31.1.07
A Festa de Santa Filomena
A bem-aventurada tinha provas dadas na cura de animais, designadamente ovelhas, que a gripe dizimava e estropiava no Inverno e, quanto maior a desgraça, mais crescia o pasmo pelas que escapavam e maior era a devoção. Tinha sido o caso, nesse ano, por causa das chuvas e dos sempre insondáveis desígnios divinos. Era a primeira homenagem pública, a augurar o início de uma tradição e de um amparo ainda maior. A festa há muito que a merecia a santa, mas os proventos da arrematação dos pés e orelhas de porco, de duas ou três dúzias de ovos e de alguns enchidos provenientes do pagamento de promessas, mal chegavam para lhe pagar a missa e comprar algum adorno.
Valera a generosidade do brasileiro que pôs os paroquianos em excitação, com recados enviados a parentes e amigos e data da festa anunciada.
Com farinha peneirada, ovos guardados e açúcar comprado, apalavrada a banda da Parada e encomendado o foguetório no Porto da Carne, a uma semana da festa, veio o pároco anunciar, durante a missa, que Sua Santidade tinha declarado falsa a santa, sacrílega a devoção e, assim, era impossível a festa. Manifestou tristeza suficiente, por solidariedade para com os paroquianos, que da decisão papal não cabia recurso. Ainda propôs outro santo, com certificado de garantia, de sexo diferente e idêntica virtude, para a substituir nos festejos. Deixou à reflexão dos paroquianos. E do brasileiro, subentendia-se. Qual quê? Goradas as expectativas, enxovalhada a crença, arruinadas as orações cuja permuta de intenções não admitia retroactividade, só restava um vago ressentimento e uma sensação de injustiça e impotência.
O brasileiro, a quem a generosidade assegurara lugar cativo na primeira fila da igreja, ficou lívido, primeiro, a vacilar na fé e nas pernas, ressentido depois e a remoer vingança.
Impediu-o o medo do Inferno e a inutilidade de demandar o Papa de exigir a devolução do óbolo, ficando-se pela desolação e algumas obscenidades com sotaque, enquanto os paroquianos se dividiram entre o brasileiro e os sacramentos, a devoção e o padre, a santa e o Papa, acabando por regressar ao redil e à fé dirigida de Roma. Apenas o brasileiro, por brio, passou a frequentar a missa em Vila Fernando, com outro padre, no tempo em que ainda se demorou. Manteve a devoção mas trocou de corretor.
Ninguém percebeu porque se demitiu do altar uma santa que lograra prestígio igual ao de Santa Bárbara a amainar trovoadas e maior que o de S. Sebastião que, para além de mártir, não se lhe conhecia na paróquia outro feito que o recomendasse, não desfazendo, é claro, na seta que o trespassava em perpétuo sofrimento. Era difícil rezar a santos que não faziam milagres quando se apeava quem os fazia.
Creio que ao medo do castigo divino e à falta de alternativas se ficou a dever a persistência na fé, posta em causa de forma demolidora por motivos insuficientemente explicados e com despesas já feitas.
Não estralejaram foguetes, não se ouviram os acordes da banda, não se provaram as guloseimas. A imagem, ferida na estimação e na virtude, foi parar à sacristia, por decreto, condenada à solidão e ao esquecimento, à espera de que algumas gerações de crentes se finassem para reaparecer, quem sabe, com outro nome e renovados poderes. Assim a fé e a sociedade o consintam ainda. Os mordomos ficaram designados para as próximas festividades conservando o prestígio e as prerrogativas.
Uma carta curiosa no «DESTAK» de hoje
30.1.07
Maria
29.1.07
TLEBS matemáticas
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Os Desafios aos Poderes
Contudo não se tratava de negociar uma saída para a greve na Universidade – um facto então inaudito dado o pequeno grupo de privilegiados que nessa altura a frequentavam unidos num movimento subversivo. A reunião era para lhes transmitir a posição do Governo:
“O poder não pode ser desafiado”.
Era, viu-se depois, um poder já muito enfraquecido.
Só um poder muito frágil, corroído pela sua falta de legitimidade, pode sentir-se desafiado porque uns milhares de estudantes deixam de ir às aulas num protesto moral, simbólico e sem qualquer poder efectivo.
O mesmo que se passa com o sargento de Torres Novas.
Tudo o que se está a passar – um sargento que entre a obediência ao tribunal e a cadeia escolhe a cadeia para proteger a sua filha – a intervenção espontânea de juristas com as mais diversas posições, os abaixo-assinados e as tomadas de posição individual tem um sabor estranho, recordam outros tempos e outras campanhas.
Não vale a pena discutir a questão jurídica como fazem os magistrados que vão à televisão defender o colega despejando conceitos mal assimilados. Toda a gente já percebeu que os seis anos de cadeia e os 30.000 euros de indemnização, enorme para os critérios habituais, só aconteceu porque os juízes se sentiram desafiados.
Desafiados pelos pais adoptivos dispostos a tudo para defender a criança comportando-se como verdadeiros pais, desafiados pela polícia que não a consegue encontrar, agora desafiados pela opinião pública que não percebe as complexidades processuais do caso e fala do que não sabe.
Mas só com uma tremenda crise de legitimidade, uma desconfiança profunda da opinião pública a respeito do poder judicial, isto se pode passar.
Que se passa com os juízes portugueses que não conseguem fazer justiça em nome do povo? Como foi possível quebrar-se aquele laço profundo que nos leva a reconhecermo-nos na decisão judicial mesmo quando dela discordamos?
Tudo isto é mais um sintoma do que uma doença: as reacções autoritárias, a arrogância judicial perante pessoas indefesas juntamente com a subserviência para com os poderosos têm minado a relação de confiança entre a comunidade e os magistrados.
Milhares de decisões sérias por magistrados competentes que só os interessados conhecem podem ver os seus efeitos destruídos por duas ou três decisões impensadas que de repente são títulos de jornais. É muito mais fácil destruir a confiança do que construí-la.
Em especial quando o mesmo presidente do sindicato dos juízes que teve uma posição exemplar em relação aos juízes do futebol ao constituir-se em advogado oficioso de uma colega que exorbitou, vem transformar um erro individual numa posição da classe.
O Juiz Robert Jackson que participou no julgamento de Nuremberga dizia que os tribunais julgam os casos, mas os casos também julgam os tribunais. Para um caso como este não se pode encontrar uma citação mais adequada.
Adenda: ficámos a saber no caso de Sintra que os beneméritos que se dedicam ao contrabando têm advogados pagos com os nossos impostos.
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28.1.07
Predestinados
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27.1.07
O Síndrome Artur Jorge
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Ando preocupado
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26.1.07
O asno e as asneiras
Artistas de coturno
A política externa era o instrumento essencial da nossa projecção no Mundo. Já não é mais assim. Em causa poderão ainda ficar os deveres constitucionais a que o Estado se obriga para com os portugueses no estrangeiro, onde estes ficam privados da assistência e da protecção devidas.
A iniciativa é de louvar. Assim se poupa para pagar a quem se abotoa com ajudas de custo, a gestores e entes de pequeno porte que sacam alcavalas para virem a Lisboa, cobrando quilómetros do carro do Estado. Artistas deste coturno não podem ser comparados aos quatro milhões de portugueses que ganham a vida honestamente, lá fora.
«25ªHORA» - «24 horas»
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Ecografias
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O EMBARAÇO DA ESCOLHA
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"Post-aberto" EXCEPTO anedotas
Este post destina-se à afixação, pelos leitores, de tudo o que entendam por bem divulgar.
No entanto, para anedotas & larachas recomenda-se o anterior.
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25.1.07
Medo do futuro
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Bollywood
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E já que falámos do PMB...
Na imagem seguinte, pode ver-se um pormenor de um dos inúmeros quiosques de venda de selos espalhados pelo país. Ao contrário do indicado, nenhum dos dois cartões é aceite - aliás, nem sequer entram. Se alguém conhecer um único quiosque destes que funcione, diga-me onde é. Terei muito gosto em lhe oferecer os meus cartões PMB que ainda devem ter algum saldo.
Uma imagem que já aqui se mostrou, mas que se volta a afixar porque vem a propósito: um dos inúmeros ciber-postos que ainda se podem ver por todo país e que, segundo me informaram nos CTT, estão sem funcionar (ou «out of order», como se diz na folhinha A4).
A crer numas pequenas etiquetas que as ornamentam, estas maquinetas (juntamente com tudo o que lhes está associado) foram co-financiadas pelo FEDER e pelo Plano Operacional para a Sociedade do Conhecimento. Também para elas é válida a oferta: se alguém conhecer uma única que funcione, diga-me onde é, pois terei muito gosto em lhe oferecer o meu cartão que ainda deve ter algum saldo.
NOTA: Claro que deve haver óptimas razões para que alguém tenha entregue, a uma caterva de pândegos anónimos, uns largos milhares de euros para brincarem às informáticas...
E esta, hem?!
A Paixão do Futebol
Nunca, antes, me tinha interrogado sobre as qualidades para um desporto que exercia em mim uma atracção irresistível. Jamais me dera conta da pouca habilidade que pudesse ter. Pelo contrário, algumas vezes tinham sido os outros a perguntar se não queria jogar à bola e a procurar convencer-me para ficar à baliza, lugar que a minha impaciência desprezava e eles tinham como o mais adequado ao meu perfil.
Só então me dei conta de ter sido dono da única bola, durante a instrução primária.
Depois, no liceu, perdida a protecção materna e o respeito devido, medroso e inábil, fui-me transformando no bode expiatório dos insucessos alheios, alvo de tareias com que os outros garotos se vingavam de um medíocre menos a Português ou de um mau grande a Matemática, numa crescente fama que ultrapassou a turma, a qual em breve perdeu o monopólio das sovas a mim destinadas. Era medroso, já o disse, não é por me gabar, e a alcunha de Nené era um incentivo eficaz para avanços mesmo dos mais timoratos.
Foram dois anos de excelentes notas e sólidas tareias, umas e outras em vias de extinção. As tareias terminaram quando reagi ao medo patológico e passei de bombo da festa a carrasco que desfeiteou dois colegas, em momentos diferentes, com violenta carga de pontapés fortalecidos pelo susto perante o gáudio de outros colegas que, em vez de me ovacionarem, apuparam as vítimas com expressões tão demolidoras como até do Nené te deixaste bater. Quanto às notas tive de esforçar-me menos, bastou o absentismo escolar, tendo quem respondesse por mim à chamada, abjurar os livros e começar a subir na consideração dos colegas, já ressarcido da ignomínia de ter frequentado o quadro de honra.
Alguns benefícios tive, pois, além de notas mais toleráveis pelos idolatrados cábulas, estes acolheram-me generosamente e não me deixei marcar por uma plêiade de incompetências pedagógicas nem tive necessidade de aprofundar a ciência sobre os estames da papoila e o órgão sexual da minhoca, ensinamentos que faziam corar os professores e emudecer de vergonha os alunos pelo carácter deletério, precursor da educação sexual que algumas décadas depois viria a ser objecto de reivindicação. Também me defendi de decorar o clima dos vários países, a fauna e a flora das colónias que a história se encarregaria de transformar em nações e outras inutilidades que levam as pessoas de então a repetir nostálgicas – nesse tempo é que se aprendia!
Mas o futebol continuou a exercer em mim uma irresistível atracção e a permitir-me suportar estoicamente o escrutínio dos outros jogadores, cada vez mais difícil, para participar. Era comum estarem seis ou sete garotos de um lado e menos um do outro, única situação em que podia aspirar à selecção. Dizia-me a experiência que o regozijo seria de pouca dura e que à primeira canelada era corrido à chapada e a pontapé, para bem longe, negando-me o simples privilégio de espectador. Mesmo assim aguardava ansioso o momento da selecção.
A minha entrada era sempre precedida de silêncios estranhos e insuportáveis delongas, apesar da evidente utilidade de as equipas começarem patas em número de jogadores. Por fim alguém dizia, com ar de enfado, aquela merda que jogue, decisão que me inundava de felicidade não obstante os termos pouco estimulantes e o epíteto moderadamente depreciativo com que o convite era formulado.
Estão de volta...?
«ACONTECE...»
24.1.07
Problemas no «New Blogger» (ex-Beta)
No entanto, surgiram dificuldades nas últimas horas:
Além de ter aparecido um indesejado «Word Verification» (o que não é grave, mas não sei como surgiu...), a ordem de PUBLISH deixou de ser cumprida. Aparece uma mensagem de «Aguarde...» e, ao fim de alguns segundos, volta a pedir-me o username e a password. Uma vez introduzidos esses dados de novo... volta tudo ao mesmo e o post não entra.
Alguém tem também esse problema?
Já agora: alguém sabe como desactivar o «Word Verification» (nos posts, não nos comentários), visto que não encontro nenhuma opção para isso nos settings?
Desportos surreais
As dores dos "procuradores"
Mas não é isso que se pretende aqui fazer sobressair. Repare-se que, perante esta medida, quem aparece a defender a honra e isenção dos médicos não é a respectiva Ordem (nem nenhum dos seus sindicatos) mas sim... a CGTP!
Para desenjoar...
(*) O blogue Humor Antigo foi actualizado há momentos.
Alguém quer discutir isto?
A lei espanhola, embora sendo mais permissiva, foi inspirada na nossa.
A lei portuguesa actual, simplesmente, não é cumprida.
Como tantas vezes sucede quando uma lei, em Portugal, não é cumprida, o legislador muda-a. Quanto a fazê-la cumprir, é um assunto que nunca preocupa ninguém verdadeiramente - a começar pelos que são pagos para isso.
Humor antigo
Seguindo o precioso conselho dado por um leitor (em "Comentário" ao post anterior), e sem prejuízo de, aqui, se continuarem a afixar anedotas antigas, criou-se um blogue só para elas [aqui].
O que fazer...?
Ver o post a seguir a este
23.1.07
A Ivone ou de como o ódio se transformou em amor
Ninguém suplicava já o regresso do rei, implorava-se a conversão da Rússia.
As festas religiosas tinham data certa e regozijo garantido com um bailarico profano que amofinava o padre e alvoroçava a juventude e o acordeonista. As procissões reuniam os paroquianos e as missas diárias tinham boa clientela apesar da faina agrícola. As mulheres arranjam sempre tempo para a devoção por mais tarefas que lhes caibam ou solicitações domésticas que não possam alijar. Até nas rezas substituem os maridos e os filhos.
No mês de Maria o terço não se resumia aos cinco mistérios e respectivos padres-nossos e ave-marias. Havia cantoria litúrgica para seduzir o divino e desimpedir o caminho do Céu, quando a hora chegasse, à alma dos executantes. Para isso servia a igreja e para evitar que a fé desse lugar ao sono domiciliário onde, à lareira, chegava no primeiro mistério.
Ao excesso de fé, à pressa das orações ou a ânsias mais profanas se deveu a velocidade com que umas raparigas da aldeia passavam pela igreja, sem parar a tempo, indo cair na vinha em frente. Não lhes escasseava compaixão pelo martírio do seu Deus a avaliar pelos gemidos.
A aldeia murmurava que fora enganada a Pedra, desonrada a Ivone e muitas já não estavam como deviam. E não sabiam as pessoas, da missa, metade.
Andavam muitas na boca do mundo que é como quem diz nas conversas de quem gosta de falar da vida alheia. Honrava-se quem casasse e perdiam-se as enjeitadas.
Intimidaram-se com ameaças alguns mancebos e cuidaram de arranjar papéis, limitaram-se outros a ouvir gritos de coitanaxas ensinadas à porrada a conter o alvoroço e as hormonas. Mas, para as que encheram, vinha tarde a pedagogia e o sermão.
O Zé Ferreira preferiu a PSP ao enlace, e abalou para Lisboa deixando prenha a Ivone. Acabou polícia e casado, sem a Ivone que o pai prometera matar. Assustei-me ao escutar a ameaça e os nomes que lhe gritava para que a aldeia ouvisse. Adivinhei as lágrimas e a vergonha da cachopa, enganada e cheia, dentro das paredes da casa térrea.
Nem todas encheram mas foram sete as que em Fevereiro do ano seguinte deram à luz, unidas, umas, pelos santos laços do matrimónio e pela obrigação de continuarem a parir, ficando outras com a vergonha e um único filho.
Quando nas férias grandes voltei à aldeia roía-me a curiosidade e o medo de que a Ivone tivesse acabado às mãos do pai, vítima da honra que soía lavar-se. Passei várias vezes à porta para saber se vivia. Não a via e temi o pior. O Zé Ferreira – disseram-me – abalara para Lisboa.
No dia em que tive a certeza de que a Ivone vivia rejubilei. Era uma criança sensível que não me conformava com a morte embora soubesse que as famílias tinham, nesse tempo, códigos de honra que não permitiam que alguém fizesse pouco das filhas sem vingarem a afronta. Se a desgraçada tinha irmãos cabia a estes sangrar o machacaz, caso contrário a rapariga era posta na rua, levava uma malha ou as duas coisas.
A caminho da Fonte do Vale não vi a Ivone, mas, nos braços do avô, sentado na soleira da porta, uma criança de meses era embalada ternamente. Compreendi então que a vida vale mais do que os preconceitos e que uma criança é capaz de transformar em amor o ódio que explode em momentos de exaltação e de vergonha.
Publicado no «Jornal do Fundão» em 18 Jan 07.