Uma questão de tomates - *As anuais bicadas dos pardais
Por Antunes Ferreira
Dois quintais, duas hortas, duas plantações, uma inveja; tudo tomates. Estória danada esta de foro agrícola mas de dimensão caseira nada de explorações intensivas e extensivas, de tractores, de ceifeiras-debulhadoras, de regas artificiais, de hidropónica, de adubagem cientificamente apurada. Só tomates. Muito menos originaram desavenças nem chegaram a desacatos. A vias de facto – nem pensar!
Os campos da discórdia, dois modestos quintais cada um com pouco mais de setenta metros quadrados pertencentes a dois vizinhos moradores e proprietários de vivendas geminadas: a Maria Isabel do reformado da Carris, o viúvo Felisberto Caeiro e a empresária da restauração Isaura Moutinho, 49 anos, divorciada, que ainda rompia muita meia sola.
Davam-se bem. Por vezes encontravam-se nos respectivos lares para uns dedos de conversa, uns copos de Porto, umas coisas assim, tudo menos vale de lençóis, o Caeiro ia nos setentas, já dera o que tinha a dar. No entanto a Isaura albergava uma verdadeira cizânia no seu visitado coração (e no resto do corpo que continuava absolutamente firme e sensual, dentro do prazo de validade copidesco): os seus tomates, claro, os frutos. Porque os outros só os dos visitantes…
Qual o engulho? Mal começavam a avermelhar-se os corações-de-boi estavam condenados: vinham os pardais – e que pardais, aos bandos, em revoadas assustadoras criminosas – e ai dos tomates: eram impiedosamente bicados e murchavam. Se fosse um ano, ainda vá que não vá. Mas a maldita passarada tinha criado raízes; voltava todos os anos!
Isaura não aproveitava um tomate dos dela que fosse; tinha de recorrer ao mercado para fazer umas saladas decentes, uns refogados (um dos seus amigos e clientes chamava-lhes estrugidos), uns molhos de fazer água na boca. Nos quatro restaurantes que possuía o drama tomatal era resolvido pelos cozinheiros donde ela ali podia sossegar. Mas se pensava no seu quintal, mau, mau, mau Maria.
Ao invés, nos setenta meros quadrados do Felisberto Caeiro os tomates, que ele também plantava, cresciam a olhos vistos, viçosos, mais vermelhos do que a camisolas do Glorioso (o velhote era sócio fundamentalista do clube no entender dele “o melhor do Mundo e arredores”) e quanto aos assassinos alados – nem uma bicada!
Estavam os preparos deste jeito quando após mais uma calamidade voadora, Isaura chegou-se ao muro que separava as duas propriedades e chamou o sôr Caeiro. “Meu querido amigo peço-lhe o subido obséquio de me dar uma informação…” Felisberto, com um sorriso amigável: “Ora essa. Venha ela.” “Porque razão os seus tomates, os frutos, tá claro, não são bicados pelos pardais como acontece com os meus?”
Um vizinho não o é se não for capaz de acudir a uma fatalidade de outro (no caso, de outra) e logo esclareceu: “Dona Isaura, o truque é que eu logo na primeira plantação substituí os tomates verdadeiro por uns de chumbo pintados de vermelho iguaizinhos aos naturais. A pardalada chegou tentou picá-los, lixou os bicos – e nunca mais tentou o ataque!!!”
Isaura Moutinho rejubilou: “E onde posso arranjar esses miraculosos tomates de chumbo?” Solícito, o interlocutor: “À saída da vila há a drogaria do senhor Madueno, que já vai nos 76, se não me engano, que vende tudo; foi lá que comprei os ditosos tomates. A vizinha pode até, quando lá for, indicar o meu nome, andámos junto na escola.”
Drogaria Tem Tudo. Sentado atrás do balcão Madueno Barbosa lia o Almanaque Borda d’Água com os óculos encavalitados na ponta do nariz. “Muitos bons dias senhor Madueno.” Barbosa levanta-se com alguma dificuldade. “Bom dia, dona Isaura; o que a traz por cá?” “Senhor Madueno tem tomates de chumbo?” Madueno Barbosa responde sereno: “Não minha Senhora – é reumático…”
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