NÃO ME APETECE escrever sobre estes tipos. Digo à Isaura. Não escrevas;
sempre fizeste o que te apeteceu, diz ela. Não é bem assim, digo.
Estamos na sala, por detrás dos vidros um pouco embaciados, e a chuva
toca-os de leve. A tarde está escura e começam a acender-se as primeiras
luzes, na rua e nos prédios. Anoitece muito cedo; tarde escura, suja,
como o País, escuro, sujo, nocturno e triste. Olho-a. Ela mantém-se
aparentemente alheada, mas não o está. Sempre muito atenta, mesmo quando
parece suspensa. Sorri agora. Conheço-a desde que ambos éramos novos e
tínhamos a idade daquele nosso mundo. Eu estava desempregado, coisas da
política, e metera-me noutras. Ela sabia de tudo e andávamos de mãos
dadas, sem receio e alegres.
Sempre fizeste o que te apeteceu,
repete. Como os nossos filhos, obstinados e recalcitrantes. Mas ganhei,
penso. Os outros julgam que não, que perdi, mas a verdade é que foram
eles os vencidos; estão lá, impantes e brunidos, porém vencidos. Mereceu
a pena tanta luta, tanto desafio, tanto perigo, vertigem e desatino
para chegarmos a isto? A Isaura não o diz: observa-me e afaga-me no
rosto e na cabeça. Não é preciso mais nada.
Põe os pés na terra;
voas em excesso e sonhas em demasia, dizes-me, frequentemente, mas sem
me recriminar. Agora já não tanto, mas houve vezes em que me esquecia de
ter dinheiro, da carteira, e tu colocavas-me alguns trocos nos bolsos.
Aqui há tempos, descobri, no bolsinho da lapela, uma nota velha de vinte
escudos. Rimo-nos. Ainda sobrava um pouco, apesar de tudo. Nada de
amolgar a esperança. A principal virtude da vida é ela estar sempre em
acrescento, e nada, mas nada mesmo, é definitivo. Atrás de tempos,
tempos virão.
Está bem: mas os anos não param, nem sequer um
bocadinho. E eu sinto-me envelhecer. Estou na idade do condor: com dor
aqui, com dor ali, com dor acolá. Ora, ora, os anos são somente números.
Um dia, li que a vida feliz é, ao mesmo tempo, longa e breve. Até
falámos nisso, recordo-me bem, tinhas sido operado a uma chatice grave, a
família estava preocupada, e tu, antes de entrar no bloco operatório,
piscaste-me o olho e disseste: quero arroz de polvo para o jantar.
Mas
sabíamos para aonde íamos. Isso dizes tu agora. Nunca ninguém sabe para
aonde vai. Sobretudo os da nossa condição. Os processos de demolição da
consciência humana são cíclicos. Ora, ora. Ora, ora, não. As coisas são
o que são e são mesmo assim. Mesmo nas épocas mais infelizes, citavas
Hemingway: "O homem não nasceu para a derrota. O homem pode ser vencido,
nunca destruído." Olha, tocaram à campainha da porta. Esqueci-me de te
dizer que os nossos netos vêm aí com os pais.
Estão jubilosos.
Nota-se pelo brilho nos olhos. Ele endireitou os ombros que haviam
descaído. Ela ajeitou o cabelo com as mãos. Caminham para a porta.
«DN» de 21 Nov 12