faz de norte para sul, montante fica para norte e jusante para sul.

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6.7.24

Grande Angular - O futuro começa em casa

Por António Barreto

Grande número de comentadores comporta-se como políticos: definem programas e tomam partido, não duvidam. Semelhante número de políticos comporta-se como comentadores: especulam, prevêem alianças e analisam as hipóteses de equilíbrios futuros. É interessante. Pode ser formativo. Aprende-se sempre qualquer coisa. Mas pouco adianta.

 

Governantes, dirigentes partidários e comentadores, quando não são os mesmos, passam grande parte do seu tempo a congeminar e a atrever-se. As discussões sobre as perspectivas e as expectativas dos partidos, designadamente as possibilidades de alianças e as probabilidades de eleição antecipada, são igualmente curiosas, informadas e estimulantes. Mas quase absolutamente inúteis. Graças à televisão, hoje não se faz política, comenta-se.

 

Alguns dos aspectos mais importantes da vida nacional ou algumas das exigências mais urgentes passam ao lado da cena política actual ou ficam fora das áreas de interesse. Como criar um bloco político maioritário, mesmo feito de partes diferentes, capaz de preparar o país e organizar o espaço público nos próximos anos? Qual é o programa político essencial e prioritário capaz de responder duravelmente às necessidades mais gritantes da sociedade? Como responder ao crescente desconforto?

 

Podem ser outras perguntas. Mas o importante é ver o que realmente tem interessado os partidos e os políticos. Como fazer escorregar o PSD? Como retirar votos ao PS? Como liquidar as hipóteses de bloco democrático moderado? Como ferir o Chega? Como obrigar os outros partidos, sempre os outros, a fazer o que não querem? Fazer bem, para o governo, é simplesmente retirar votos ao PS e ao Chega. Fazer bem, para o Chega, é fazer com que tudo corra mal. Fazer bem, para o PS, é tornar a governação do PSD impossível. Fazer bem, para o PCP e o Bloco, é incomodar e dividir o PS. Todos querem que sejam os partidos e o Parlamento a governar contra o governo. Pelo seu lado, o governo quer governar contra ou apesar do Parlamento.

 

A direita radical vocifera, nada tem a oferecer a não ser desordem. A direita moderada perdeu causa e ímpeto, engana-se a si própria. A esquerda moderada está atarantada, provavelmente em vias de divisão. A esquerda radical vive o seu Outono crepuscular, tão auto-suficiente quanto inútil. Mas é com estes que temos de viver, não com Sebastião ou Salvador. Nem com negros amanhãs.

 

Não há praticamente voz com esperança. O optimismo do governo é falso e disfarçado. Faz lembrar aquelas crianças com medo, a percorrer corredores sombrios e a murmurar “não tenho medo, não tenho medo”! A esperança risonha da oposição reside na expectativa de que tudo corra mal, que os portugueses vivam pior. Ora, todo este ambiente falso e postiço contrasta com as tonalidades do tempo que vivemos, um dos momentos mais perigosos da idade contemporânea. As aflições do mundo, que são medonhas, terão inevitavelmente efeito em Portugal. Mas os portugueses não querem saber. E os dirigentes não querem que se saiba.

 

Portugal é um país pequeno, relativamente pobre, pouco sabedor e mal preparado. Sem o estrangeiro amigo, isto é, sem o Ocidente, o país sofre e declina. Já houve tempos, há séculos, em que o nosso país tinha voz e teve um papel. Motor ou vanguarda, como lhe quiserem chamar. Deu um contributo para a história do mundo muito superior à sua dimensão e à sua aparente capacidade. As circunstâncias globais e a determinação dos portugueses conjugaram-se para uma era excepcional. Nada se repete. Hoje, as circunstâncias ultrapassam-nos. A dimensão, a sabedoria, a fortuna, a força e o trabalho exigidos para tratar do mundo estão fora do nosso alcance. Os portugueses dificilmente contribuirão de forma ousada para a paz e o progresso da humanidade. Mas poderão seriamente contribuir para a sua própria prosperidade.

 

Em vias de perder importância mundial, nas vésperas de crises políticas inéditas e sob o risco de fragmentação a curto prazo, a Europa é fonte das maiores inquietações. Portugal vive mal com uma Europa em crise. A Europa já não é um continente quase dominante, muito menos hegemónico. É doloroso perder aquele que foi o seu papel durante séculos. A decadência nunca foi boa conselheira. Nem fácil de viver. Os Europeus vivem muito mal as ameaças externas, a desunião e a desordem.

 

A perder a sua indiscutível hegemonia, a América prepara-se para uma verdadeira explosão política. Qualquer que seja o resultado das eleições deste ano, a América vai-se afastar ou deixar cair a Europa e alguns dos seus aliados. Os americanos reagem muito mal quando não são obedecidos e respeitados. Pior ainda quando se preparam para viver num mundo em que já não mandam, mas com o qual têm de compor.

 

A China é a grande novidade no mundo. Secularmente espezinhada, ferozmente explorada, sem democracia nem liberdades, com pouco respeito pela vida humana e com desdém pela cultura e pela história, aquele grande país prepara a sua vingança milenar e vai querer, pela primeira vez, influenciar o mundo e obrigar os outros povos, não apenas a respeitá-la, mas também a obedecer-lhe. Uma das dificuldades reside no facto de o mundo não saber como tratar com uma China vencedora e dominadora.

 

A Rússia voltou a transformar-se na pior ameaça contra a Europa e a democracia. Com enormes recursos de matérias-primas, mas com evidentes dificuldades económicas, a Rússia recupera a sua posição de parceiro do terror nuclear, mas perdeu o seu papel de exemplo e de influência. Volta ao seu lugar de protagonista da violência imperialista. De ninho de oligarcas e de berço de terroristas. Qualquer vitória russa é uma derrota da Europa.

 

O Próximo Oriente, que não é uma potência, mas sim um vulcão, por razões próprias e alheias, por petróleo e finanças, contribui eficazmente para a desordem universal que se prepara. Completada por uma África esfomeada e desordeira.

 

É neste mundo em perfeita convulsão, com futuro desconhecido e sorte incerta, que Portugal deve procurar o seu lugar. Com a garantia de que não pode influenciar, mas com a certeza de que deve defender-se e preparar-se. Se às forças políticas e militares que nos ultrapassam, acrescentarmos as ameaças climáticas e o pesadelo demográfico, depressa veremos que nos esperam tempos perigosos. Para os quais nos devemos preparar. Na Justiça, na saúde, no equilíbrio social, na educação e na criação de riqueza. Se não nos prepararmos, ninguém o fará por nós. Pelo contrário: os outros apenas tornarão as coisas piores. O mundo já está a arder, Portugal ainda não.

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Público, 6.7.2024

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5.7.24

“ARQUIVOS DA NATUREZA”




Por A. M. Galopim de Carvalho

Saxa loquuntur” é a expressão latina que quer dizer “as pedras falam”. 
São como que livros onde está escrita a história da Terra. 
Esta interessante imagem, que retirei da Exposição de Maura Grimaldi, 
em Lisboa, de 27/06 a 27/07 de 2024, diz que as pedras, no seu falar 
de silêncio, revelam, a quem as sabe escutar, não só de que foram e como foram feitas 
e, muitas delas, a respectiva idade. Com efeito, as pedras, ou seja, as rochas, podem ser 
entendidas como documentos escritos que os geólogos aprendem a ler. No caso particular 
das rochas sedimentares, as letras dessa escrita são, sobretudo, os seus minerais 
e os fósseis que muitas delas encerram, há milhões de anos. Nas outras duas classes 
de rochas, as magmáticas e as metamórficas, os fósseis, salvo em casos muito especiais 
e raros, não têm representação.


Fixemo-nos, portanto, nas rochas sedimentares, como as mais importantes neste discurso. Como constituintes mais peliculares da litosfera, acessíveis à curiosidade dos geólogos, estas constituem um domínio particularmente importante da Geologia e são o fulcro das preocupações da Sedimentologia, uma especialização relativamente recente que se fica a dever aos interesses das grandes empresas petrolíferas. Armazéns ou arquivos de vultuosa informação, estas rochas têm-nos permitido conhecer grande parte da história da Terra e da vida. Numa linguagem com preocupações de estilo, poder-se-ia dizer que as rochas sedimentares trazem consigo as marcas dos seus progenitores, as das condições ambientais em que foram geradas e, muitas delas, a data do seu nascimento. 

É, pois, nesta medida que podemos comparar as camadas de rochas sedimentares às páginas de um grande livro onde está escrita essa história. 

Em 1941, o físico e cosmólogo ucraniano, naturalizado norte-americano, George Gamow (1904-1968) escreveu: “O Livro dos Sedimentos, reconstruído pelo esforço de diversas gerações de geólogos, equivale a um extensíssimo documento histórico, ao lado do qual todos os alentados volumes da História da Humanidade não passam de insignificantes opúsculos”.

 

Se o leitor abarcar os como e os porquês, os quando e os onde da dinâmica inerente aos processos que levam à alteração das rochas em superfície por efeito dos agentes externos, à erosão, ao transporte e à sedimentação, ou seja, à sedimentogénese; 

Se interiorizar os principais conceitos sobre os mais variados ambientes de sedimentação (marinho litoral, marinho profundo, fluvial, estuarino, deltaico, glaciário, eólico, lacustre, entre os mais conhecidos) que hoje nos rodeiam em todas as latitudes, a ponto de os poder correlacionar com os do passado; 

Se souber que foram ambientes iguais ou semelhantes a esses que, ao longo de milhares de milhões de anos, estiveram na origem de uma parte substancial das rochas da crosta (as sedimentares) e se adquirir preparação de base nestes domínios

 

Irá entender a maravilhosa história do planeta que nos deu e assegura a vida, e deixará de olhar para a Geologia como uma disciplina desinteressante e fastidiosa que, tantas vezes, professores não habilitados, seguidores acríticos de manuais de ensino estereotipados, debitam sem entusiasmo, por dever de ofício, que o aluno decora por obrigação curricular e que lança no caixote do esquecimento, passado que foi o exame final. 

 

Tem sido este o quadro nacional no ensino obrigatório, onde a Geologia sempre foi subalternizada. Foi este o quadro em que, salvo as sempre honrosas excepções, cresceram e se formaram as mulheres e os homens que hoje temos na política, na administração, nas empresas, na cultura, nos media, no cidadão comum.

 

No século X, a Enciclopédia de Os Irmãos da Pureza, obra colectiva acabada por volta 980, diz, numa notável antecipação aos modernos conceitos, que “a erosão destrói perpetuamente as montanhas e que o escorrer das águas pluviais arrasta rochedos, pedras e areia para o leito das torrentes e rios; diz-se ainda que, por seu turno, ao escoarem-se, os rios acarretam tais materiais para os pântanos, lagos e mares, onde os acumulam sob a forma de camadas sobrepostas”.

No século XIII, Alberto, o Grande (1206-1280), aludia ao “lodo agarradiço e viscoso, trazido pelas águas, que cimenta a terra (material detrítico, desagregado) e a transforma em rocha dura”.

No século XIV, Jean Buridan (circa 1300-1360), filósofo francês e reitor da Universidade de Paris, questionou algumas das concepções aristotélicas e ecreveu, reformulando uma ideia vinda da Antiguidade: “Onde hoje se encontra o mar foi outrora terra e, inversamente, onde a terra firme está no presente, esteve o mar e aí voltará”.

No século XV, Leonardo da Vinci (1452-1519) admitia que os fósseis encontrados nas montanhas eram restos de seres vivos depositados no fundo dos mares. Polemizando entusiasticamente com os defensores de ideias conservadoras, contrárias às suas, da Vinci descreveu notavelmente os grandes processos actuais e passados da erosão, sedimentação e fossilização, numa óptica muito próxima das concepções presentes.

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