Por A. M. Galopim de Carvalho
A MINHA AVÓ PATERNA morreu muito pouco tempo antes de eu nascer. Casara e tivera três rapazes: o meu pai, Mário, o único que estudou no liceu, encorajado por um professor que o estimava; o Manuel, que não concluiu a instrução primária, desempregado por vocação e, de vez em quando, caiador; e o Óscar, o mais novo, que viera cedo para Lisboa e que por cá viveu, tendo casado tarde com uma mulher da região de Tomar. Esta tia, que mal conheci, sempre nos tratou – a mim e aos meus irmãos – com as maiores atenções e carinho, como que a querer prestar homenagem ao irmão mais velho do marido que, como era sua convicção, ocupava o ponto mais alto do pedestal da família, pois tinha estudado e era escriturário de profissão.
Ao tempo dos filhos crianças, já viúva, a avó Mariana e a sua muito jovem família viviam numa velha casa com quintal, para os lados do Farrobo, na cidade de Évora. De terra batida, com uma bela nespereira ao centro, este quintal, pintado na minha imaginação a partir das histórias que ouvi, era ladeado por alegretes, nome que então se dava aos canteiros, os quais tanto podiam ser de flores como de cheiros, quase sempre salsa, poejos, coentros e hortelã.
Uma ocasião entrou-lhe quintal adentro, vindo da casa ao lado, um belo coelho que pronto se anichou num canto, o que tornou fácil e imediata a sua captura. A família vivia com muitas dificuldades, em franco contraste com o desafogo dos vizinhos. A minha avó deve ter feito umas reflexões sumárias em torno de temas tais como moral, justiça social e outros afins e, tomada que foi a sua decisão, olhou em volta, certificando-se da inexistência de terceiros, pegou no bicho e deu-lhe aquele esticão entre pernas e orelhas que nesses tempos toda a gente sabia dar, pois não havia supermercados nem talhos que nos poupassem daquela desagradável operação. De seguida, esfolou-o. Não lhe guardou a pele que, como era regra, se punha a secar ao ar, virada do avesso e com sal, até que a levasse o peleiro ou o «ferro-velho», dando por ela umas migalhas que se não deviam nem podiam desperdiçar. Nesse dia, excepcionalmente, a avó abdicou desse pequeno rendimento. Já lhe bastava o ganho – e não era pouco – da parte comestível. Assim, e por razões evidentes, enterrou-a bem fundo num canteiro, o mesmo fazendo às vísceras e à cabeça do animal. Perder aquela cabeça foi o que mais lhe custou nesta operação de acautelamento que o bom senso ditava. E ela que gostava tanto daquela carne agarrada aos ossos e dos miolos, que comia, no fim, depois de a abrir ao meio com a faca da cozinha. Mas paciência, não se podia ter tudo. Assim, era mais seguro!
Esquartejou-o aos pedacinhos, que lavou bem lavados, e fez o refogado. Pô-lo ao lume e escolheu e lavou o arroz...
Quando, à tardinha, cheios de fome, os filhos entraram, correndo, vindos da escola e das brincadeiras da rua, e perguntaram à mãe o que era o jantar, a minha avó Mariana, sem trejeito que a denunciasse, levantou os olhos azuis da costura e, de agulha na mão, a espetá-la no peito da blusa, num gesto tradicional de quem interrompe o trabalho, respondeu apenas «arroz de enguia!».
E é por isso que, no passado, em casa dos meus pais, e hoje, na minha, o arroz de coelho sempre se chamou e chama “arroz de enguia”.
Esta e outras crónicas do autor estão também no seu blogue, Sopas de Pedra Etiquetas: GC