30.11.22

Uma questão de tomates - *As anuais bicadas dos pardais

Por Antunes Ferreira

Dois quintais, duas hortas, duas plantações, uma inveja; tudo tomates. Estória danada esta de foro agrícola mas de dimensão caseira nada de explorações intensivas e extensivas, de tractores, de ceifeiras-debulhadoras, de regas artificiais, de hidropónica, de adubagem cientificamente apurada. Só tomates. Muito menos originaram desavenças nem chegaram a desacatos. A vias de facto – nem pensar!

 

Os campos da discórdia, dois modestos quintais cada um com pouco mais de setenta metros quadrados pertencentes a dois vizinhos moradores e proprietários de vivendas geminadas: a Maria Isabel do reformado da Carris, o viúvo Felisberto Caeiro e a empresária da restauração Isaura Moutinho, 49 anos, divorciada, que ainda rompia muita meia sola.

 

Davam-se bem. Por vezes encontravam-se nos respectivos lares para uns dedos de conversa, uns copos de Porto, umas coisas assim, tudo menos vale de lençóis, o Caeiro ia nos setentas, já dera o que tinha a dar. No entanto a Isaura albergava uma verdadeira cizânia no seu visitado coração (e no resto do corpo que continuava absolutamente firme e sensual, dentro do prazo de validade copidesco): os seus tomates, claro, os frutos. Porque os outros só os dos visitantes…

 

Qual o engulho? Mal começavam a avermelhar-se os corações-de-boi estavam condenados: vinham os pardais – e que pardais, aos bandos, em revoadas assustadoras criminosas – e ai dos tomates: eram impiedosamente bicados e murchavam. Se fosse um ano, ainda vá que não vá. Mas a maldita passarada tinha criado raízes; voltava todos os anos! 

 

Isaura não aproveitava um tomate dos dela que fosse; tinha de recorrer ao mercado para fazer umas saladas decentes, uns refogados (um dos seus amigos e clientes chamava-lhes estrugidos), uns molhos de fazer água na boca. Nos quatro restaurantes que possuía o drama tomatal era resolvido pelos cozinheiros donde ela ali podia sossegar. Mas se pensava no seu quintal, mau, mau, mau Maria.

 

Ao invés, nos setenta meros quadrados do Felisberto Caeiro os tomates, que ele também plantava, cresciam a olhos vistos, viçosos, mais vermelhos do que a camisolas do Glorioso (o velhote era sócio fundamentalista do clube no entender dele “o melhor do Mundo e arredores”) e quanto aos assassinos alados – nem uma bicada!

 

Estavam os preparos deste jeito quando após mais uma calamidade voadora, Isaura chegou-se ao muro que separava as duas propriedades e chamou o sôr Caeiro. “Meu querido amigo peço-lhe o subido obséquio de me dar uma informação…” Felisberto, com um sorriso amigável: “Ora essa. Venha ela.” Porque razão os seus tomates, os frutos, tá claro, não são bicados pelos pardais como acontece com os meus?”

 

Um vizinho não o é se não for capaz de acudir a uma fatalidade de outro (no caso, de outra) e logo esclareceu: “Dona Isaura, o truque é que eu logo na primeira plantação substituí os tomates verdadeiro por uns de chumbo pintados de vermelho iguaizinhos aos naturais. A pardalada chegou tentou picá-los, lixou os bicos – e nunca mais tentou o ataque!!!”

 

Isaura Moutinho rejubilou: “E onde posso arranjar esses miraculosos tomates de chumbo?” Solícito, o interlocutor: “À saída da vila há a drogaria do senhor Madueno, que já vai nos 76, se não me engano, que vende tudo; foi lá que comprei os ditosos tomates. A vizinha pode até, quando lá for, indicar o meu nome, andámos junto na escola.”

 

Drogaria Tem Tudo. Sentado atrás do balcão Madueno Barbosa lia o Almanaque Borda d’Água com os óculos encavalitados na ponta do nariz. “Muitos bons dias senhor Madueno.” Barbosa levanta-se com alguma dificuldade. “Bom dia, dona Isaura; o que a traz por cá?” Senhor Madueno tem tomates de chumbo?”  Madueno Barbosa responde sereno: “Não minha Senhora – é reumático…”

 

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26.11.22

Grande Angular - E tudo mudou…

Por António Barreto
De vez em quando, em cada dez anos, chegam números novos. São os resultados do Censo da População. Com imprecisão, muitos defeitos e ausências, falta de ilegais ou incapacidade de contar os emigrantes que regressam, os que se vão e os temporários. Na maior parte dos casos, as falhas são da vida, não dos técnicos. Sabe-se isso tudo. Mas é o melhor que temos. E o grau de aproximação da realidade é melhor do que muitos dizem.

 

É nesta altura que os governos, os partidos, os sindicatos, os comentadores e os académicos sacodem as cabeças, prepararam as gargantas e afiam os lápis. Quase a seguir, os cépticos vituperam. Os governantes gabam-se, denunciam os governos anteriores, fazem promessas demagógicas, anunciam que está em preparação mais um programa de reformas profundas, garantem que tudo o que correu bem é graças a eles e o que vai mal é por causa do inimigo, isto é, do governo anterior do outro partido. O trivial.

 

É triste e infeliz, mas é bom que assim seja. Ao menos, dá-nos um pouco de luz para olhar para a realidade. Ganhamos alguma certeza dos factos de que falamos todos os dias, geralmente sem dados, muitas vezes com palpites. As realidades estatísticas que começam com “consta”, “diz-se”, “parece” e “acho” são geralmente produto de miopia ou mentira deliberada. Com os Censos, aproximamo-nos da vida.

 

Olhando para o que temos diante de nós, já podemos ir tomando algumas notas. A população portuguesa está a diminuir. Eis o primeiro e mais importante facto. De igual ou parecido, só na década de 1960, quando se assistiu ao primeiro grande êxodo migratório. O Censo então realizado foi censurado até pelo Presidente da República de então (Américo Tomás), de tal maneira foi considerado atentatório da dignidade nacional. Um país como o nosso não podia admitir que a população emigrasse e diminuísse! Só se o seu povo fosse infeliz e não tivesse esperança nem oportunidades, o que estava fora de questão. Chegou a proibir-se a publicação integral dos resultados do Censo.

 

Voltando ao presente. O número de residentes (portugueses e estrangeiros legais) diminuiu de cerca de 220.000, passando a população total de 10.560.000 para 10.340.000. Isto, apesar do regresso muito importante de antigos emigrantes: cerca de 430.000 voltaram a Portugal nos últimos dez anos. A quebra de população fica a dever-se, como é natural, à baixa de natalidade e à emigração. Nem sequer a muito forte imigração de estrangeiros (quase 400.000 em dez anos) bastou para compensar as perdas demográficas.

 

A emigração para o estrangeiro continua em patamares muito elevados, a fazer pensar nos anos de 1960. Pior: o número de emigrantes por cada 1.000 habitantes é, na última década, superior ao registado na década de 1960. É talvez este o maior falhanço da economia, da sociedade, da política e das políticas públicas das últimas décadas.

 

De notar ainda o aumento da imigração. O número de imigrantes entrados por ano varia muito, conforme o ano, entre 15.000 e 70.000 nos últimos vinte anos. A parte da população estrangeira legal é um dos factos mais salientes. Os estrangeiros residentes e legais serão hoje cerca de 700.000, o número mais elevado da história. Estaremos perto do 7% do total da população residente, sem contar os ilegais (são muitos, mas ninguém sabe quantos…). Também não se incluiu a população de origem estrangeira naturalizada. Até porque já se trata de portugueses.

 

Entre os imigrantes por nacionalidade, vêm à cabeça os Brasileiros (200.000). Por continente de origem, o maior “stock” é o dos Europeus: são mais de 255.000. Contam-se os Ingleses (41.000), Romenos (30.000), Italianos (30.000), Ucranianos (28.000), Franceses (26.000), Espanhóis, (18.000), Moldavos (5.000) e outros. Africanos serão perto de 100.000, com Cabo Verde (35.000), Angola (25.000) e Guiné (20.000) nos principais lugares. Os Asiáticos serão igualmente cerca de 100.000. Os primeiros lugares pertencem à Índia (30.000), China (23.000) e Nepal (22.000).

 

Outra realidade notável, resultado da quebra de natalidade, da emigração e do aumento da esperança de vida, consiste no envelhecimento da população. Para muitos uma tragédia, para outros uma alegria. Vive-se mais, vive-se melhor. Há mais saúde. Há melhor alimentação e mais água potável. Há mais conforto. O problema é que, como se sabe, uma população envelhecida perde saúde, energia, inovação, esperança, ânimo, produção, criatividade, impostos e receitas. E gasta mais em saúde, segurança, pensões e apoios. A equação, nestes termos, é desastrosa. E exige uma economia mais saudável e pujante.

 

Convém também olhar para outros números, os da economia e do produto (PIB), dados que chegam da Comissão Europeia. Em poucas palavras, Portugal ocupava há vinte anos o 15º lugar na classificação dos países segundo o PIB por habitante (em poder de compra). Vinte anos depois, ocupa o 20º lugar. Quer dizer, está a perder em termos comparativos. Noutras palavras: em vinte anos, Portugal cresceu muito, desenvolveu-se e melhorou. Mas os outros também. Mas os outros ainda mais. Mas os outros mais depressa. E melhor.

 

O que há de muito curioso e motivo de reflexão (para compreender, estudar as causas e avaliar as consequências) é a conjugação de várias tendências bem expressas. E aparentemente contraditórias. A população diminui. A emigração para o estrangeiro aumenta. O regresso de emigrantes portugueses aumenta. A imigração de estrangeiros aumenta. Trata-se de mistura explosiva. Perde-se a ideia de uma política de migrações ou de uma linha de incentivos. Percebe-se que não existe uma visão ou uma ideia. O país e as autoridades olham para o que acontece e limitam-se a deixar acontecer. Os portugueses emigram à procura de melhores condições, mais oportunidades e melhores salários? Pois seja. A economia tem uma enorme falta de mão de obra? Venham os imigrantes. Há uma imensa procura ilegal de mão de obra clandestina? Deixe-se correr. Mantem-se e persiste a política e o modelo de salários baixos? É o possível. Aumenta o trabalho clandestino. Desenvolvem-se as redes de bandidos traficantes de mão de obra. Surgem cada vez mais os empregadores de imigrantes legais. Aumenta a população estrangeira residente não legalizada. Multiplicam-se os alojamentos miseráveis e clandestinos. Crescem as tensões entre comunidades nacionais e estrangeiras. Proliferam formas de marginalidade, da criminalidade à quase escravatura, passando pelo tráfico de droga e pela prostituição. Tudo isto perante a inexistência de uma qualquer vontade de controlar (o possível…) os movimentos migratórios. Deixar correr é sempre a pior das políticas.

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Público, 26.11.2022

 

 

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25.11.22

A TROPA

Por Joaquim Letria

Nasci e cresci no Alto de Campolide, numa confluência de quartéis que hoje já não existem. Eram Caçadores 5, Metralhadoras 1 e Artilharia 1 que, no tempo das golpadas da Primeira República, se opunham ao Quatro de Infantaria e ao Infantaria 16 de Campo de Ourique.

Naqueles tempos, ninguém roubava armas dos quarteis e as munições dos paióis caíam com abundância no jardim e quintal da casa onde nasci. Ainda me lembro de obuses por rebentar que o meu avô tornava inofensivos, fazendo com eles, em brilhante cobre, jarrões para flores ou bengaleiros para se guardar chapéus-de-chuva.

Recordo-me do aproveitamento que abertamente se fazia dos favores e privilégios dos oficiais. Tudo à vista de todos. Era a vida… os coronéis viviam em vivendas dentro dos quartéis, os impedidos iam às compras para as senhoras dos oficiais e iam esperar os meninos do comandante à escola, carregando-lhes as pastas de regresso a casa, enquanto os condutores levavam as senhoras ao cabeleireiro. Aquilo é que eram Exército e militares superiores!

O resto não existia, eram as praças a cheirar a cotim e botas cardadas, que se “faziam” às empregadas domésticas das redondezas e os sargentos carregados de sacrifícios para meterem os filhos a estudar. Era a prazenteira vida das “criadas e magalas” que o teatro levava em triunfo nas mais vistosas revistas do Coliseu e Parque Mayer, como no “fado do 31”.

Naqueles tempos os oficiais superiores andavam fardados, os de cavalaria montados em reluzentes botas altas com esporas. Não era como agora que não vemos militares de uniforme, não sei se por vergonha, mas a verdade é que não se vê uma farda número um. E quando vemos os generais a assistir a um desfile ou numa reunião com o Governo, parecem mais bombeiros voluntários da Arrentela ou flautistas da Timbre Seixalense do que garbosos generais do  Estado Maior das Forças Armadas de um  país fundador da NATO.

Os brilhantes carros pretos eram guiados por condutores que cumpriam o serviço militar obrigatório. Tinham as matrículas MX ou ME, ministérios da Guerra ou do Exército, que não enganavam ninguém quando esperavam as senhoras à porta do Grandella, ou levavam os meninos ao liceu. E assim viveram felizes até ao eclodir da guerra colonial…

O meu pai nasceu na Porcalhota, que hoje se chama Amadora, porque o meu avô mandou a família para o campo, para a lhe poupar  os  sobressaltos dos golpes de Estado e não levar com os estilhaços duma  granada que sobrevoasse Campo de Ourique para aterrar em  Campolide, ou duma morteirada de Cavalaria 7. Ficaram todos ilesos para eu vir a nascer mais tarde, em plena II Guerra Mundial...

Nenhuma situação deixava prever o roubo de armas de guerra do exército, ou pistolas dos cívicos da Polícia de Segurança Pública daquela época. Havia sentinelas nas guaritas que se ouviam pelas noites dentro:” sentinela alerta!”,”alerta está!”,”passe palavra”…

Afinal de contas, mandavam-nos matar-se uns aos outros mas tinham muita graça.

Publicado no Minho Digital

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24.11.22

As cidades são como as pessoas

 Por C. B. Esperança

As cidades são como as pessoas, com identidade própria, feições definidas, dimensões adequadas e sinais particulares. A nossa cidade, a cidade de cada um de nós, habita o imaginário que se cola à memória e nos acompanha nas ausências. É difícil viver sem ela ou, pior, viver nela assistindo à erosão da sua fisionomia.

Envelhecemos com a cor desbotada dos prédios, com as ruínas que avançam, quarteirão após quarteirão, com as pequenas casas que ruem para dar lugar a prédios de muitos andares, sem vizinhos, meros anónimos separados por cimento armado na geometria vazia de afetos.

Há nas cidades a progressiva perda de identidade que as grandes superfícies, primeiro, e a crise, depois, vieram avivar. Num dia encerra a livraria cujo livreiro conhecia o nosso nome e gostos; no outro, o restaurante do bairro onde, à chegada, o empregado gritava o nome do nosso prato favorito; antes fechara a mercearia e, logo a seguir, a retrosaria, para remodelação, com a certeza de que não reabrirá. 

O betão invadiu os espaços onde os garotos jogavam à bola e o das hortas abandonadas onde a vegetação selvagem brotou antes do ronco das máquinas que o terraplanaram.  

A barbearia encerrou quando a idade e o reumático afastaram o barbeiro. A loja de ferragens, onde os empregados decifravam as necessidades dos clientes e vendiam de tudo, exibe o letreiro numa casa com a pintura a desfazer-se e o telhado a apodrecer.

A loja de hortaliças e fruta, da rua seguinte, surge fechada, e, no passeio, sente-se a falta da banca onde os legumes mostravam frescura e os frutos as cores. Do dono, atencioso e simpático, consta que se lhe formou a filha e regressou à terra de origem. Trespassa-se.

Todos os dias, a nossa cidade vai morrendo com cada pequeno negócio que lhe moldava a identidade. Com ela, sinto que também eu vou desaparecendo por entre espaços dantes cheios de vida e agora mausoléus da memória.

O aldeão que ainda vive dentro de mim, sabe que o rio da sua aldeia secou, que os fogos lhe destruíram a paisagem, os arbustos tomaram conta das hortas, para arderem de novo no ano seguinte e tornarem irreconhecíveis os sítios onde foi menino. Talvez por isso se resignou à cidade que lhe têm roubando e agora descaracterizam, com árvores que viu crescer a serem cortadas com a fúria de um edil arboricida que pretende deixar o nome ligado a um autocarro a que chama “metro de superfície”, como se os carris imaginários tivessem de sacrificar as árvores. 

Por cada árvore que se corta é o ar que fica mais irrespirável e por cada família roubada à rotina da vida há o espaço abandonado aos acasos da marginalidade e a ruga que rasga a face da cidade que era nossa.

É a vida.

Coimbra, 22 de novembro de 2022

Ponte EuropaSorumbático

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23.11.22

É mesmo muito velho - *Deixai vir a mim as crianças

Por Antunes Ferreira

Cinco. Quatro miúdos e uma menina: os meus netos. Por ordem de idades e de progenitores – o João e o Rodrigo (do meu primogénito Miguel), o Xavier, o Vicente e a Madalena (do segundo, o Paulo); o caçula Luís Carlos ainda que bem casado, tal como os irmãos, não tinha filhos. Opção dele e da esposa Estela.

 

Aproximava-se o Natal, estávamos nos princípios de Dezembro de 2006, eu já completara os 61 e com a  “escadinha” da malta miúda ia dos nove aos quatro anos; acabara de ver (diga-se de passagem fartíssimo mas netos são netos) o vídeo do Rei Leão perante o qual  opiniões se dividiam mas pendiam um pouquinho para o Hakuna Matata, quando nos sentámos na sal de estar para democraticamente trocarmos uma outra vez ideias sobre o filme do Walt Disney.

 

Os pais das criaturas estavam nos respectivos empregos e os avós tentavam domesticar o bando – o que aliás não era tarefa difícil pois era pessoal na generalidade e na especialidade (para usar linguagem parlamentar)  bastante bem comportado. Era o meu dia de folga no DN e por isso tinha todo-o-tempo-do-Mundo para me dedicar à prole; e além disso adorava fazê-lo.

Chegara a hora do lanche e todos fomos para a mesa. Como d costume a Raquel tinha preparado um “banquete” próprio para infantes, No meio de sanduiches, leite com chocolate, pãezinhos, bolachas, limonadas, etc., tocaram à porta. “É do jornal… Mas está lá o Fernando Pires…Só se foi uma bronca no Internacional (era o meu violino de Ingres)…” 

 

Não eraO padre Alberto Neto em pessoa, coadjutor do prior Felicidade Alves, ambos de costas viradas para o “Estado Novo”. Falara para o jornal e sabendo que eu estava em casa vinha falar connosco – a Raquel também gostava e muito de politica internacional – sobre um incidente que parecia grave junto ao   CheckpoinCharlie,  um posto militar entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental durante a Guerra Fria, onde, de resto, eu e a Raquel já estivéramos aquando duma visita oficicial à então RDA.

 

Mas, perante a festarola para os meus netos ~e porque o “barulho” Intra alemão parecia não ter dado nada – Neto ficaria um pouco mais para também participar na confraternização espontânea porque sem motivo aparente; festa é festa. A dada altura não se conteve e perguntou-lhes se sabiam o que pensava Jesus sobre as crianças .O João tinha uma vaga ideia; e o sacerdote citou de memória:

“(….)levaram crianças para que Jesus tocasse nelas. Mas os discípulos repreenderam-nos. Vendo isso, Jesus entristeceu-se e disse: “Deixem as crianças virem a mim. Não as proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. Eu vos garanto: quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele. Então, Jesus abraçou as crianças e abençoou-as, pondo a mão sobre elas”. Meus amigos isto consta do Evangelho de São Mateus. Momentos depois o padre foi-se embora.

 

Terminado o lanche fomos sentar-nos n sala e antes que ocorresse a reprise do malfadado vídeo, lembrei-me de lhes perguntar, para desanuviar o ambiente um tanto carregado pela ausência leonina: “Por certo vocês não sabem mas vou contar-lhes umas coisas antigas que eu mesmo vivi. Por exemplo ainda andei m eléctricos abertos aos lados.” “Como assim, avô?” “Não tinham paredes laterais e sim banco corridos; entrava-se, sentava-se e vinha o cobrador vender os respectivos bilhetes.”

 

“Contaram-me uma anedota que vos digo agora: uma senhora bem vestida com chapéu de plumas ao entrar tropeçou e caiu no col dum magala (era assim que então se chamava aos soldados); protestou energicamente e o magala retorquiu: «Por dois tostões (era o preço do bilhete) se calhar queria cair no colo dum general…»

 

Gargalhadas em catadupa, mas prossegui: “Igualmente usei aqueles telefones de parede  em que era preciso dar à manivela que tinham ouvir por um auscultador preso por um fio ao aparelho e pedir à menina telefonista na central para ligar para outra cidade ou para o estrangeiro. Uma vez esperei duas horas para conseguir falar com um amigo em… Sintra!”

 

Olhos esbugalhados, bocas abertas, interrogações aos quilates. “Os automóveis não tinham cintos de segurança. Andei no Morris Minor do meu Pai, no Austin Super, no Triumph Spitfire do irmão do meu tio Jacinto e nenhum tinha cintos de segurança!”

 

E logo do fundo do sofá grande onde estavam os cinco sentados, o Vicente, cinco anos: “O avô é mesmo muito velho!” Tinham-se acabado as recordações.

      

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19.11.22

Grande Angular - O pecado da complacência

Por António Barreto


O maior inimigo da tolerância é a complacência. Admitir o inadmissível, desculpar o indesculpável. Arranjar sempre uma justificação para o que a não tem. Perdoar por causa das origens sociais, da etnia, da idade, do género ou do partido. Não ver a realidade por causa do alegado interesse nacional. Esquecer por sentimento de culpa. Confundir a bondade com a passividade. À covardia, chamar coragem. Admitir que o interesse e o poder justificam e desculpam tudo. E deixar que a permissividade se transforme em cumplicidade.

 

Até quando nos deixaremos inexoravelmente tentar e convencer pelos piores males do mundo, na esperança de disso retirarmos prazer e vantagens, ou de por essa via sermos capazes de conquistar os bárbaros deste planeta para os benefícios da civilização? Até quando seremos cegos e surdos e não percebemos que ceder aos antidemocratas, aos assassinos, aos terroristas, aos intolerantes e aos traficantes não é meio caminho andado para a sua conversão, mas sim meio caminho para a nossa abdicação e a nossa capitulação?

 

Até quando poderemos pensar que uma aliança política com um partido de extrema-direita não democrático ou antidemocrático permitirá que esse partido se aproxime gradual ou rapidamente da democracia e que essa será a melhor maneira de evitar derivas populistas? Até onde se poderá pensar que uma aliança política de partidos democráticos com partidos de extrema-esquerda não democráticos fará com que se assegure a estabilidade e levará esses partidos a converter-se à democracia e a deixar-se convencer pelas bondades deste regime? Até quando se poderá permitir que se encarem ou façam alianças com o diabo, na esperança de o convencer a renunciar à sua vocação e de o seduzir pela superioridade da virtude?

 

Até quando seremos tolerantes, bondosos e complacentes para com os criminosos, bandidos, terroristas e fanáticos, desde que sejam de outras etnias, de outras crenças, de outra cor, de outra religião e de outra condição económica? Até onde seremos capazes de desculpar o crime de roubo, o tráfico de mulheres, o contrabando de armas, a violência doméstica, o assédio sexual e até o assassinato, desde que os perpetradores sejam pobres, imigrantes, desempregados, drogados ou refugiados? Até quando estaremos sempre prontos a tolerar os muito ricos, permitindo que eles comprem a sua inocência, paguem pela sua paz, cobrem pela sua honestidade, bloqueiem a justiça, influenciem partidos políticos e subornem a Administração Pública?

 

Até quando estaremos dispostos a tolerar e fechar os olhos aos comportamentos aberrantes e selvagens por parte daqueles que conseguem invocar a história e o facto de serem sucessores dos descendentes das antigas vítimas, de serem filhos de escravos, netos de colonizados, bisnetos de prisioneiros e tetranetos de conquistados? Até quando aceitaremos fechar os olhos à opressão das mulheres, à violência exercida sobre crianças, às liturgias de amputação, aos rituais de mutilação, à aplicação das penas de Talião e à tortura imposta aos humanos, desde que os seus autores sejam de outras religiões, de antigos povos colonizados, escravizados, racializados, dominados ou conquistados?

 

Até quando deixaremos de ser tolerantes com os ricos, os muito ricos, os produtores de petróleo ou gás, os senhores da banca e das finanças, os proprietários de matérias-primas, os governantes de nações onde o salário miserável é a regra, os ditadores de países que não reconhecem as regras do direito, muito menos os direitos humanos? Até onde poderemos colaborar com os facínoras deste mundo com um sorriso na cara e os braços abertos fingindo ignorar o que nos deveria separar? Até quando não seremos capazes de traçar uma fronteira nítida e rígida entre as necessidades realistas de coexistência Internacional e a colaboração cordial e amistosa? Os salários e o mercado chineses são suficientes para esquecer? O petróleo árabe basta para fechar os olhos? O gás russo chega para olhar para o lado? O dinheiro de qualquer origem é suficiente para comprar a nossa moral, a nossa honra, as nossas crenças e os nossos valores? A glória do futebol permite tudo?

 

Até onde deixaremos que a “ética republicana” se tenha transformado num manual de emprego privilegiado, num salmo para ajuste directo, numa regra para encomendas familiares e um tratado de recrutamento preferencial? Até quando deixaremos passar, sem pena nem condenação, as novas regras de comportamento político que perdoam a corrupção, aceitam o nepotismo, permitem o lenocínio, estimulam o compadrio e sustentam o favoritismo, desde que entre gente e famílias do mesmo partido e entre vencedores de eleições? Até quando estaremos dispostos a aceitar que a justiça atrase, adie, esqueça ou feche os olhos aos crimes e tráfico de influências no quadro das regras informais da democracia?

 

Até quando aceitaremos que os costumes do futebol e do dinheiro dominem os códigos jurídicos, as regras éticas e os costumes civilizados, a ponto de ser oficial e admitido que ambos, dinheiro e futebol, se regem pelas suas próprias leis, têm os seus usos e criam uma espécie de soberania que submete a civilização e o direito? Até onde nos dispomos a tolerar, admirar, copiar e respeitar as regras que impõem, no meio do futebol, os regimes alimentares e de bebidas, o modo de vestir, o aviltamento das mulheres e a violência sobre humanos, em favor do reconhecimento de ditaduras brutais e da mercantilização do desporto e dos desportistas? Até onde estaremos prontos a deixar que o dinheiro, a falsa crença religiosa, o petróleo, o investimento financeiro e a capacidade de corrupção sejam suficientes para estabelecer e normalizar as mais selvagens ditaduras que se possa imaginar?

 

Até quando continuaremos a tudo tolerar a quem tenha dinheiro e petróleo, armas e mercado, fábricas e salários baixos?  E tudo desculpar a quem atribua os seus crimes à pobreza, ao desemprego, às origens sociais, à escravatura e ao colonialismo? E tudo permitir a quem favoreça o partido, a seita, a família e a congregação? E a deixar que seja possível invadir escolas, ocupar universidades, conquistar ruas e impedir outros de trabalhar, desde que se escolham bem os argumentos, como o clima e a ecologia?

 

A abdicação e a complacência são o início da barbárie. 

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Público, 19.11.2022

 

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18.11.22

As fofas prisões dos sofás

Por Joaquim Letria

O que acontece num sofá não tem paralelo.

Verdade que se pode igualmente fazer noutro sítio mas não é a mesma coisa do que fazê-lo num sofá.

Pode-se amar, comer, dormir, ler jornais, reler livros, perder o slip, a virgindade ou a paciência, pensarmos que o mundo está louco, irmos à guerra, ouvirmos os marginais, visitarmos os bairros de lata, escutarmos o Presidente a falar só connosco, ganharmos o totoloto, acharmos que a vida está cada vez pior, pensarmos que temos muita sorte de vivermos aqui.

Tudo se encontra e se pode fazer num sofá. O problema é livrar-nos da sua dependência. Nada se perde num sofá. O problema é livrar-nos da sua dependência, a dificuldade reside na dificuldade que reside na capacidade necessária para deixar de ver, ou passar a ignorar, as coisas e loisas mais raras da realidade que escolhem e insistem em nos oferecer, de diversos ângulos e em câmara lenta, de modo a ficarmos só com a realidade alternativa  e virtual, que nos resta e, essencialmente, nos interessa.

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17.11.22

EUA, Donald Trump e o estado do Mundo

Por C. B. Esperança

Há dois anos o aldrabão contumaz pode ter sido removido definitivamente, até pela sua idade, mas o Trumpismo mantem-se vivo na América, e alastra no Mundo com matizes locais, sendo o mais tosco avatar Jair Bolsonaro, o mais aristocrático Boris Jonhson, e com diversas nuances os da Hungria, Polónia, Sérvia e muitos outros países.

O Trumpismo não é uma ideologia, é um estado de espírito que agrega o negacionismo dos factos, vacinas, resultados eleitorais, direitos individuais, civilização e ciência, com um narcisismo que funde nacionalismo, religião, tradições e violência. 

Derrotado em 2020, com mais 7 milhões de votos do que aqueles com que venceu as eleições em 2016, Trump é a prova insofismável de que os EUA estão doentes, talvez a prenunciar o fim da hegemonia global, com o Planeta a não suportar durante muito mais tempo tantos atropelos contra as florestas, a biodiversidade e o clima, com a população a ultrapassar os 8 mil milhões de habitantes para os quais minguam a água, o oxigénio, os alimentos e a esperança de futuro.

A recandidatura de Trump, anunciada após a recente derrota pessoal contra o partido Democrata, cuja política externa é igualmente oriunda dos interesses do complexo militar industrial dos EUA, terá resistências no seu partido, mas a ideologia, ou a sua ausência, é já o paradigma da direita radicalizada, nos EUA e no Mundo.

A queda acidental de um míssil na Polónia, que a Nato e o PR polaco já atribuíram ao “fogo amigo”, um acidente oriundo de Kiev e não de Moscovo, como desejavam todos os belicistas, ansiosos pela guerra que pode exterminar a Humanidade, revela a insânia dos povos que interiorizaram o ódio, a violência e o espírito de vingança.

As numerosas guerras em curso, os milhões de refugiados em todos os continentes, os mortos, estropiados e famintos, os terramotos, inundações, secas, incêndios e outras catástrofes, com cada vez maior intensidade, frequência e duração, parecem não servir de alerta a quem detém o poder para a tragédia que atingirá os nossos filhos e netos.

Quando se negam as evidências e se vive, numa pequena parte do Mundo, como se não houvesse deveres para com os países pobres, os pobres dos países ricos e as crianças de todos os continentes, é o suicídio coletivo que se procura, ignorando apelos lancinantes do secretário-geral da ONU, do Papa e de outros humanistas, os avisos dos cientistas e os sinais da crescente aproximação do abismo.

A América racista, xenófoba, isolacionista e patriarcal, versão grotesca do mundo do Antigo Testamento, encontrou no robô que soube fugir aos impostos e ganhar dinheiro, o seu modelo. A América sofisticada, culta e cosmopolita é cada vez menor, e o resto do Mundo, talvez por mimetismo, é cada vez mais parecido.

E não há um sobressalto universal contra as guerras, as armas, os ataques aos Direitos Humanos, as desigualdades e os nacionalismos agressivos! 

A primeira geração suicida, a nossa, pode ser a última. A liberdade já está encarcerada.

Ponte Europa / Sorumbático

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16.11.22

No "Correio de Lagos" de Out 22

 

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12.11.22

Grande Angular - Requiem para a cidade de Lisboa

 Por António Barreto

Foi esta semana anunciada a decisão de transformar o edifício da Caixa Geral de Depósitos em sede do governo. Era para ser apenas uma parte, sabe-se agora que será por inteiro. As mudanças já começaram. Parece que dentro de quatro anos a operação estará terminada. É possível que a maior parte do governo e dos ministérios se localize ali, naquele que a opinião designou, há anos, por Palácio Ceausescu, versão reduzida de um dos mais horrorosos edifícios de toda a Europa!

 

Será então a altura para prestar atenção, comparar e reflectir. À Lisboa do Governo do Terreiro do Paço e da Praça do Comércio, do Cais das Colunas e da Ribeira das Naus, sucede a Lisboa do Governo da Caixa e da arquitectura vulgar e pseudo… Pseudo monumental, pseudo pós-moderna, pseudo funcional e pseudo ousada! 

 

Entre as duas cidades, houve hesitação. Durante dois séculos, o coração e o poder balanceavam entre as Necessidades, a Ajuda e Belém. Os Ministérios foram dispersos. Parecia desenhar-se São Bento como lugar de referência, primeiro por causa de Salazar e da sua residência, depois por causa dos deputados e seu Parlamento. Mas nunca foram suficientes para organizar a cidade e seus poderes. O retrato agora é simples: da Lisboa do Terreiro do Paço para a Lisboa da Caixa.

 

A serena majestade do Terreiro do Paço, o apuramento de linhas dos edifícios, o equilíbrio das arcadas e das janelas, a abertura para o rio, o comovedor Cais das Colunas, a calma do tablado central, a nascença das ruas pombalinas, a vista para algumas colinas, a visão do Castelo São Jorge e um sentimento de grandeza recatada serão substituídos pela medonha arquitectura pagode da burocracia. Aliás, a evolução desenhava-se. Na Praça do Comércio, a que outros também chamam a Praça do Cavalo Negro, vem crescendo a cidade do burburinho pechisbeque, feita de hamburgers e tuk-tuk, hotéis atrevidos e restaurantes pretensiosos, à procura dos turistas da cerveja e da bola.

 

Apesar das chamadas de atenção e mau grado os programas eleitorais, a cidade prossegue o seu declínio. Ou antes, a sua metamorfose, a transformação numa cidade desinteressante, difícil, incaracterística, suja, barulhenta e desconfortável.

 

A cidade é seguramente uma das mais belas do mundo. A sua disposição, a sua geografia e a sua orografia fazem dela uma raridade. Vista da Outra Banda, do Cristo Rei, das pontes, do Tejo, do Parque de Monsanto ou de qualquer outro local que permita uma panorâmica, a cidade exibe-se esplendorosamente. A Lisboa de Carlos do Carmo, de Ary dos Santos e seus amigos é inesquecível, emparceira com as mais bonitas do mundo. 

 

O problema é Lisboa por dentro, Lisboa por perto, às voltas em Lisboa, Lisboa de todos os dias, Lisboa das ruas e do comércio, Lisboa do trabalho e do passeio, Lisboa do património e da vida.

 

A Lisboa histórica está a desaparecer. É natural. Nada é eterno. Mas o que muda, para diferente, pode ser para pior ou melhor. Com cuidado, o que se transforma pode incluir o que de melhor tem e trazer o que de melhor se pode ter. Com Lisboa, pode simplesmente tratar-se do pior dos mundos. Desaparece o melhor, a história, a beleza, a identidade… E aparece o pior, a uniformidade, o excêntrico, a insegurança, o banal, a vulgaridade com ar de contemporâneo, a infâmia inestética e parola. Para além do que desaparece, e mal, e do que aparece, pior ainda, há o que fica, o que se mantém e agrava. Este é o pior capítulo.

 

Assistimos a um verdadeiro assassinato da cidade de Lisboa, mais propriamente da Baixa de Lisboa, da Lisboa histórica, da Lisboa da tradição. Morrem as melhores Lisboa. A Baixa Pombalina, um prodígio urbano em vias de demolição. A Lisboa mourisca, quase única na Europa, em vias de destruição. A Lisboa burguesa dos séculos XIX e XX, com irrepetível personalidade. A Lisboa dos monumentos, dos Palácios, das quintas nobres e das quintinhas e dos retiros. A Lisboa do rio e das colinas. 

 

Prossegue o despovoamento do centro, da Baixa e dos bairros históricos. Multiplicam-se os hotéis e escritórios de aparente luxo, para reciclar capitais sorrateiros e Vistos Gold. Nas ruas, alastra o turismo nómada do souvenir e da placa magnética para colar no frigorifico. Nas ruas pombalinas e no Rossio, ainda se poderia ouvir grito desesperado “Acudam, que matam Lisboa!”, mas já é tarde. As ruas da Baixa estão inundadas de lojas de mau gosto, com grafiti e souvenirs plásticos, portas e janelas tapadas com tijolos para proteger dos sem abrigo, da droga e dos ratos. Multiplicam-se as lojas que nunca se perceberá o negócio que fazem, dado que os recuerdos não chegam para pagar a luz, quanto mais as rendas de milhares de euros. Crescem os comércios que negoceiam residências falsas e contratos fictícios para imigrantes ilegais. Há lojas de fachada e de droga. Há lojas de residência e de contrato. Há lojas de conveniência e de contrabando. Há lojas de tatuagem e casas de passe. Há negócios escuros para pagar rendas milionárias com que nenhum comércio legítimo será capaz de competir.

 

Como se fosse pouco, há a sujidade tradicional, aumentada pelo turismo, pela indiferença, pela megalomania dos planos integrados incapazes de arrumar e calcetar. Buracos voltaram a aparecer. Nas ruas e nos passeios, trotinetas e bicicletas são ameaças para os velhos, os deficientes, as crianças e os doentes. Não é seguramente o vereador X ou o presidente Y nem sequer o partido Z… São vários em sucessivos anos que deixaram Lisboa morrer e definhar. Regressaram os pedintes. Voltaram os esfomeados. Cresceram os sem abrigo. Estão por ali novamente falsas mães com crianças de empréstimo para pedir esmola. Sobram os receptadores de telemóveis, carteiras, iPad, computadores e equipamentos dos automóveis. Esgueiram-se por todo o lado os carteiristas da Carris. Pululam os indocumentados, os imigrantes ilegais e os candidatos a refugiados. A Baixa divide-se por grupos étnicos, por ramos de negócio ilegal, por sectores de actividades nocturnas e por artigos de contrabando.

 

Todos os dias a Câmara, as autoridades e o Governo têm invenções. Vias para bicicletas, centros de negócios, congressos de web, passes gratuitos, é só pensar. Mas o mais simples, lavar e limpar, remendar e tapar buracos, pintar e restaurar, alojar e legalizar, fica para trás. À espera de negócios obscuros e de demolição, casas devolutas e palacetes arruinados morrem devagar, até que a grua e o caterpílar ponham termo à cidade. Lisboa necessita de habitantes, moradores, estudantes residentes, lojas decentes, limpeza e cuidado, não necessita de start-ups chiques.

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Público, 12.11.2022

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10.11.22

O Vaticano, o catolicismo e a concorrência

 Por C. B. Esperança

O Vaticano é uma herança do fascismo, nascido nos acordos de Latrão e marcado pela herança conservadora que, quase sempre, o ligou às monarquias absolutas e ditaduras de direita, de que muitas vezes foi sustentáculo e, nas atrocidades, cúmplice silencioso.

Os escândalos sexuais dos clérigos romanos, várias vezes empolados pela comunicação social e por rivalidades religiosas ou animosidade de livres-pensadores, ajudaram ao descrédito do catolicismo. Também a lavagem de dinheiro no banco do Vaticano (IOR) e a opacidade das contas da Igreja católica, nos países onde consegue furtar-se à apresentação de qualquer contabilidade minimamente transparente, contribuem para a imagem negativa, mas é a crescente secularização da Europa que mais aflige os Papas.

A ligação de João Paulo II a Reagan foi decisiva para a implosão do comunismo, mas a proteção a Pinochet e a cumplicidade com as ditaduras católicas sul-americanas não o fizeram arauto da liberdade nem o deixaram capitalizar a herança católica dos criadores da U. E. – Schuman, Adenauer e De Gasperi –, tendo ajudado à recusa da sua obsessão em introduzir uma referência ao cristianismo na Constituição Europeia.

Não são 44 hectares de sotainas que tornam pujante o Vaticano, mas a diplomacia com quase todos os países, as representações acreditadas em organismos internacionais e os movimentos ultraconservadores de inspiração autoritária: Comunhão e Libertação, Opus Dei, Legião de Cristo (este extinto por paternidade e pedofilia do fundador), Focolares, Neocatecumenal, todos protegidos por João Paulo II e Bento XVI. O imenso exército de bispos, padres, freiras, monges e leigos, bem como o imenso património e influência na educação e assistência dos países mais pobres, fazem da Igreja católica uma poderosa multinacional e um instrumento de pressão política.

Claro que há crentes que, por bondade pessoal ou crença no Paraíso, são especialmente úteis a populações carenciadas e países em crise. O Vaticano não é Estado pária onde o poder monárquico absoluto do papa se torne um perigo permanente para os direitos humanos. Pelo contrário.

A Igreja católica perde fiéis para igrejas evangélicas e pentecostalistas ligadas aos EUA, onde só 25% da população se reclama católica, sendo, no entanto, o maior contribuinte financeiro para essa Igreja, mas em acentuada regressão, depois dos escândalos sexuais.

A escolha de um Papa argentino, em 2013, pareceu trocar a deriva reacionária dos dois últimos pontificados e apostar decididamente nos países sul-americanos que os jesuítas conhecem bem desde as descobertas. 

Há obstáculos que a Igreja católica, se quiser sobreviver no mundo globalizado, terá de contornar: a resistência cultural dos povos orientais, o progressivo individualismo dos povos, o liberalismo económico e o proselitismo islâmico, sem perder de novo o respeito pelas liberdades individuais e pela laicidade dos Estados.

A alegada existência de Deus é alheia ao futuro da Igreja, da católica e das outras, mas a Igreja de Roma, com o atual pontificado, tornou-se o último reduto pio compatível com a democracia e a defesa dos Direitos Humanos.

Ponte Europa Sorumbático

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5.11.22

Grande Angular - Serviços públicos, Call Centers e cidadania

Por António Barreto

Quem nunca esteve minutos e horas à espera de atendimento de uma entidade, instituição ou empresa, pública ou privada, a fim de tratar de assuntos da sua vida? Quem nunca sentiu a ineficácia e a indiferença de tantos serviços de atendimento?

 

Quando se tenta falar com certos serviços ou empresas, nunca se sabe quem responde do outro lado. Um funcionário? Um empregado de um Call Center situado a centenas de quilómetros? Um gravador em Espanha? Uma empresa com sede em Cabo Verde? Qualquer reposta pode estar certa, depende do Serviço e da organização. Em muitos casos, é indiferente. A possível rapidez de comunicação e a facilidade de organização da resposta são tais que a distância é indiferente. É verdade que, para tratar de questões portuguesas, é conveniente que quem me responde fale português correcto e tenha uma vaga noção da geografia… Explicar a um estrangeiro, que mal “arranha” português, um problema de saúde, de comunicações, de impostos ou de seguros é uma tarefa quase inútil.

 

De qualquer modo, os meios técnicos à nossa disposição permitem uma prontidão a toda a prova. Por isso as deficiências têm causas que não são técnicas. Por exemplo: a importância atribuída ao cidadão. Capacidade de organização. Investimento em meios e pessoas. Obrigatoriedade de atender prontamente. Formação profissional dos funcionários. Condições de trabalho destes últimos.

 

Há certas coisas que exigem que delas se fale na primeira pessoa. É, pois, esta a minha experiência e a de pessoas que frequento. As respostas do 112, do INEM, do SNS 24, dos bombeiros, da PSP e do meu banco são rápidas e eficientes. Isto é, não espero horas, não aturo longas gravações de publicidade, de recados monocórdicos e de música insuportável. Podem ou não as questões ser, depois, resolvidas. Mas o essencial aqui é o atendimento. É sobre isso que falamos.

 

As respostas da Junta de freguesia, da Câmara municipal, das empresas de telefones e de telemóveis, dos hospitais públicos, dos Centros de Saúde, das empresas de electricidade, gás e água, do caminho de ferro e do aeroporto são, conforme as horas, os dias e a estação do ano, sofríveis, medíocres, más ou péssimas! Parecidas com estas, as do Serviço de estrangeiros, da Segurança social, das Finanças, dos Impostos, dos correios, das universidades e das escolas secundárias. Nota especial para os Centros de Saúde: muitos nem sequer atendem os telefones!

 

Tudo o que é comercial, desde os centros e supermercados, até às grandes lojas, passando pelos táxis e equiparados, é rápido e pronto se for serviço de venda. É moroso e pouco expedito o que for do serviço do cliente, reclamações e informações gerais.

 

É lamentável, mas é parcialmente verdade. Quando os serviços são pagos, quando as entidades ganham com o atendimento, quando o lucro é a finalidade da actividade, a resposta é razoável, boa ou muito boa. Igualmente, quando o cidadão pode escolher a entidade e denunciar o mau atendimento, é quase certo que se corrigem os seus comportamentos. Mas, quando, pública ou privada, a entidade tem a faca, o queijo, a lei e a força do seu lado, o cidadão é tratado como um perturbador ou um delinquente. Por exemplo, as empresas que usam e abusam da “fidelização” (prática que deveria ser pura e simplesmente proibida) estão entre as piores entidades: enganam, mentem, atrasam, disfarçam e nem sequer ouvem.

 

A realidade social dos Call Centers é complexa. Há muito de oculto. A precaridade reina, pelo que só se conhece uma parte da verdade. Segundo uma associação representativa do sector e os sindicatos, há quase 100.000 trabalhadores em centros ou actividades de contacto. Destes, um terço completou o ensino superior, o que diz alguma coisa sobre a situação do emprego no nosso país. E quase dois terços terminaram o ensino secundário! Não parece ser por causa da falta de estudos que este sector é deficiente. Já as condições de trabalho (duração dos contratos, horários de trabalho e níveis de vencimento), geralmente muito más, podem explicar o mau ambiente. A maior parte dos contratos são de curta duração, a precaridade reina.

 

Não seria interessante ter à nossa disposição, organizada por entidade pública ou privada, mas independente, uma classificação permanente da actividade dos centros de contacto, das grandes empresas de serviços, das principais instituições dos grandes serviços públicos de que dependemos sempre, todos os dias, tantas vezes de modo decisivo para a nossa vida e a nossa paz? Não seria interessante que os serviços de atendimento e apoio tratassem os cidadãos como gente? Olhassem para eles com a dignidade que merecem? Não seria interessante poder penalizar e apontar os maus serviços, as más empresas, as más instituições públicas ou privadas? Será muito difícil estabelecer regras e critérios para que estas classificações sejam cuidadosas, sem tráficos de influência, sem trafulhice e sem privilégios? Não seria útil que fossem os próprios cidadãos a pontuar as entidades?

 

Mais do que o socialismo e a sua natureza profunda, mais do que o capitalismo e os seus fundamentos, mais do que certas características adjectivas dos regimes políticos, mais do que tudo e logo a seguir à liberdade e à dignidade humana, é a qualidade dos serviços públicos e a natureza do tratamento de que somos objecto ou vítimas que me interessam como características da sociedade.

 

As empresas querem vender produto, convencer e impingir. Bom ou mau, bem ou mal, é o que as empresas querem. As instituições querem convencer, elogiam os governantes e desejam que os cidadãos obedeçam a uma antiga regra de vida portuguesa “o calado é o melhor”! Os jornais, as televisões, os órgãos de imprensa em geral nem sempre se vêem como intermediários entre os poderes e os cidadãos, e por isso têm dificuldade em imaginar uma função como a de provedores do atendimento.

Com certeza que a resposta imediata não é suficiente. É preciso pensar no que se dá ou vende. Há que fazer justiça, ser honesto e não mentir ou roubar. Isso é verdade. Mas se tudo começar bem, com atendimento humano, com resposta pronta, com a delicadeza de seres humanos, a afabilidade de cidadãos e o orgulho de dever cumprido, o que vem a seguir virá certamente melhor. Ser bem atendido, não ser esquecido e ser tratado como igual é o princípio de ser igual. Ser tratado dignamente é o princípio da dignidade humana. Ser tratado com indiferença é o princípio da sujeição.

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Público, 5.11.2022

 

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4.11.22

Deixa-te de fitas, pá!

Por Joaquim Letria

Foi Voltaire quem disse que, para o escritor, a maior desgraça era ter de se confrontar com o julgamento dos imbecis.

Escreveu ele que isso o afectava mais do que “ser invejado pelos seus pares, ser vítima das intrigas, ser desprezado pelos poderosos”.

Pior ainda o fazia sentir esse julgamento quando “partia de alguém em quem o fanatismo se unia à estupidez”.

Creio que este julgamento se deve ao facto de, no tempo de Voltaire, nem todos os estúpidos serem fanáticos nem os fanáticos serem estúpidos. Hoje, ambos os predicados são indissociáveis: não há fanático que não seja estúpido, nem estúpido que não seja fanático.

No que eu não acredito é na infelicidade de Voltaire perante a opinião dos imbecis, dos fanáticos e dos fanáticos imbecis.

É evidente que seria preferível que não existissem semelhantes seres. Mas já que existem por obra e graça do Criador, penso que Voltaire não seria excepção à regra que se aplica a todos que escrevem livros, artigos de opinião ou crónicas de jornal.

Custa-me acreditar que ele resistisse ao prazer de extorquir aos imbecis fanáticos bem como aos fanáticos imbecis a raiva destes ou as frustrações daqueles com as quais vão carregando de ódio o doce favor de nos detestarem.

Oh Voltaire, meu irmão! Então isso não te dava gozo, meu querido amigo!?

Deixa-te de fitas, pá!

Publicado no Minho Digital 

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3.11.22

BRASIL – O fascismo não desarma

 


Por C. B. Esperança

A vitória democrática de Lula da Silva nas eleições que o medo e a poderosa máquina de propaganda dos bandos evangélicos e terratenentes não conseguiram impedir, não é mais do que um interregno na sucessão de golpes que a extrema-direita prepara, depois de ter falhado a manutenção do fascista abrutalhado na Presidência da República.

É de saudar a rapidez e eficácia com que Biden, Macron e outros líderes importantes à escala mundial se apressaram a felicitar Lula da Silva e a reconhecer a legitimidade e a limpidez das eleições em que, pela primeira vez, um PR em exercício foi derrotado. O golpe de Estado militar tornara-se impossível, apesar dos patéticos e histéricos apelos.

Tal como nos EUA, o PR brasileiro é simultaneamente o chefe de Estado e o primeiro-ministro, com influência na nomeação dos juízes do Supremo Tribunal. Depois do que se passou nos EUA, a invasão do Capitólio estimulada pelo PR, temia-se o que faria o Trump tropical em Brasília, o cobarde que não quis reconhecer a derrota.

Lula da Silva vai ter a vida dificultada, senão em perigo, com a extrema-direita inquieta com a democracia. O PR com mais êxito na justiça social, durante dois mandatos, será boicotado. O bolsonarismo, tal como o trumpismo, está vivo e perigoso. 

A prisão de Lula foi uma canalhice de um juiz que desonrou a toga e preparou um golpe para o impedir de derrotar Bolsonaro, prendendo-o ilegalmente, para ser ministro. Em vez de preso, Sergio Moro foi agora eleito senador. O Brasil está perigoso.

Os brasileiros ainda ignoram que Lula veio a ser competentemente ilibado da injusta acusação, condenação e prisão por alegada corrupção, de que foi autor o ex-juiz Moro, conluiado com o procurador. O triplex, objeto do alegado suborno, foi arrolado como propriedade da empresa falida, nunca tendo sido de Lula da Siva, mas a humilhação e privação da liberdade foram insuficientes para o assassinato político organizado.

Há quem esqueça o golpe contra Dilma, sobre quem jamais pairou a mais leve suspeita de corrupção, e a sua substituição a favor de Temer, comprovadamente corrupto.

A prisão de Lula, a destituição de Dilma ou a derrota eleitoral de Fernando Haddad não provocaram desacatos, e as primeiras situações bem mereciam um sobressalto cívico, a manifestação democrática contra a iniquidade, mas é a derrota merecida do marginal que agora provoca o caos, a exigir o apoio vigoroso das democracias ao Brasil.

A contestação da vitória de 2014 pela Presidente Dilma Rousseff foi um apelo ao golpe militar que prosseguiu no Parlamento com deplorável selvajaria e absoluta eficácia.

A vitória de Lula é, antes de mais, uma vitória da democracia, a vitória contra o medo, um grito de esperança dos pobres, uma oportunidade para a manutenção da floresta da Amazónia e um compasso de espera para a extrema-direita.

As humilhações de Bolsonaro ao PR português tiveram agora a resposta do eleitorado. Só falta que os juristas portugueses que convidaram Sergio Moro como orador, quando já era notória a perseguição política a Lula, e o ovacionaram, se retratem.

Parabéns, Lula! Parabéns, Brasil!

Ponte EuropaSorumbático

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