No "Correio de Lagos" de Nov 20
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Por António Barreto
Por entre desastres e ameaças, os últimos tempos também nos trouxeram boas notícias. A derrota de Donald Trump e a vitória de Joe Biden estão nesse número. Assim como as primeiras vacinas contra o vírus covid-19.
Os cientistas e a sua investigação acabam de prestar inesquecível serviço à humanidade. Raramente ou nunca os esforços dos profissionais e dos laboratórios chegaram tão depressa a resultados tão promissores. Sabe-se que há concorrência excessiva, com propaganda e mentira à mistura. Sabe-se que há muito dinheiro em causa e que, com a competição descomunal, se perdem meios e recursos. Que há quem exagere na demonstração de bons resultados e quem esconda as insuficiências. Que as vacinas estarão prontas para uns, mas não para todos. Que os que têm mais poder, mais dinheiro, mais reputação e a nacionalidade certa terão vacinas mais rápidas e mais eficazes do que os outros. Que há quem, pessoa, governo, empresa ou Estado, use as vacinas para obter vantagens económicas, comerciais ou políticas, legítimas ou não. Sabemos isso tudo.
Também sabemos que, para certas doenças, não se encontram facilmente vacina e tratamento. E quando ambos existem, nem sempre estão acessíveis. Sabemos que doença de pobre não tem vacina fácil nem cura pronta. Como sabemos que doença de todos ou de país rico depressa tem tratamento e vacina. E não ignoramos que, por vezes, mesmo quando há vacina, tratamento e cura, não chegam sempre a todos e a tempo. Tudo isso e muito mais não impede que o que se está a conseguir, neste ano de triste memória, é motivo de regozijo e encanto. E admiração.
Dá alegria viver com a certeza de que, em certas circunstâncias e sob determinadas condições, as capacidades técnicas e científicas estão de tal modo desenvolvidas que nos é possível ter confiança na humanidade. Habituámo-nos às missões espaciais que exigem uma precisão e uma coordenação inacreditáveis e consideramos que são banais, que qualquer um pode chegar lá. A ponto de pensarmos que a ciência e a técnica são coisas de todos, banais. É com facilidade que julgamos que uma peça musical barroca, um escultura gótica, um belo romance ou um grande filme contemporâneo são o supra sumo da criação e da inteligência, enquanto admitimos que qualquer dispositivo técnico ou um adiantamento da ciência fazem parte da rotina. De um cientista ou de um engenheiro, rapidamente diremos que “não faz mais do que as suas obrigações”, mas de um poeta ou de um pintor, não hesitamos em classificar de genial a sua obra. E assim não deveria ser.
O que uns milhares de cientistas fizeram, em menos de doze meses, sob enorme pressão humanitária, merece o aplauso universal e é credor de admiração sem reservas. E deixa-nos uma réstia de esperança, a certeza de que o espírito humano, a organização científica e o esforço dos profissionais são capazes de feitos memoráveis. São equipas e organizações como estas, em vários países, em muitas universidades, em diversos laboratórios e em diferentes empresas que nos reconciliam com o tempo presente. Não conhecemos ainda as consequências e a eficácia de tais vacinas. Nem percebemos os êxitos obtidos nas áreas do tratamento e da cura. Mas sabemos já que um grande empenho científico, sem entraves artificiais, com nenhumas ou poucas distorções políticas, produz obra de que a humanidade se pode orgulhar.
Notícias boas também as que chegam da América. Eleições muito renhidas deram uma vitória clara a Joe Biden, um sensato e cinzento democrata, contra Donald Trump, uma das maiores ameaças contra as liberdades e o equilíbrio das nações. Não foi vitória simples nem folgada. Para surpresa de muitos, os resultados eleitorais do presidente Trump foram muito altos para uma presidência tão contestada. A verdade é que foi a democracia que impediu os riscos que a democracia corria. Como é sabido, também os sistemas democráticos podem destruir as democracias e as liberdades. Uma decisão democrática não é necessariamente justa, solidária e livre. Como se sabe hoje, as democracias “caem por dentro”, quantas vezes através de processos democráticos. Como se vê hoje na Europa, na América Latina, em África e na Ásia.
Há vinte anos que a democracia conhece um processo de inversão ou de captura. Há duas décadas que forças radicais ameaçam eleitoralmente as democracias, conquistam posições nos parlamentos e até tomam conta de governos. Na América Latina, graças a eleições com demagogia e populismo, os maiores e mais ricos países daquele continente têm hoje democracias frágeis ou fictícias. Em África, quase todas as experiências auspiciosas de poder democrático fizeram uma reversão, retomando estruturas de poder violentas, procedimentos contestáveis e governos de absoluta hipoteca partidária, militar e tribal. Na Ásia, enquanto alguns países nem sequer ergueram estruturas aparentes de democracia, a maior parte recorre a esses procedimentos e na verdade os governos estão cada vez mais prisioneiros de famílias, empresas e partidos. Na Europa, países de antiga e sólida democracia vêem crescer movimentos e partidos não democráticos e antidemocráticos, radicais de direita ou de esquerda, enquanto países de novas e recentes democracias dão já sinais inequívocos de quererem, com apoio do eleitorado, aprisionar e manipular a democracia.
Estes têm sido anos de dificuldade democrática excepcional. E os democratas nem sempre parecem ter percebido ou terem meios de obstar, por vias democráticas, ao declínio da democracia. Donald Trump e os Republicanos causaram danos à democracia americana e ao mundo ocidental cujas consequências não conhecemos ainda. Felizmente que os eleitores americanos, isto é, um pouco mais de metade deles, reagiram, reduzindo assim a quatro anos pretéritos o período de verdadeira violação da democracia que se anunciava para durar muito mais. Os eleitores americanos acudiram a tempo, por pequena margem, acrescente-se, mas por vias democráticas. A mensagem enviada ao resto do mundo é clara: é possível que a América e os americanos não embarquem em períodos de democracia alucinada, quem sabe se iliberal e caprichosa. É possível, dentro da própria América, encontrar forças de resistência a todas as tentativas demagógicas que proliferam por esse mundo.
A democracia também é o regime dos não democratas. E dos antidemocratas. É a sua força. E a sua fraqueza. Dentro da democracia, está o seu próprio veneno, a sua morte. Mas também está o seu remédio. A sua salvação.
Público, 28.11.2020
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Por Joaquim Letria
A minha otorrinolaringologista, Dra. Clara Capucho, dirige a unidade de voz do serviço de otorrinolaringologia do centro hospitalar de Lisboa Ocidental, no Hospital Egas Moniz. De cada vez que a consulto, naquele hospital, ela ordena-me que faça previamente um teste Covid-19 e recebe-me protegida por uma máscara dupla e uma viseira.
Eu próprio, pós-observação, devo colocar uma máscara e uma viseira. Conto isto porque estou inteiramente de acordo com estas medidas protectoras, quer da médica, quer das terapeutas, quer de mim próprio, que devo abrir a boca e falar a menos dum palmo de distância das suas caras.
Mas se falo nisto é porque segundo notícias nos jornais e reacções da Ordem dos Médicos, nesse mesmo hospital há um médico que passa atestados a pessoas que não queiram usar máscara e que pertence a um movimento que se auto denomina “Médicos pela Verdade” e se manifesta publicamente contra o uso das máscaras. O referido médico, Dr. Gabriel Branco, passou, pelo menos, 13 atestados a dispensar o uso das máscaras.
Gabriel Branco é o Director do Serviço de Neurorradiologia do Hospital Egas Moniz e trabalha também no Hospital da CUF, em Lisboa, e quer em artigos de opinião, quer em intervenções assíduas no Facebook, defende que “a população tem sido aconselhada, ou obrigada por lei, a usar máscaras sem que as autoridades responsáveis por essas sugestões ou ordens tenham fundamentado as provas da eficácia dessa prática”.
O médico passa atestados para os doentes que não queiram usar máscara, mas ele próprio usa máscara, conforme consta das respostas dos hospitais da CUF e de Egas Moniz à Ordem dos Médicos, onde foram apresentadas queixas contra o clínico em causa.
A Ordem dos Médicos encaminhou as diversas queixas para os respectivos Conselhos Disciplinares Regionais e comenta:
“O crescimento de grupos negacionistas representam uma ameaça ao disseminarem informação errada que pode contribuir para a não adesão dos cidadãos às medidas”. A Ordem considera posições anti-máscara “ sem fundamento e que contribuem para o aumento da incerteza, ansiedade e dificultam o combate à pandemia, como aconteceu noutros momentos de que são exemplos os movimentos anti vacinação.”
Eu respeito muito as liberdades e garantias, por isso agarrava nos médicos anti máscaras e seus seguidores e metia-os nas prisões e lares a abarrotarem de infectados de Covid-19, a tratarem de quem precisa. Obviamente que os mandava para lá como eles gostam e acham melhor… ou seja, sem máscaras…
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«O Observatório das Mulheres Assassinadas (OMA) contabilizou 30 mulheres mortas entre 1 de janeiro e o dia 15 de novembro, 16 das quais em contexto de relações de intimidade, um valor abaixo das 21 registadas em 2019.» (Miguel A. Lopes / Lusa, 23-11-2020
A notícia só surpreende quem anda desatento, mas é a vergonha de uma sociedade onde a violência masculina se perpetua como a herança de séculos de escravidão da mulher, a resistir à civilização e ao respeito pelos direitos humanos, sem que a redução do número de crimes permita acalentar a sua erradicação a curto prazo.
Desde 2004, morreram 504 mulheres, em contexto de violência doméstica, em Portugal.
A tradição religiosa e cultural pesa certamente na perpetuação dos crimes cuja violência oculta a crueldade quotidiana sofrida em silêncio, a humilhação de quem quer preservar os filhos e teme pior danos. Recorde-se quem impedia o divórcio antes do 25 de Abril.
A agressão dentro do lar, física ou psíquica, é uma cobardia de quem se julga impune e substitui a razão pela força e o amor pela violência.
Guardei do DN de 17-11-2014 informações que conhecia, e que julgava de épocas mais recuadas, tal a vergonha que senti e o sobressalto cívico que me atingiu:
«1969 – As mulheres casadas deixaram de precisar de autorização do marido para tirarem passaporte;
1974 – Foi decretado o acesso das mulheres a todos os cargos da carreira administrativa local, à carreira diplomática e à magistratura, ainda com interdição de acesso às Forças Armadas que só terminaria em 1990;
1975 – Fim de crimes de honra legais, com a anulação do art.º 372.º do Código Penal, que apenas previa pena de desterro para o marido que matasse a mulher em flagrante de adultério ou filhas menores de 21 anos, vivendo «debaixo do pátrio poder», que fossem «corrompidas»;
1976 – O Art.º 13.º proíbe tratamento discriminatório em função de sexo, com alteração dos artigos do Código Penal, o que permitia ao marido ler a correspondência da mulher e o que atenuava a pena se a prostituísse.»
A afronta, a humilhação e crueldade do ordenamento jurídico eram a marca da ditadura clerical-fascista, o reflexo do apreço pelas mulheres, mães, irmãs e filhas, num país que era o cárcere dos portugueses e a sala de tortura das mulheres.
A violência doméstica é o legado de quem agredia, violava e flagelava as mulheres, dos cavernícolas que impuseram um regime iníquo, onde a discriminação das mulheres e os preconceitos misóginos se perpetuaram. Até na lei.
Urge pôr cobro à discriminação salarial, ao acesso ao emprego e aos preconceitos contra a mulher. Deram-se passos enormes em democracia, mas ainda insuficientes.
Hoje, ‘Dia Internacional da não violência contra a mulher’, deixo este grito de revolta e a esperança da rápida e efetiva igualdade que o respeito dos Direitos Humanos exige.
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O livro «As Pedras na Ciência e na Cultura» é uma «viagem» extraordinária pelo universo das rochas, de que a generalidade das pessoas tem um conhecimento superficial. Numa escrita primorosa, o rigor da informação e a objectividade são conseguidos com uma liberdade de exposição e uma «tonalidade» de escrita só ao alcance de quem possui uma vastidão de conhecimentos e uma capacidade de comunicação fantásticas, baseadas na paixão pelo saber e na vontade de o partilhar com o público.
Muito ganha o leitor ao iniciar esta «viagem». Porque pode seguir como quiser, do início ao fim, ou saltar pelos temas, voltar atrás, ou começar até do fim para o princípio, que não perde por isso. É como se navegasse num livro impresso tradicional, porquanto, cada tema ou capítulo é claro e atractivo em si mesmo e harmoniza-se com os restantes. Pode seguir ou «vaguear» por diversos «percursos», tamanha é a riqueza dos conteúdos, em termos científicos, mas também de cultura geral, onde cabem a explicitação dos étimos, a poesia, os adágios, o conto, a escultura, a arquitectura, a toponímia, ou a referência aos vultos que engrandece(ra)m a História do conhecimento geológico. Em qualquer caso, o leitor é transportado muito para além do estudo específico de minerais e rochas, como sejam as relações de uns e de outras com a economia dos povos e seus usos e costumes – a sua cultura, ou o modo como influencia(ra)m paisagens e seres vivos ao longo dos tempos.
Como se não bastasse, para entendimento do que é esta bola planetária em que nos cabe viver, há ainda a explicação alargada, em linguagem simples, dos impactos de corpos rochosos na Terra e das cicatrizes que deixaram nela, como que a transportar-nos para os limites do entendimento de quem somos no universo. Acresce, a cada passo, a revelação de curiosidades pertinentes que aumentam o prazer da leitura e a bagagem de conhecimentos.
Naturalmente, o livro também se presta valiosamente a visitas curtas ou consultas pontuais, em qualquer altura, aos seus diversíssimos temas ou a algum dos seus dois glossários finais.
Ao elucidar os fenómenos naturais (e artificiais) da origem e alteração de minerais e rochas, além de explicitar com clareza muitas das condições, das técnicas e das tecnologias com que o ser humano, desde as suas origens, procedeu à sua exploração e emprego, o livro «As Pedras na Ciência e na Cultura» poderia, resumidamente, classificar-se como uma obra de decifração (em linguagem acessível) do que as «pedras» são, da sua importância na litosfera (do grego lithos, rocha, e sphaira, esfera), das suas utilizações possíveis e da informação que nos podem fornecer. Como as «pedras» são o suporte em que a Natureza registou a sua História, não há como estudá-las para se entender o passado da Terra, imensamente anterior ao aparecimento da espécie humana, e conhecer os mecanismos geodinâmicos fundamentais, prevendo ou antecipando, de algum modo, os fenómenos geológicos que podem ocorrer no presente e no futuro, com implicações mais ou menos dramáticas no mundo vivo e nas realizações humanas. Esse estudo importa ainda como meio de alargar os conhecimentos que permitam explorar e transformar sustentavelmente os recursos minerais, assegurando a qualidade ambiental e o respeito pela importância dos geomonumentos.
É muito importante a divulgação e a compreensão, mesmo pelas pessoas comuns, dos mecanismos básicos e gerais da origem das diferentes rochas e das condições em que podem converter-se umas nas outras, ao longo do tempo geológico, num ciclo (petrogenético) não perceptível à escala temporal dos humanos, porque de uma dimensão muitíssimo mais longa. O Professor Galopim de Carvalho, no seu labor incansável e fecundo, fala-nos de tudo isso com a paixão serena de quem ama o que sabe e se dedica inexcedivelmente a divulgar o que estudou e aprendeu.
E fá-lo como poucos, contagiando com o seu entusiasmo os que tiveram o privilégio de terem sido seus alunos e muitos dos que leem o que escreve (em livros e revistas, em jornais, em blogues diversos ou nas redes sociais) ou ouvem as suas comunicações, sejam crianças de tenra idade, jovens ou adultos.
Por consequência, este livro nasceu com tanto empenho e generosidade, quanto o desejo de aumentar a literacia dos portugueses, numa área em que a preparação geral é tendencialmente fraca. Uma parte muito significativa do público-alvo são (ou deviam ser) os professores do 3º ciclo do ensino básico (7º - 9º anos de escolaridade) e do ensino secundário. Especialmente para esses, a obra surge plena de oportunidade. Da acção pedagógica dos professores depende a formação dos jovens, a qual, no que se refere à Geologia, e devido a factores vários, continua a revelar falhas comprometedoras e notória impreparação geral. Ora, nada melhor que (in)formação rigorosa e fundamentada, de preferência exposta com o dom da clareza, da elegância e da economia de palavras, numa escrita plena de harmonia nos termos e nos conceitos, no discurso, nas ideias e nos conhecimentos, que o saber e a arte do autor tornam próxima e convidativa. Livros assim são como que «acções de formação» (cómoda, fácil, agradável e proveitosa) sobre conteúdos relevantes prontos a assimilar e sempre disponíveis.
Mas o livro «As Pedras na Ciência e na Cultura» pode também ser muito útil no ensino universitário, sobretudo para os estudantes de ciências geológicas e áreas relacionadas dos primeiros anos, quer pelas falhas de preparação de anos anteriores, quer pela visão integrada e global da abordagem às «pedras» que proporciona.
Assim, ganham todos os leitores interessados numa cultura geral abrangente ou em conhecimentos específicos, desde o fabrico da cal e do cimento, às aplicações artesanais e industriais do barro, à elaboração da calçada portuguesa, à exploração de adubos, do gesso, do sal, do alumínio, do ferro, dos carvões ou das pedras preciosas, passando pela informação fornecida pelo estudo dos meteoritos, tudo isso e muito mais aqui harmoniosamente tratado pela pena do Professor Galopim de Carvalho. E de que ele nos fornece vastíssimos exemplos, por todo o território português ou em quaisquer locais do planeta - a “bola colorida” que é a nossa casa e onde temos que encontrar e gerir responsavelmente tudo o que precisamos para sobrevivermos enquanto espécie biológica.
Em boa hora este livro viu a luz do dia. Lê-lo é um prazer que faz crescer. É essa a sua função. Aproveitemos, em benefício próprio e em homenagem ao Bom Mestre e Homem Bom que o produziu.
Com admiração profunda e sentido agradecimento”.
José Batista d’Ascenção
Por António Barreto
A coligação de esquerda promovida pelo PS de António Costa e a criação do partido Chega de André Ventura são os dois acontecimentos singulares mais importantes para a remodelação do panorama político e partidário. Em conjunto, militam seriamente a favor do pesadelo político que, cada vez mais, se anuncia como inevitável: a separação do país ao meio, esquerda e direita, ou a criação de dois blocos compactos, o de esquerda e o de direita, ou ainda a divisão dos portugueses em dois grupos irreconciliáveis, o de esquerda e o de direita.
Há, todavia, uma diferença notável entre a criação do Chega e a coligação de esquerda. A primeira surge das margens e é uma mera borbulha, enquanto a segunda emana do centro do poder e é um gesto com peso e medida. De comum, têm o facto de tentarem promover a alteração da vida política e o de estarem na origem de percepções catastrofistas do futuro do país. Já se berra por aí “abaixo o fascismo” e “fora o comunismo”!
Há anos que estava nas cartas, mas que foi sempre sendo recusado. A tão desejada bipolarização, defendida por muita gente à esquerda e à direita, não era mais do que isso. Ou antes, era uma versão do que realmente se escondia, o receio do “bloco central”, considerado este como o alfobre da corrupção, o viveiro do compadrio e a incubadora da partidocracia. Nos seus tempos mais viçosos, a defesa da bipolarização utilizava argumentos tentadores. Esclarecia a vida política, dizia-se. Ficava a saber-se melhor quem era quem, julgava-se. Terminava com as meias medidas e os meios-tons. Afastava as águas mornas e pantanosas. Ajuizadamente, nunca se fez realmente. Nem nos tempos de Cavaco Silva ou de Sócrates. Mas quase se fez nos de Passos Coelho. E agora, mais do que nunca, está aí à porta.
A divisão do país entre esquerda e direita, nas actuais circunstâncias históricas, determinará uma fragmentação partidária muito mais acentuada, assim como a divisão entre o público e o privado e o fomento da luta das classes a graus desconhecidos há quarenta anos. A bipolarização não vai permitir mobilizar interesses e classes, recursos e criatividade suficientes para idealizar e concretizar o progresso do país nas próximas duas décadas. Depois da pandemia, cujos efeitos não são ainda totalmente previsíveis, mas que serão sempre piores do que se espera, vai ser necessário um enorme esforço de reorganização e de investimento. Assim como de protecção social. E também de paz social. Não de “união nacional”, mas de convergência maioritária coesa e programática. Ora, infelizmente, nada na actualidade parece apontar nesse sentido.
Os dois mais importantes partidos da democracia portuguesa, obviamente o PS e o PSD, preparam-se para um ciclo terrível de divisões internas. Um porque não tem poder, outro porque não o tem suficientemente. Um porque se quer chegar à direita, outro porque quer rumar à esquerda. Mas isso não é importante. O que realmente conta é a percepção generalizada de que nenhum dos dois poderá jamais voltar a ter uma maioria absoluta. Pode acontecer, mas é improvável. O essencial é que os seus eleitores e os seus militantes estão convencidos de que tal não é possível. Assim, as facções internas e os grupos habituais começaram a preparar uma batalha que se anuncia sangrenta e longa. Não necessariamente ou não apenas pelo poder dentro do partido. É muito mais do que isso e muito mais importante: o que está em causa é a união das esquerdas e a união das direitas, a formação de dois blocos irredutíveis, adversários e rivais. Inimigos, mesmo. Tanto à direita como à esquerda, há quem tal não queira. Mas são minorias quase insignificantes.
As divisões dentro dos dois grandes partidos vão ser perigosas. Não parece haver, em qualquer deles, personalidade, equipa ou doutrina à altura de forjar a unidade ou de federar tendências. Além disso, os objectivos de luta não são puramente internos. Dado que são externos e dizem respeito a toda a direita e a toda a esquerda, a luta será renhida e provavelmente acabará em mais um processo de fragmentação, como ainda não houve em Portugal, mas cujos riscos são cada vez maiores.
Perigo de fascismo? Ridículo. Ameaça de comunismo? Risível. Possibilidade de aventuras revolucionárias populistas de esquerda ou direita? Certamente. Mas só terão hipótese de concretização se os dois grandes partidos, PS e PSD, não forem capazes de suster a deriva populista e a fragmentação. O Chega, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista nunca governarão Portugal, mas, por causa deles, os dois partidos correm riscos de mutação, deslize, afundamento e descaracterização. É muito pouco provável que qualquer destes partidos tenha uma influência preponderante no governo do país. Mas têm seguramente enorme influência no pensamento e nas políticas do PS e do PSD, caso estes dois partidos não sejam capazes de resistir às suas tentações e aos seus próprios receios e não tenham força suficiente para se afirmar e defender as suas políticas. O Chega, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, tão diferentes nas suas histórias, tão distintos na sua organização e nas suas doutrinas, poderão ter, no futuro, se os deixarem, uma enorme capacidade de destruição dos dois grandes partidos da democracia portuguesa.
Infelizmente, estes dois grandes partidos não dão sinais de terem percebido o que está em causa, nem de se prepararem para evitar o declínio, a fragmentação e a divisão. No PS e no PSD, há “anjos” convencidos de que a melhor maneira de evitar o Chega, o PCP e o Bloco consiste em trazê-los para a democracia, na convicção de que mudarão. O mais provável, todavia, é que sejam os dois partidos a mudar e a aproximar-se mais dos projectos radicais.
Nenhum dos grandes problemas nacionais do presente se esgota ou resolve com uma política de esquerda ou de direita. O Serviço Nacional de Saúde, o investimento económico, a criação de emprego e a Protecção social não se compadecem com um governo de esquerda ou um governo de direita. Também a reforma da Justiça e a da Educação exigem muito mais do que isso, do que uma política sectária de esquerda ou de direita.
A divisão da política portuguesa em dois blocos de esquerda e direita é a destruição de qualquer hipótese sensata de social-democracia e de socialismo democrático ou de democracia social. E é uma diminuição das hipóteses e da riqueza da democracia liberal.
Público, 21.11.2020
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Por Joaquim Letria
Aqui há tempos, o deputado do Chega André Ventura quis fazer graça propondo a devolução da sua colega parlamentar do Livre Joacine Katar Moreira ao seu país africano de origem. Naturalmente que lhe caíram em cima acusando-o de racismo, xenofobia e populismo que são territórios que o antigo comentador de futebol da CMTV atravessa com grande à vontade na sua vida política.
Obviamente que aquilo não foi mais do que uma piada às exigências da senhora que gaguejou com veemência exigindo que Portugal devolvesse aos países africanos que colonizou os bens que de lá trouxe.
Porém, a verdade é que reclamações como as da Joacine e promessas de devoluções se tornaram habituais e actualmente podem ser encontradas nos meios de informação de todo o mundo. Recordo-me de quando ainda havia paz no Iraque e visitei um par de vezes aquele que foi o seu extenso e belo território de haver iraquianos que me diziam “vamos mostrar-lhe os sítios. As peças têm de as ir ver no British Museum". E era verdade…a começar em toda a Mesopotâmia e a acabar nos jardins suspensos da Babilónia.
Anos mais tarde a minha profissão levou-me a acompanhar a guerra e a ver o saque miserável do Museu de Bagdad, onde havia mais modelos e réplicas de gesso do que peças verdadeiras que foram roubadas pelos americanos quando derrubaram Saddam.
Também vi os restos da maravilha que era Palmira antes de ser destruída por aquela invenção terrorista dos americanos que ainda hoje se chama Daesh e que continua activo, designadamente no Norte de Moçambique e em quase toda a região de Cabo Delgado, que em 1975 percorri a pé, acompanhando o presidente Samora Machel na sua marcha de regresso.
As delícias do antigo Egipto e sua civilização também continuam hoje no British Museum de Londres que por essas e por outras bem merece, pelo menos, uma visita de três dias.
O engraçado é que muitos Estados africanos, muitos deles governados por corruptos, e outros atravessando cruéis guerras civis, começaram a querer as suas coisas de volta. Mas dos colonizadores, moita-carrasco à excepção da Holanda, cujos dois maiores museus, detentores de cerca de 100 mil peças, disseram que sim senhor mas reivindicando o usufruto, ou seja, isto é vosso, mas nós continuamos a mostrar as peças aqui. Um verdadeiro usufruto…
Será interessante ver como isto acaba, ainda que o desfecho não seja provavelmente para o nosso tempo. Para já, o Rijksmuseum e o Tropenmuseum de Amsterdam já declararam que apoiam esta proposta do Conselho de Cultura Nacional. Este sistema, a vigorar nos Países Baixos, poderá servir de exemplo para outros países europeus que mantêm entre as suas riquíssimas colecções objectos que há muitos anos vêm sendo reclamados pelos países de origem. A ver vamos…
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Por C. B. Esperança
Não foi a vitória de Biden que me empolgou, foi a derrota de Trump que encantou e me fez voltar a acreditar que os EUA são regeneráveis.
Por maiores defeitos que se tenham entranhado no tecido social de um país de injustiças sociais gritantes, o amor à liberdade e a coragem de jornalistas, capazes de pararem uma conferência convocada pelo PR, redimem. Quando Trump debitava mentiras, foram-lhe silenciados os microfones e os telespetadores prevenidos de que estava a “fazer falsas declarações”. Não foi a decisão de um jornalista suicida, na própria Casa Branca, foram três cadeias de televisão generalista, ABC, CBS e NBC. Isto é motivo de esperança.
É surpreendente que um país cuja independência foi proclamada por agnósticos maçons, fugidos das guerras religiosas da Europa, se tenha tornado feudo do fundamentalismo evangélico, e que um país, criado por imigrantes, atinja níveis de xenofobia intolerável.
Por ignorância e maldade, o isolacionista Trump, foi aliado objetivo de Erdogan, proto-califa promotor de secessões na Europa e na Rússia, acicatando o Islão contra a unidade da UE e a da Federação Russa, numa casual ou deliberada coincidência de objetivos.
Um governante não pode ser julgado só pelas guerras em que se envolve, mas pelas que provoca e consequências geopolíticas que gera. Sem visão, a política de Trump, dita de paz, foi prejudicial à escala global e funesta no Médio Oriente. O apoio à Arábia Saudita e os acordos contranatura que impôs a favor de Israel são mais rastilho de novas guerras do que acordos de paz.
Após a derrota nazi/fascista, a tragédia europeia consumou-se com a divisão em blocos, que alimentaram a guerra fria. A cómoda dependência da proteção militar americana e o alinhamento sistemático da política externa do Reino Unido com a dos EUA fizeram da Europa ocidental um protetorado dos EUA. Depois da tragédia do desmembramento da ex-Jugoslávia sucedeu a trágica divisão da Sérvia e, mais recente, a instrumentalização da Ucrânia contra a Federação Russa, ignorando que a Rússia, não a URSS, nasceu na catedral de Kiev, tal como a Sérvia tem raízes no Kosovo.
A Europa beneficiaria se não tivesse hostilizado a Rússia, que integra o mesmo espaço civilizacional. Tornou-se satélite dos EUA e a incubadora das bases militares da Nato para a cercar. Ficou sem préstimo relevante na geoestratégia mundial, apesar de ter um PIB e população superior aos EUA.
Trump quis dividir a UE, com Steve Bannon a promover o fascismo e os nacionalismos. A debilidade da Europa não começou com Trump, mas teve nele um forte entusiasta.
A UE deve continuar a aprofundar a integração económica, social e política, onde já deu relevantes passos após a pandemia, e criar uma autonomia diplomática e militar comum, construindo a cidadania europeia, que tanta agasta sectores de direita e de esquerda, que constitua uma vacina para os nacionalismos que a corroem e ameaçam.
Espera-se de Biden o fim da hostilidade à UE e apoio à extrema-direita, a reversão da saída do Acordo de Paris sobre o clima e o regresso ao acordo nuclear com o Irão, ao apoio à OMS e à ONU, assim como a revisão da política do Médio Oriente e do apoio incondicional a Netanyahu na Palestina.
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Por António Barreto
Nunca tal se viu! Um partido, com um só deputado, provoca verdadeiros terramotos na vida política nacional! Ocupa debates parlamentares e canais de televisão, artigos de jornal e comentários de rádio. A vida política e a imprensa ofereceram assim, gratuitamente, o maior investimento em comunicação a que jamais um partido poderia aspirar.
É verdade que se trata de um partido, ou antes, de um deputado com raras qualidades de demagogo e de oportunismo e que usa com mestria uma espécie de vacuidade de pensamento com garantidas consequências epidérmicas e temperamentais. Mas nada justifica tanto barulho. Nada, a não ser os defeitos dos democratas registados e dos políticos consagrados.
Muitos democratas, como alguns do PSD, receiam o Chega e pensam que aceitá-lo é a melhor maneira de o condicionar. Muitos democratas, como alguns do PS, temem-no e pensam que denunciá-lo com veemência, como se ele tivesse votos e exércitos, é suficiente para o limitar. As esquerdas, como algumas do PCP, do Bloco e até do PS, estão convencidas de que denunciar, segregar, banir e eventualmente proibir são as soluções para este problema. Todos, por junto e atacado, consideram o Chega “uma ameaça”. Fracas entidades que assim se sentem em perigo!
É curioso que a maior parte dos que precedem não perceberam que são exactamente esses tratos que permitem que o Chega cresça! Não fosse o acolhimento que os partidos estabelecidos lhe reservam e o Chega estaria hoje reduzido a um grupelho passageiro. Todos, mais ou menos democratas, de esquerda ou de direita, incapazes de ver os seus erros e os seus defeitos, não percebem que são eles próprios, em grande parte, a causa dos Chegas deste mundo. Se quiserem encontrar algumas das verdadeiras causas do Chega, procurem em São Bento.
Realmente, o Chega não é grande coisa. Nem política, nem esteticamente. Nem doutrinária, nem culturalmente. Procurem-se argumentos e reflexão, tente encontrar-se uma doutrina, experimente-se detectar elementos de identidade e de reconhecimento e rapidamente se perceberá o imenso vazio, a inconsequência confrangedora e o comportamento reduzido a tiques previsíveis e a reflexos próprios do grau zero do pensamento.
Então, o que faz com que o Chega exista? Nasce por defeito. Quem faz o Chega? Os defeitos dos outros e os seus próprios.
Os defeitos dos outros são os erros da democracia e dos democratas. O cosmopolitismo exacerbado pela globalização fragmenta os sistemas políticos nacionais. A perda de sentido de identidade desenraíza cidadãos. Para as democracias estabelecidas, especialmente europeias, é quase crime procurar o “seu país” ou a “sua comunidade”. O desprezo pela história transforma os cidadãos em apátridas. Os sistemas políticos desumanizados vivem de artifícios, de encenação e de propaganda que põem em causa qualquer forma de sinceridade. O amor pelo dinheiro e pelo êxito a qualquer preço, próprio da economia, contaminou a política. A desigualdade social e económica crescente é particularmente severa em tempos de crise. A corrupção e o nepotismo desnaturam a democracia. A insuportável arrogância de muitos democratas aliena cidadãos e eleitores. A intolerável superioridade intelectual de tantos políticos mete medo ao cidadão comum. O descontrolo dos movimentos de populações e a impotência política perante as migrações criaram sentimentos de insegurança difíceis de contrariar. O crescente desprezo pelo trabalho e pela dignidade do cidadão na sua comunidade e no seu país reforça o sentimento de alienação. Eis algumas das causas do Chega.
Os defeitos próprios são mais conhecidos. Os ambientes de crise da democracia, da economia ou da sociedade são particularmente propícios ao surgimento de reacções salvadoras e justicialistas. Do clima de incerteza nascem pulsões regeneradoras ou vingativas. A que não faltam preconceitos e erupções irracionais. O Chega comunga desses defeitos todos, sem ter a doutrina, a solidez e a consistência de outros movimentos e grupos afins, uns de esquerda outros de direita. O Chega quer o óbvio automático: arrasar os partidos, limpar o Estado e a Administração Pública, castigar os corruptos, sanear a justiça, dar novo orgulho à nação, demitir os políticos e dar voz ao verdadeiro povo. O Chega bate na tecla do nacionalismo, o mais velho reflexo condicionado para tempos de crise. O Chega procura, em certas formas de racismo e de machismo, os necessários sucedâneos do espírito e da doutrina. Do ponto de vista do pensamento e do programa, o Chega é filho de pais incógnitos.
Dito isto, o Chega tem todo o direito à existência e à sua actividade. Mais uma vez se repete: a democracia é o regime de todos, incluindo os não democratas e os anti-democratas. Erra quem quiser banir o Chega. A livre existência de partidos políticos e movimentos não pode ter barreiras, a não ser as da lei. Esta última só pode punir, castigar ou proibir comportamentos, actos e factos ilegais, ilícitos ou criminosos. Não pode sancionar ideias, palavras, expressões ou pensamentos. Como também erra quem quiser aliar-se ao Chega. Mas essa decisão é política e quem a tomar paga as consequências.
Como já se percebeu, socialistas e social-democratas renunciam às maiorias absolutas parlamentares de um só partido. Como fogem dos governos de “grande coligação”, procuram, cada um de seu lado, soluções para formar governo. Começam a ganhar consistência as soluções que sugerem a formação de um grande bloco da direita, incluindo o Chega e a IL, enquanto se forma um grande bloco das esquerdas, com o PS, o BE, o PCP, os Verdes, o PAN e não se sabe mais quem.
É o pior que se pode fazer! Não resolve o problema da eficácia do governo. Não dá soluções pragmáticas para a economia. Não encontra recursos para a protecção social. Reconhece a extrema-direita e a extrema-esquerda como forças integradoras da democracia, isto é, do governo. Em vez de evitar o crescimento de extremos não democráticas à direita e à esquerda, é-lhes dado alento para fazer parte dos governos. E o direito de trazer para a política nacional limites aos direitos dos cidadãos, assim como oposição à integração europeia e à política de alianças externas de Portugal.
Este é o problema. O Chega é um pretexto. Para a direita, uma tentativa de voltar a sonhar com o governo. Para a esquerda, é como quem se lava nas águas do Ganges, ou antes, do antifascismo.
Público, 14.11.2020
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Por Joaquim Letria
O Papa Francisco beatificou, no dia 10 de Outubro, um jovem de 15 anos que era um herói da Internet e das redes sociais. Daqui a algum tempo esse jovem poderá ser canonizado e transformar-se no primeiro santo da era digital.
Carlo Acutis, um jovem de 15 anos que morreu subitamente duma meningite fatal, usava calças de ganga, vestia fatos de treino, calçava ténis Nike, dançava e cantava, passava horas na Internet e adorava jogar Playstation. Carlo nascera em 1991 e cedo se serviu da internet para espalhar a Palavra e procurar dilatar a Fé, segundo diz a Santa Sé.
O Papa Francisco com esta sua escolha e gesto quer demonstrar que a santidade não existe circunscrita aos consagrados, padres, freiras, enclausurados. Chamar santo a alguém é reconhecer a sua bondade, predisposição para o bem e o seu modelo de vida como alguém em carne e osso.
Os santos de hoje riem, cantam, dançam, andam por aí normalmente, guiam carros ou andam de transportes públicos, comem, dormem, trabalham, são pais, mães, apaixonam-se, beijam quem amam e fazem amor. Afinal de contas, segundo Francisco ao beatificar Carlo, a santidade está ao alcance de todos, desde que lutem contra as forças do mal e resistam àquilo que nos divide, que nos separa e origina o que não é bom.
Depois disto tenho de reconhecer que no Facebook, no Instagram, no Google, no Twitter e nas outras redes sociais não há só aquelas almas penadas e maldosas de que tantos de nós fogem e evitam. E temos ainda que ficar preparados para ver num altar um santo de “jeans”, sapatos de ténis e fato de treino. A vida move-se com extrema rapidez. Não há a mínima dúvida…
Publicado no Minho Digital
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Por C. B. Esperança
A minha liberdade não acaba onde começa a arbitrariedade dos outros nem a dos outros termina onde começam as minhas idiossincrasias.
A liberdade de expressão tem de estar muito além do que cada um de nós deseja aceitar aos outros. Não faria qualquer sentido que pudéssemos impedir o que nos incomoda ou ofende e que a lei consagrasse o direito de não sermos irritados ou ofendidos.
Todos as correntes filosóficas, religiões, tradições e crenças podem, e devem, ser objeto de crítica, refutadas, aplaudidas ou troçadas. Quem conheça a evolução dos costumes sabe quão perigoso seria condescender com as tradições, crenças e hábitos que passaram de geração em geração.
Desde a antropofagia, escravatura, tribalismo e pedofilia, até ao advento da civilização, foi longo e penoso o caminho percorrido. A moral é a ciência dos costumes e podemos dizer que a moral da civilização é incomparavelmente superior à das tribos patriarcais.
Do criacionismo à ciência, há um longo caminho andado, com vítimas, cheias de razão, imoladas por algozes vazios de conhecimentos.
Urge distinguir o legítimo combate às crenças do inaceitável ataque aos crentes. Quem não distingue o combate de ideias do respeito obrigatório à pessoa humana, mingua-lhe o entendimento para compreender o que é a tolerância e a liberdade de expressão.
Em 13 de maio de 2008 a Igreja católica organizou a tradicional maratona pia a Fátima, designada por peregrinação, sob o lema “contra o ateísmo”. Embora pudesse evitar esse carácter belicista com uma designação mais suave, não lhe minguou legitimidade. O que não seria tolerável era uma ‘peregrinação’ contra os ateus.
No caso em referência, combatia-se através do terço, das velas, missas e procissões uma filosofia. Indefensável seria a perseguição aos ateus, coisa que as orações, aspersões de água benta, queima de incenso e sinais cabalísticos, aliviando a consciência dos crentes, não os lesou.
Há pessoas muito sensíveis e incapazes de fazerem a catarse da violência que herdaram. Não pode ser o Código Penal dos países civilizados a alimentar a capacidade de desforra e a satisfação do ódio à diferença.
As tradições, religiosas ou laicas, são o alfobre onde germina a identidade comunitarista e a fogueira onde se incineram as aspirações cosmopolitas e a convivência multicultural.
O Estado deve ser neutro para garantir o direito à diversidade e impedir a tribalização de minorias que se tornem violentas e perigosas para a civilização. Só existe democracia se forem assegurados os direitos das minorias e imposto o respeito destas.
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Por António Barreto
Com algumas notáveis excepções, como Tocqueville, Einstein, Kazan, Hitchcock ou Kissinger, os europeus nunca gostaram da América. Ainda menos dos americanos, que odeiam ou desprezam com a mesma intensidade.
Grande parte da direita europeia é ciumenta, não gosta da meritocracia, não preza a liberdade, não tem especial afecto pela tolerância nem pelo igualitarismo e despreza aquilo que considera ser a vulgaridade americana. Essa mesma direita acha que os americanos são boçais, dominadores e ignorantes. Ao lado dos americanos plebeus e sem maneiras, a direita europeia considera-se aristocrática. Democratas ou não, europeus de várias direitas como De Gaulle, Franco e Salazar, detestavam os americanos.
A maior parte da esquerda europeia detesta a América e os americanos. Estes seriam imperialistas, arrogantes, sem sofisticação cultural, barulhentos, racistas e violentos. A maior parte da esquerda europeia detesta o liberalismo em geral, o americano em particular. A esquerda europeia considera-se sofisticada e culta, despreza o que acredita ser a rudeza americana, condena a brutalidade dos americanos e critica asperamente a alegada inclinação para a violência e a pornografia de metade da América e o fanatismo religioso e ignorante de outra metade.
Direita e esquerda europeias não gostam do dinheiro, do liberalismo, da eficácia e do individualismo americanos. Esquerda e direita europeias detestam o facto de terem sido ajudados, defendidos e libertados pelos americanos nas duas grandes guerras. Esquerda e direita europeias adoram e cultivam, em segredo, quase tudo o que condenam publicamente nos americanos.
Ao afastar Donald Trump, líder popular e carismático, presidente dos EUA durante um período de excepcional crescimento da economia e do emprego (sem contar o ano da pandemia) e que conseguiu, na tentativa de reeleição, aumentar em sete milhões de votos os resultados de 2016, os eleitores americanos prestaram insigne serviço ao mundo e às liberdades, quem sabe se à paz. É verdade que sobram problemas enormes, para os Estados Unidos e o mundo, como seria de esperar. Mas o certo é que Trump era um claro obstáculo ao entendimento racional entre Estados e uma ameaça, que agora parece estar removida.
Trump é um desordeiro narcisista, mentiroso, sem escrúpulos, arrogante, machista, violento e paranóico! Certo. Mas metade dos cidadãos americanos votou nele uma vez e repetiu, com vantagem, quatro anos depois. E ninguém parece queixar-se de ter sido enganado. Entre muitos que votaram nele, contam-se milhões de mulheres, trabalhadores, agricultores, negros e hispânicos.
Não há diferenças absolutas entre os eleitorados de Biden e de Trump. Ou antes, há pequenas diferenças (idade, educação, residência, classe social, emprego, trabalho…), duas ou três mais significativas. A maioria dos “não brancos”, dos residentes nas grandes cidades e dos negros e latinos votou Biden. Nada absolutamente distinto, mas o suficiente para separar algumas áreas. Realmente distintos e definitivos são as preferências políticas. Dos que se consideram liberais, 90% votou Biden, só 10% Trump. Dos que se consideram conservadores, 85% votaram Trump e só 15% Biden. Quer isto dizer que a opinião política pesou mais do que as habituais categorias de classe, de idade, de sexo, de educação e outras.
A América pós Trump tem pelo menos tantos problemas quanto tinha antes. A América está, gradualmente, a deixar de mandar no mundo. Por razões internas e externas. Muitos americanos não querem isso. Desejam continuar a mandar, a ter uma voz especial e a ter mais peso do que qualquer outro país. E a verdade é que a América tem a força, o dinheiro, a ciência e a técnica suficientes para querer mandar no mundo e para não passar a ter uma posição subordinada ou igual aos outros. O que não quer dizer que os outros devam aceitar essa hegemonia.
Mandar no mundo tem vantagens. Em importância, respeito dos outros, bem-estar e lucros. É o que faz com que metade dos americanos queiram ter uma “América grande, outra vez” e não queiram perder tempo com o multilateralismo ou a ONU. Mandar no mundo, receber proveitos, ter interesses em todo o planeta e ser receado tem essas vantagens. Metade dos americanos não quer ceder! Trump é igual a metade da América, a esses americanos que querem mandar no mundo.
Nada de grande se faz sem grandes defeitos. Vale a pena recordar a escravatura, o massacre dos Índios, o banditismo e a violência armada que fazem parte da América? Será necessário recordar que o racismo, o machismo e a arrogância encontraram, na América, terrenos férteis? É tudo verdade, tal como o facto de a liberdade, a criação, o mérito, as letras, as artes, as ciências, os museus, as bibliotecas e as universidades terem ali terras acolhedoras e quase ilimitadas oportunidades. Como também é verdade que a justiça encontrou terra eleita, enquanto os grandes combates pela liberdade e pela dignidade das mulheres, das crianças, dos negros e das minorias ali tiveram alfobre e estufa!
O caos e os excessos desta eleição. A violência verbal inexcedível. As ameaças presentes na rua. A divisão radical da América. Os perigos das reacções dos derrotados e o vácuo doutrinário dos vencedores indiciam uma crise americana inédita. A ponto de nos interrogarmos com tristeza. Que é feito do pensamento liberal? Que aconteceu à liderança democrática do mundo? Onde está a tradição cultural do cinema americano, da grande literatura, da mais avançada ciência do mundo? Será que desaparece a capacidade de atrair gente de todo o planeta, emigrantes de todos os países, trabalhadores de todos os continentes? Que é feito da tradição americana de acolhimento de dezenas de milhões de imigrantes e refugiados do mundo inteiro?
Onde está a tradição dos limites ao poder? Das instituições fortes, independentes e autónomas. Do poder civil. Dos “checks and balances”… Temos todos os motivos para ficar inquietos. A América, cuja decadência se anuncia há décadas, cujo fim da hegemonia se prevê há cinquenta anos, continuará a ser militarmente poderosa, assim como cientifica e economicamente muito forte. Mas tem cada vez menos influência política. Este contraste entre o excesso de poder militar e a falta de influência política pode estar na origem de crises e desastres.
Para onde foi aquele orgulho na independência das instituições que parece estar ser substituído pela sede de conquista partidária? Onde está a terra de esperança que, durante décadas ou séculos, alimentou os sonhos de tantos povos? A América sempre esteve entre Deus e o Diabo. Sempre foi Deus e Diabo.
Público, 8.11.2020
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Por Joaquim Letria
Fui jornalista muitos anos em todos os meios de comunicação, em muitos sítios e países. E trabalhei muito e profundamente nessa profissão fascinante que é a de dar a conhecer aos outros o que acontece e aquilo que eles devem e precisam de saber.
O esforço era igual em todo o lado, naturalmente, mas paciente, interessado, minucioso, rigoroso e no nosso espírito com o interesse de quem vai ler, ouvir ou ver o nosso trabalho para saber o que se passa.
Não tinha muito que saber, acho eu. Era, no fundo, apurar o que tinha acontecido a quem, onde, quando, como e porquê. E naturalmente, sempre que possível – e era sempre possível – enriquecer estes elementos essenciais com pormenores complementares de interesse. As regras há séculos que estão estabelecidas, ser breve para não maçar, ser claro para que gostem e entendam e bem escrito, ou bem dito, para que não esqueçam.
Ainda há pouco tempo tive ocasião de recordar estes elementos a ler um experiente jornalista, António Luís Marinho, que citava regras de Victor Hugo a Pulitzer, passando por Thomas Jefferson e outros mestres.
Marinho escrevia o seu artigo acerca deste tema porque, queixava-se ele, sabia mais coisas e conhecia mais pormenores e notícias no programa humorístico “Isto é Gozar com quem trabalha”do que propriamente nos telejornais ou reportagens televisivas. E eu concordo. Fiquei a saber melhor o que disseram no Congresso do Chega pelo programa humorístico do Ricardo Araújo Pereira do que nas diferentes coberturas jornalísticas onde me procurei informar.
Ainda bem que há cómicos que nos dizem o que se passa, porque os repórteres de hoje em dia não têm tempo nem condições, e os chamados seus chefes jornalistas estão a tratar da vidinha na intrigalhada interna das estações e nas guerras das audiências.
Citação por citação, também vou fazer uma que era bom que quem brinca com as televisões se não esquecesse e a praticasse na sua simplicidade. O fundador da BBC e seu primeiro Director Geral, Sir John Reith, disse algo muito simples e nada difícil de cumprir, assim alguém o deseje. Definiu ele a televisão em geral, e a BBC em particular, como não apresentando dificuldades em se cumprirem os seus objectivos. “Uma TV é para informar, formar e entreter”.
Vejam só as dificuldades de quem trabalha nos audiovisuais…
Publicado no Minho Digital
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