31.3.24

 

30.3.24

Grande Angular - O melhor mês

Por António Barreto

Abril não é o mês mais cruel, como dizia T. S. Eliot. Bem pelo contrário, é o melhor. Pelo menos para nós. Também mistura memórias e desejos, como dizia o original. Mas não faz germinar lilases: aqui, Abril é o anúncio dos jacarandás. E dos cravos.

 

Começa amanhã o mês do meio centenário. Seguir-se-á um ano durante o qual tudo se dirá, da cruel verdade ao cómico dislate. Seminários, livros, programas de televisão, filmes, romarias, investigações e evocações, nada faltará. Se forem poucas as liturgias e raros os reflexos condicionados, talvez, dentro de um ano, saibamos mais sobre nós próprios.

 

Talvez sejamos capazes de perceber melhor por que razões a ditadura durou tanto tempo, por que motivos os portugueses deixaram que assim acontecesse. Ou antes, por que não foram capazes de melhor resistir e mais combater. Talvez sejamos capazes de saber melhor por que os portugueses ainda são mais desiguais, pobres, analfabetos e resignados do que outros na Europa. E pode também ser que venham mais argumentos que nos permitam compreender melhor as razões pelas quais, no grande continente que é a Europa, este povo pequeno, pobre e marginal resistiu, sobreviveu e insistiu na sua independência.

 

Se o meio centenário de Abril não for simplesmente, mesmo em nome da liberdade, a consagração dos actuais interesses, o respeito pela vassalagem e um festival de vingança e de intolerância, talvez as festas valham a pena. Abril não merece louvaminhas, muito menos represálias e desforras. Abril merece liberdade, tolerância e inteligência.

 

Bela maneira de comemorar Abril! Apesar da instabilidade e da desordem institucional, mau grado a fragilidade gerada pelos resultados eleitorais, a democracia resiste e funciona! Geneticamente marcado à esquerda, o 25 de Abril, cinquenta anos depois, sobrevive com saúde a vitórias das direitas, ao acréscimo das direitas radicais e à vulnerabilidade das soluções governamentais adoptadas. Não há melhor maneira de comemorar Abril do que esta de demonstrar que a democracia vive com a liberdade, com a revolução social e com o nacionalismo radical. Assim como com a integração europeia, a intervenção do Estado e o capitalismo liberal. 

 

No ano do meio centenário de democracia, um governo de maioria absoluta e com condições de estabilidade, isto é, o governo do PS foi derrubado e substituído por um governo sem maioria e com instabilidade garantida. Nesse mesmo ano, três parlamentos, o nacional, o madeirense e o açoriano, foram dissolvidos antes dos prazos previstos. O desperdício e a barafunda institucional ditam há muito a sua lei. Nem a democracia conseguiu mudar isso. Talvez seja uma consolação: os portugueses continuam a ser o que sempre foram.

 

A abstenção atingiu os 40% e já foi pior. Não é a mais alta da história, longe disso. Mas está entre o grupo das mais elevadas destes cinquenta anos. A abstenção é evidentemente desinteresse. Sinal dos tempos. Fraqueza de uma sociedade. Mas também advertência aos políticos e à política. Neste capítulo, Portugal não anda muito pior do que a Europa. Nem melhor.

 

Que belo modo de festejar o 25 de Abril! Toma posse um governo minoritário, enfraquecido e vulnerável como poucos antes dele. Mais parece um governo provisório dos idos de 1975. A solução encontrada para a presidência do Parlamento é engenhosa e imaginativa, não se pode negar. E revela civilidade de comportamentos. Mas não se pode esconder que seja também débil e de improviso. Se fosse a solução adoptada em caso de “bloco central” ou de qualquer coligação adulta e formal, muito bem. Sendo assim, como foi, é gesso em perna de pau!

 

Há mais factos a referir, neste ano de comemoração. A direita somada, moderada ou radical, em conjunto, atingiu uma das mais altas proporções da história: mais de 53%.... Nunca a direita radical, a direita de protesto, a direita nacionalista ou mais vulgarmente a extrema-direita, tiveram tantos votos com agora.

 

O mais antigo partido português, o PCP, com quatro deputados, quase desapareceu do Parlamento, onde já teve 44 eleitos. Após 103 anos de existência, um dos últimos partidos comunistas do mundo prepara-se para desfalecer. Curiosamente, ainda hoje é o partido mais temido por todos os outros, democráticos ou não, de esquerda ou de direita. E comporta-se como tal.

 

O partido mais antigo e mais claramente de direita democrática, o mais parecido que temos com a democracia cristã europeia, o CDS, quase desapareceu novamente e, se está no Parlamento, com dois deputados, é graças ao banco do pendura.

 

Todos os partidos ditos esquerdistas e revolucionários do 25 de Abril, criados um pouco antes ou logo a seguir, despareceram ou nunca chegaram ao Parlamento: LCI, UDP, MRPP, PCP (ml), POUS, OCMLP, PSR, além de outros. Nunca os partidos mais marcadamente marxistas, com ou sem deputados eleitos, somaram tão poucos votos como agora…

 

Este ano de comemoração vai ser de viva controvérsia. Não vão faltar os argumentos radicais. Progresso e miséria vão ser frequentemente referidos. Riqueza e pobreza não faltarão ao debate. Desordem e melhoramento serão facciosamente defendidos. Ainda bem. Pode ser que resulte, em fim de contas, mais conhecimento de nós próprios e menos idolatria.

 

Vamos ficar a saber que nunca o Serviço Nacional de Saúde esteve tão em crise como agora. Nunca os mais pobres foram tão mal servidos. Como saberemos ainda que nunca, como agora, tantos processos gigantescos de políticos e ex-políticos, de bancos, empresas financeiras e de serviços, de transportes públicos, de construção e de telecomunicações duraram tanto tempo, estiveram tantos anos em investigação e inquérito, à espera… Nunca como agora houve tanta desordem na imigração, tanta miséria na imigração ilegal e tanta desordem nas fronteiras. Ao mesmo tempo que, tal como nos anos 1960, os valores da emigração de portugueses para o estrangeiro atingem picos inimagináveis.

 

Mas também vamos ficar a saber que os últimos anos têm sido de rigor financeiro e de excedente público, de poupança e de diminuição da dívida. Que os rendimentos pessoais e familiares têm melhorado. Que a pobreza tem diminuído.  Que, apesar das escandalosas falhas, nunca houve tanta educação, tanta instrução e tanta formação como agora.

 

Abril é o melhor mês. Mistura memórias e desejos. Cravos e jacarandás.

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Público, 30.3.2024

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29.3.24

“O Avô e os Netos Falam de Geologia” - FINALMENTE, 4ª edição


Por A. M. Galopim de Carvalho

Este livro é uma ideia tão feliz quanto necessária e útil. O seu valor pedagógico é comparável aos cadernos de iniciação científica de Rómulo de Carvalho. Com uma diferença que lhe acentua a utilidade: é que me parece que precisam tanto dele os jovens alunos como os professores do ensino básico e secundário que temos e em que me incluo. Recomendá-lo-ei aos meus alunos do secundário, assim como tomarei a iniciativa de o recomendar aos colegas de grupo disciplinar e ainda solicitarei à direcção da Escola que adquira meia dúzia deles para a biblioteca. 

José Batista da Ascenção

Professor de Biologia e Geologia da Escola Secundária Carlos Amarante, Braga

 

Sobre o livro

Naquele Verão, era quase sempre com o Sol a descer para lá do Oceano, que o avô falava das muitas coisas que haviam preenchido o seu mundo como geólogo e professor de geologia. Sob o alpendre coberto de hera, no pequeno terraço anexo à casa, uma grande mesa com tampo de ardósia, onde se podia escrever com giz, e algumas cadeiras eram o centro preferido para estas conversas com os três netos. Liberta a mesa de tudo o que servira o jantar, o Domingos e os gémeos Francisca e Mateus, rodeando o avô, tinham nos olhos o brilho da curiosidade. Mais velho, o Domingos, terminara o 7º ano de escolaridade. O Mateus e a Francisca tinham concluído o 6º. O tempo de férias era agora todo deles, com praia pela manhã, jogos e leituras, dentro de casa, nas horas mais quentes da tarde e aquele apetecido convívio ao fim do dia, que os conduzia a maravilhosas viagens e aventuras. 

Embalados nas palavras do avô, “caminhavam” sobre rochedos em altas montanhas, “corriam” no solo fofo das estepes e pradarias, “pisavam” o chão áspero e duro dos vales secos e gélidos da Antárctida, “respiravam” a humidade quente e perfumada da floresta amazónica, “mergulhavam” nas profundezas do oceano e “nadavam” nas águas tropicais, límpidas e mornas, por entre corais e peixinhos de todas as cores. Ouvindo as histórias que o avô contava, “subiam” ao topo de vulcões jorrando lavas incandescentes ou projectando nuvens imensas de cinza, “escorregavam” nas dunas escaldantes no deserto do Sahara ou “percorriam” grutas repletas de cristais e imaginavam-se entre dinossáurios e muitos outros animais desaparecidos.

Encorajado pelo interesse e pela atenção dos netos, o avô não parava de falar. Paisagens que percorrera, profundas minas a que descera, museus que visitara, grandes figuras que conhecera e episódios que vivera ou presenciara eram condimentados com ensinamentos nos domínios em que trabalhara e que, ao mesmo tempo, estivessem entre as matérias constantes dos programas escolares destes três elementos do seu pequeno e interessado auditório.

E era tudo tão agradável e entusiasmante. Ouvir o avô era como ver um filme ao lado de alguém que explicava e tornava fácil o que parecia difícil de entender. A cada passo, as novas palavras necessárias ao discurso iam sendo descodificadas, “traduzidas por miúdos”, como dizia o avô, ganhando significado.

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(Na introdução da 1ª edição)

 

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27.3.24

ESCOLA PÚBLICA -CARTA ABERTA AO FUTURO GOVERNO

Por A. M. Galopim de Carvalho

(saído no Público online, no passado dia 20)

Na sua bem visível luta de há anos e que dá mostras de prosseguir, os professores têm posto a nu algumas vertentes da degradação da Escola Pública, uma deplorável e angustiante realidade. A oitava ronda do PISA (programa de avaliação da OCDE) dada a conhecer no ano que findou, mostrou que, em 30 países, Portugal ocupa o 30º lugar em literacia científica, o 29º, em Matemática e o 24º, em leitura, resultados que nos envergonham e revelam a deplorável e manifesta pouca importância dada a este sector da nossa sociedade. Com base nas classificações (os “rankings”, como se tem dito) oficialmente divulgadas, fica claro que Escolas Públicas más e alunos maus, em quantidade preocupante, são, entre nós, uma vergonhosa realidade. Temos vindo a esvaziar conteúdos e a criar resultados fictícios para mostrar à OCDE. As direcções das escolas são pressionadas no sentido de facilitar as aprovações e os professores são convidados a agirem em conformidade. Reprovar um aluno representa, para o professor, e para os colegas do conselho de turma, terem de justificar essa decisão, em moldes que mais parecem um castigo, a que eles fogem subindo as notas.

Salvo as muitas e boas excepções, estamos a lidar com uma geração de adolescentes sem qualquer interesse pelo saber, ignorantes de quase tudo, que não leem nem sabem escrever português, cujos pais, apenas desejam que os filhos tenham aprovação e, se possível, com boas classificações. Grande número de pais ou encarregados de educação não está à altura das suas responsabilidades. Pais e encarregados de educação, já instruídos e educados no pós-Revolução de Abril, a quem a escola deu, igualmente, muito pouco.

A classe política, no seu todo, a quem os militares de Abril, há 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente, entre outras realidades, de facultar conhecimento, civismo, cidadania, em suma, a uma sociedade que aceitou conduzir.

Entre os sectores da vida nacional, que muito pouco beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia, está a educação e, aqui, a escola falhou completamente. A iliteracia cultural e científica, mesmo aos níveis mais básicos, de uma parte importante da nossa população, a todos os níveis socioprofissionais, a sucessiva e elevada abstenção em actos eleitorais, a irracionalidade e violência associada ao futebol e o elevado número de consumidores de programas de TV de mais baixo nível cultural são a prova provada desse falhanço. 

São muitos os portugueses a quem a escola deu e continua a dar diplomas, mas não deu e continua a não dar a educação, a formação e a preparação essenciais a uma cidadania plena. Educação, formação e preparação, três grandes défices que o dr. António Costa, em começos do seu mandato, já lá vão 8 anos, disse serem a sua grande preocupação, preocupação que, infelizmente, pouco passou das palavras.

Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a história já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. 

Todos sabemos que se alargou a escolaridade obrigatória e gratuita até ao 12º ano. E isso foi bom. Foi, mesmo, muito bom. No meu tempo, a escolaridade obrigatória e gratuita era a chamada 3ª classe (actual 3º ano). Todos sabemos que o parque escolar deu um grande pulo em frente, comparativamente ao de um passado que nos envergonhava. Mas a verdade é que não chega. Está, mesmo, muito longe de chegar.

Pergunto muitas vezes que infelicidade caiu sobre uma significativa parcela do nosso povo, que rejeita, com o sorriso da ingenuidade ou da iliteracia, tudo o que convide a pensar, a reflectir sobre si mesmo e sobre o que o rodeia. Um mundo, tantas vezes, nas mãos de políticos incompetentes e oportunistas de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.

Todos sabemos que há boas e excelentes escolas públicas, que há bons e excelentes professores, que há bons e excelentes alunos, mas o essencial do problema que temos de enfrentar reside na quantidade preocupante de escolas más, professores maus e de alunos maus.

A mola real de uma verdadeira e eficaz política de Educação reside na dotação orçamental que lhe é destinada e que tem de ser adequada à importância deste sector na sociedade. Da satisfação desta necessidade depende a resolução de todas as situações e problemas do sector, de há muito, identificados.

A preparação de professores deveria ser pensada de molde a oferecer níveis de excelência compatíveis com a sua importância na sociedade, oferecendo saídas profissionais adequadamente remuneradas e atraentes.

O actual sistema de avaliação dos professores, demasiado injusto, não ajuda a elevar o nível do ensino. Avança-se por quotas e não por mérito. Praticamente, nada avalia. Propostas de avaliações a sério têm sido rejeitadas por parte dos muitos que não querem ou receiam ser avaliados. Neste capítulo, os maus professores, que os há e não são assim tão poucos, os tais que recusam as avaliações a sério e veem na Escola um emprego assegurado até à aposentação, têm contado com o apoio dos sindicatos, que põem ao mesmo nível os bons e os maus profissionais.

É preciso pôr em prática uma rigorosa supervisão científica e pedagógica dos manuais escolares. São muitos os que se repetem acriticamente, com noções estereotipadas e, por vezes, com erros, tantas vezes denunciados.

Impõe-se a necessária dignificação dos professores e educadores, num conjunto de acções, envolvendo salários compatíveis com a sua relevância na sociedade, colocações, libertação de todas as tarefas que não sejam as de ensinar e outras, postas em evidência nas suas reivindicações.  

O pessoal não docente representa um conjunto de elementos fundamental no universo do ensino, pelo que é forçoso dar lhes um tratamento, em termos de dignidade e de salários, a condizer.

É urgente demolir o obsoleto edifício da Educação que temos tido e, em seu lugar, fazer surgir um outro, concebido e levado a cabo, numa profícua colaboração entre governos e oposições, para durar três ou mais legislaturas. Desta vez, será necessário ouvir os bons professores (que os há) e dar início a uma campanha poderosa, com base na verdade e no dever patriótico, que entre na poderosa “máquina ministerial”, melhore o que tiver de ser melhorado e varra o que tiver de ser varrido.

 

Termino dizendo que considero os professores, incluindo os educadores, entre os mais importantes pilares da sociedade e, uma vez mais, que é necessário e urgente conferir-lhes o estatuto, a atenção e a dignidade compatível com essa importância.

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A. M. Galopim de Carvalho

Professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa


 

 

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23.3.24

Grande Angular - Vésperas

Por António Barreto

As últimas eleições não trouxeram soluções, nem tranquilidade. Muito menos estabilidade. É quase universal a crença na agitação que se segue, os desequilíbrios parlamentares e sociais, a instabilidade necessária e provavelmente as novas eleições a curto prazo. Polarização política e fragmentação partidária estão nas cartas. A animosidade pública nunca foi tanta. A virulência do argumento político nunca ou raramente esteve tão presente como agora. E note-se que a vontade expressa de todos os partidos de distribuir dinheiros a todos os grupos sociais o mais rapidamente possível não é sinal de força nem de abundância: é sinal de fraqueza e de competição demagógica. Nenhum partido se mostra capaz, por si só, de orientar, dirigir e impulsionar um esforço nacional, assim como de congregar forças rivais. Os principais partidos esperam o desastre dos outros e nada parecem fazer para ultrapassar a instabilidade que se anuncia.

 

O Chega tem sido a surpresa da vida política nacional. E das eleições. Os seus próprios apaniguados devem estar surpreendidos. Como já tanta gente disse, se aparecem e se têm este êxito, é por motivos que devem ser investigados, sentidos e estudados. E sobretudo compreendidos.

 

Se a democracia não consegue detectar as razões pelas quais o Chega aparece e progride, é porque é cega e estúpida. Se a democracia não consegue integrar o Chega na luta política, nas eleições e nas instituições, é porque é sectária e fanática. Se a democracia não consegue eliminar as raízes do Chega, assim como as terras que lhe são férteis, é porque não tem força. Se a democracia não consegue, por actos e gestos, não por palavras, mostrar à população a carga demagógica e ridícula da política da “vassoura e da limpeza” do Chega, é porque é politicamente impotente e culturalmente medíocre.

 

Em poucas palavras: ou a democracia transforma o Chega ou o Chega transforma a democracia. Nestes cinquenta anos, a democracia portuguesa conseguiu integrar, dissolver e transformar partidos extremistas e radicais, revolucionários ou não. A democracia portuguesa, mesmo vulnerável, mesmo imatura, conseguiu integrar e transformar os seus delatores e os seus subversivos. Também poderá fazê-lo a estes. Se souber mudar, ouvir, ver, sentir e perceber.

 

Esperam-nos grandes combates. Enormes confrontos. Entre partidos. Entre instituições. Entre grupos e classes sociais. Muitos consideram que tal facto é útil e essencial para a democracia. Dizem que só assim as pessoas e as organizações se esclarecem e se definem. Que só dessa maneira toda a gente é chamada a revelar as suas posições. Para uns, trata-se sobretudo de questão moral: cada um deve dizer ao que vem e o que quer. Para outros, a separação das águas é condição de luta e de esclarecimento: só assim, com separação e afrontamento, o bem e a verdade vêm à tona.

 

O problema é que os grandes combates deveriam ser travados, não uns contra os outros, mas contra a pobreza, a corrupção, a violência e o preconceito. Ora, tanto à esquerda como à direita, há gente que perfilha estas lutas e estes objectivos. E tanto à esquerda como à direita há também preconceito, cobiça e corrupção. Separar todas as esquerdas de todas as direitas é simplesmente declarar a guerra das classes. Sem proveito aparente.

 

Não se trata, como já há quem o diga, da velha lengalenga que afirma que “já não há esquerda e direita”, o que aliás parece ser um traço específico da direita. Não, não é verdade. Sim, há esquerda e direita. Só que nem uma nem outra têm o monopólio da verdade, da honradez e da liberdade. Nem uma nem outra têm o exclusivo da maldade, da cupidez e do despotismo. Mas há certos momentos, certas fases da evolução histórica, certas situações sociais e políticas que exigem esforço comum, convergência de objectivos e de uns tantos propósitos, sem os quais a deriva política pode levar facilmente a desastres.

 

Não é verdade que a divisão entre facções, entre partidos e entre instituições seja condição essencial para poder meter ombros aos outros combates, os mais graves e mais urgentes. Na verdade, os combates entre facções já destruíram muitas democracias. Da Alemanha à Rússia, da Itália a Espanha e a Portugal, do Brasil ao Chile, não faltam exemplos de países e democracias que se perderam nas lutas entre facções e onde os resultados nunca foram favoráveis à liberdade, à paz e à honestidade.

 

Mais do que nunca, ou quase, Portugal necessita de convergência entre as principais facções. Para evitar cenas como as vistas e ouvidas estas últimas semanas, por exemplo na justiça. Aqui, a guerra entre instituições, entre profissões, entre estatutos e condições, só pode levar a histórias como estas, de verdadeira obscenidade, com acusações definidas e apagadas, com arguidos pronunciados e ilibados, com prescrições anunciadas, com decisões feitas e desfeitas várias vezes. Os protagonistas da justiça têm dificuldade em dar-se conta de si próprios. Sem intervenção política de carácter nacional, de consenso e convergência, pouco ou nada será possível. Sem revisão profunda da política de justiça, da legislação e da organização, pouco ou nada há a esperar da justiça como contributo para a liberdade e a democracia.

 

Tanto quanto a justiça, saúde e educação necessitam de esforço jamais visto. Os dois mundos entraram em colapso e, sem reforma e trabalho colossais, novos desastres estão à vista. Mais ainda, o país parece condenado a uma sucessão de poucos anos de progresso seguidos de muitos de atraso. Ou uma espiral de pequeno melhoramento seguido de longo retrocesso. Um passo em frente, diante da Europa, dois passos atrás, perante a mesma Europa. Esta espécie de triste sina, de fatalidade, não resulta da sorte, é obra dos homens e das mulheres. Das elites e do povo.

 

Polarização e bipolarização! Há muita gente que acarinha estes termos e o que eles anunciam. Esquerda contra a direita! Classe contra classe! Capital contra o trabalho! Trabalho contra o capital! Tocar a rebate pelos combates vitais! Promover a guerra entre classes, entre instituições! Nada disso trará qualquer coisa de boa ao país e à população. 

 

União nacional? Nem pensar nisso. Nunca deu bom resultado, a não ser, em certos países, em tempo de guerra. Unidade de todos os partidos? Não resulta. Coligação de todas as esquerdas contra coligação de todas as direitas? É uma solução, mas não se afigura especialmente produtiva. Coligação das forças políticas centrais e moderadas? Está nas cartas. Mas há quem não queira ver.

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Público, 23.3.2024

 

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18.3.24

Pergunta de algibeira

 

Alguém é capaz de indicar os erros nesta imagem?

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16.3.24

Grande Angular - A glória fátua do desastre

Por António Barreto

As eleições realizaram-se a 10 de Março. Há uma semana. Os resultados conhecidos trouxeram grandes surpresas. Mas ainda não se sabe realmente quem ganhou. As previsões têm alta probabilidade, mas não são ainda certezas. O apuramento dos votos ainda não acabou. Não se percebe porquê, mas a contagem de votos de emigrantes fica para o fim. Poderia estar pronta desde as vésperas da eleição. Os resultados poderiam ser logo acrescentados aos primeiros dados conhecidos, evitando-se assim esta verdadeira desconsideração pelos eleitores a viver no estrangeiro. Tudo ficaria resolvido. Mas não. Ficam a faltar quatro deputados que podem mudar os resultados! E ficamos quase duas semanas à espera.  À espera... Os eleitores não percebem. Mas isso não importa.

 

Ainda não se pode dizer com segurança quem tem mais votos e mais deputados eleitos. Para efeitos de indigitação, não se sabe quem, pessoa e partido, vai ser chamado a formar governo. Assim, o governo não existe, nem se conhecem os futuros ministros. Por direito próprio, o Parlamento deveria reunir no dia seguinte à sua eleição. Apesar disso, entre nós, essa inauguração fica dependente de factores burocráticos e políticos pouco recomendáveis. Logo, o Parlamento ainda não reuniu, o que só poderá acontecer lá para 25 deste mês, pelo menos duas semanas depois das eleições. Não se conhecem ainda todos os deputados eleitos. Por isso, o Primeiro-ministro e os seus ministros ainda não tomaram posse. Pelo que não há programa de governo. Muito menos aprovação ou rejeição de uma moção de confiança ou de censura. O que quer dizer que não há sequer ideias sobre a possibilidade de se preparar orçamento novo ou rectificativo.

 

Sendo verdade tudo o que precede, não deixa de impressionar aquilo de que é capaz a imaginação dos políticos portugueses! Imaginação e espírito quezilento. Assim como egocentrismo impertinente e soberba partidocrática. Já vários partidos anunciaram que, sem conhecer governo, votariam moções de rejeição, não se sabe de quê, nem de quem. Outros garantiram que votariam contra o programa de governo e o orçamento que não conhecem pela simples razão de que não existem. Não se dão sequer ao trabalho de afirmar candidamente que “vão ler” ou “vão ouvir” … Não! Já sabem que não votam, nem querem.

 

O PCP vota contra. Ponto. O Bloco vota contra. Ponto. O PS faz oposição e vota contra. Ponto. O PSD diz que “não é não” e já anunciou há muito que não fala com o Chega, nem quer bloco central. O Chega diz que, se não for previamente consultado, vota contra. Convém repetir, pois parece inacreditável. Já há quem vote contra uma moção de censura, que não está escrita, que não se sabe se haverá, cujo autor se desconhece e cujo teor é um mistério. Não se sabe qual é o governo, nem qual é o seu programa, muito menos em que condições é formado, mas já se sabe que há quem vote contra. Parece que a força da oposição, das oposições, reside nesta maravilhosa frase digna de banda desenhada: “Não sei o que é, mas sou contra!”.

 

O PSD deixou-se enrolar naquela que foi a maior vitória dos Socialistas, que perderam a eleição, mas ganharam o combate. Com a ajuda dos mais pequenos e o contributo de umas pessoas avulso, conseguiram demover o PSD e obrigá-lo a afirmar, antes das eleições, que não fariam alianças nem governos com o Chega. Daí o famoso “não é não!”, autêntica corda para o suicídio. Pagou assim uma apólice de seguro de vida aos socialistas. E reforçou o papel do Chega na oposição, coisa que interessa de novo aos socialistas. 

 

De toda a maneira, isto tudo, que passa por ser o mais importante e é o mais falado, é próprio da coreografia do governo, da política e dos partidos, sempre mais interessados no adjectivo do que no conteúdo. Sempre mais preocupados com os processos do que com os objectivos. Sempre mais atentos às suas contas de “ganhos e perdas”, do que à realidade social e económica e à substância dos serviços públicos.

 

Estranho país este, esquisito sistema partidário este, em que os grandes partidos, de quem tudo depende, se revelam medrosos e covardes, enquanto os pequenos partidos, atrevidos como não se imagina, de quem nada depende, com menos de meia dúzia de deputados, ousam dar a entender que tudo depende deles, que “não estão dispostos para isto”, que “estão disponíveis para aquilo”, e que “não contem com eles para aqueloutro”.

 

Não conseguimos afastar esta sensação de que a classe política portuguesa não está à altura de resolver os problemas que cria. Uns, especialistas em minas e armadilhas, entregam-se à intriga com facilidade. Outros ainda, pretensos conhecedores da alma humana, dedicam-se aos adjectivos e aos processos da política, como se os meios fossem mais importantes do que os fins.

 

É lamentável ter de o dizer, mas há quem queira sempre o pior. São condenáveis as generalizações, mas somos obrigados a verificar que quase todos estão interessados no desastre, na impossibilidade de governo, na dificuldade da coligação, na impotência de qualquer solução, no adiamento de qualquer acção e na realização de novas eleições. O Chega quer subir ainda mais. O PSD julga poder assegurar uma maioria. O PS quer ter uma segunda oportunidade. Os pequenos partidos, à beira da evaporação, procuram uma saída. Todos convencidos de que, assim, liquidam o Chega e vão buscar os seus despojos. O que o país pode sofrer, durante os próximos meses, até anos, na economia, na sociedade, na política e na cultura, parece ser totalmente indiferente. O que importa é o casino da política e o puzzle das teorias.

 

Há duas hipóteses. Uma, a aliança da direita, entre PSD, CDS e Chega. Outra, dita de bloco central, entre o PSD e o PS. Quase ninguém quer uma. Quase ninguém quer outra. Acordos sólidos, mesmo se sectoriais ou parcelares, mas com palavra dada e documento escrito, conhecidos pelos eleitores e atraentes para os parceiros sociais? Também quase ninguém quer. Outras maneiras de participar, dialogar e colaborar, com ou sem participação no governo? Ninguém quer nem está para isso. O que terá dado a estes partidos, a esta classe política e a estes políticos para sacrificarem o seu país a interesses menores e a vaidades maiores? Querem a terra queimada e chamar-lhe paz e progresso…

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Público, 16.3.2024

 

 

 

 

 

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15.3.24

«Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade» 2ª edição actualizada, com prefácio do Prof. Carlos Fiolhais


Por A. M. Galopim de Carvalho

Merecia, há muito, uma reedição este livro, Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade, da autoria do Professor Galopim de Carvalho, publicado pela primeira vez na Âncora Editora em 2007. De facto, a expressão “há muito” não será a mais apropriada do ponto de vista de um geólogo, já que este lida com intervalos temporais de milhões de anos. Do ponto de vista da história da Terra, a edição e a reedição deste livro sobre as Ciências da Terra são praticamente simultâneas. Seja como for, a necessidade de reeditar esta obra diz bem do interesse que ela merecidamente continua a suscitar no público. 

A expressão Coma Bola Colorida, uma citação de um famoso verso do poema “Pedra Filosofal” de  António Gedeão, pseudónimo literário de Rómulo de Carvalho, o professor de Ciências Físico-Químicas que é o patrono da  cultura científica em Portugal, refere-se ao nosso planeta, que  tem belas cores: decerto o azul do mar e o verde da vida, mas também as cores das rochas, que podem ir dos tons claros do quartzo aos escuros do basalto, passando pelos cinzentos e rosa dos granitos e pelos tons vermelhos da algumas argilas (pois as há multicolores!). Mas uma criança que quisesse agarrar no nosso planeta teria de ter um tamanho gigantesco. Basta pensar que a bola onde vivemos tem cerca de 6400 quilómetros de raio, ao passo que uma bola de futebol adequada a uma criança terá cerca de 20 centímetros de raio. Um rapaz ou uma rapariga poderão ter entre um metro e um metro e meio. Feitas as devidas proporções, a altura da criança teria de ser à volta de 40 mil quilómetros, o que, parecendo muito, não é nada à escala do Sistema Solar: é um décimo da distância entre a Terra e a Lua.

Uma metáfora impressionar-nos-á tanto mais quanto mais fora da realidade estiver. E é indiscutivelmente uma bela metáfora aquela que Galopim de Carvalho escolheu, em 2006, para título do seu livro, publicado quando se comemoravam os cem anos do nascimento de Rómulo de Carvalho. A nossa “bola colorida” já deu 17 voltas ao Sol deste então. Estamos todos mais velhos. Mas na Terra não se nota muito. Só não está na mesma devido às modificações que lhe fizemos, das quais a mais grave será o aumento desmesurado dos gases de efeito de estufa, como o dióxido de carbono, na atmosfera. Mas, para quem tem 4,54 mil milhões de anos de idade, como é o caso do nosso astro, 17 anos não são nada, absolutamente nada. O livro mantém-se novo, tendo a revisão sido menor: naquilo que está bem não se deve mexer. Em particular, o prefácio de José Mariano Gago tem plena actualidade, pelo que se mantém rigorosamente na íntegra. Ao relê-lo, senti saudades do seu autor: faz-nos falta aqui neste nosso quinhão do planeta para avivar a luz da ciência. Foi ele que instituiu, em 1996, o Dia Nacional da Cultura Científica, precisamente no dia de aniversário de Rómulo de Carvalho, para prestar justa homenagem aquele que, além de professor e poeta, foi também um grande divulgador de ciência.

O geólogo Galopim de Carvalho, a quem um dia chamei “Mestre das Pedras e das Palavras” por ser tão exímio com as primeiras como com as segundas, é, na esteira de Rómulo, um grande divulgador de ciência. Com uma vivacidade que tem resistido ao passar dos anos (para ele os anos que sejam abaixo de um milhão não são relevantes!), tem-nos dado o melhor do seu saber e talento quando nos descreve a incrível variedade da Terra e nos conta o longuíssimo processo histórico que moldou o nosso lugar no espaço. Neste livro, que acresce a mais de três dezenas de outros seus títulos, Galopim traz-nos, num português de lei, uma síntese dos resultados mais importantes das Ciências da Terra:  a estrutura, a dinâmica, a pluralidade de paisagens do nosso planeta, incluindo as pródigas marcas da vida que é quase tão antiga como ele. Galopim de Carvalho usa um recurso que Rómulo de Carvalho (por coincidência, partilham o mesmo apelido!) também usava desenvoltamente e que devia ser mais comum na divulgação da ciência entre nós: recorre à história da ciência. Mostra assim que a ciência é uma conquista humana, um conjunto de conhecimentos que foram duramente extraídos da Natureza pelos cérebros e mãos de diligentes seres humanos ao longo do tempo, uns na peugada dos outros, num empreendimento contínuo e a continuar. Mais importante que os conhecimentos, são os métodos para os obter. Sim, é contada em traços gerais a história da Terra, mas é também contada a história da tomada de consciência da historicidade geológica, que é muito recente. Com efeito, foi só no século XIX que os geólogos se aperceberam da enormidade da nossa história planetária, ultrapassando antigos preconceitos, alguns de raiz bíblica. Os geólogos que olharam para as modificações lentas e graduais da Terra foram-lhe dando uma idade aproximada que nada tinha a ver com as mitologias e que excedia mesmo largamente a que era estimada por físicos e químicos com base em considerações termodinâmicas. E era mais fiel a sua cronologia, justificada pela acumulação de observações de lagos e oceanos, vales e montanhas, estratos e fósseis, etc. do que a dos seus colegas físico-químicos, fundada em modelos matemáticos.

Ao  Terra tem sido palco de um rol de acontecimentos, não raro surpreendentes: arrefecimento a partir de uma massa ígnea inicial, impacto com outro astro para originar a Lua, quedas de meteoroides, formação dos oceanos, surgimento dos primeiros organismos, início da fotossíntese e oxigenação da atmosfera, proliferação da vida com a «invenção» do sexo, extinções maciças por razões em parte misteriosas, movimentos de placas tectónicas e outros, sismos e vulcões, idades do gelo, e, nos nossos tempos, as transformações de responsabilidade humana que alguns julgam merecer um novo período geológico: o Antropoceno. Se hoje sabemos algumas coisas sobre estes fenómenos foi graças aos esforços de homens e mulheres cujos nomes vêm referidos neste livro. Mestre Galopim é o nosso guia nessa viagem nas páginas que se seguem, destacando naturalmente os sítios e eventos em Portugal, onde está ou de onde vem a maioria dos seus leitores.  Ele preocupa-se com a fácil compreensão por parte de quem lê, nunca subestimando a inteligência dos leitores, uma regra básica na divulgação científica. Por exemplo, tem o cuidado de nos explicar, recorrendo a grãos de arroz e a badaladas de sinos, o que significa um milhão de anos, que afinal é uma «migalha» na história da Terra. Para nos acicatar a imaginação, fala de um bolo de aniversário para a Terra com 4540 milhões de velas. São, indiscutivelmente, muitas velas! Quando os dinossauros desapareceram, o bolo «só» tinha 4474 milhões de velas.

Se com José Mariano Gago a ciência entrou nas nossas casas, é preciso que ela entre mais e que fique bem instalada. Galopim de Carvalho é um exemplo inspirador de como é possível, com vista a tal desiderato, fazer bem-sucedida divulgação de ciência, num país em que largos sectores são avessos à ciência. São utilíssimos livros como este que descrevem em linguagem simples o chão que pisamos, o seu início e as suas metamorfoses, as suas riquezas e misérias, os seus encantos e mistérios. Em meu nome e – seja-me permitido – em nome de todos os leitores expresso-lhe a minha, a nossa, gratidão, por tudo o que temos aprendido dele e com ele. Sei que a vida humana é um lampejo em comparação com o tempo da Terra, mas desejo que, no seu caso, esse lampejo se prolongue, prosseguindo a iluminação que tem espalhado. Desejo que o «Mestre das Pedras e das Palavras» continue a ajudar-nos a compreender o nosso planeta não só com a sua grande sabedoria, mas também com a sua enorme jovialidade e a sua extraordinária simpatia.

Coimbra, 15 de Dezembro de 2023

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2.3.24

Grande Angular - O fim dos partidos políticos

Por António Barreto

O fenómeno não é novo. Mas é mais real do que nunca. Esta eleição veio acelerar o desaparecimento dos partidos políticos. Pelo menos, tal como os conhecemos durante décadas. A campanha está sobretudo concebida para a televisão e “as redes”. O que quer dizer preparada para as aparições dos chefes à saída dos restaurantes, as visitas dos chefes a hospitais e ao repouso dos chefes. Tudo está pensado para que os momentos importantes sejam os debates e as entrevistas de televisão dos chefes. Até os programas da manhã, que não era possível imaginá-los com política à mistura, são agora feitos de modo a que os chefes apareçam e por ali espalhem os seus talentos privados e as suas sofisticadas modéstias.

 

Na verdade, não estamos perante uma competição entre partidos, muito menos uma apresentação de alternativas. Estamos, isso sim, diante de um combate de chefes. E de uma passagem de modelos. Se a eleição fosse a do Presidente da República, ainda vá. Mas não é. Não se trata de cargo pessoal. Só combate de chefes. Mesmo os que elogiam o colectivo, deixam-se arrastar pelas vaidades dos duelos. Mesmo o Bloco e o PCP, tão palavrosamente elogiosos do trabalho de equipa, acabaram por tudo fazer girar à volta do chefe.

 

São cada vez mais fortes os indicadores das novas tendências, as que substituem o papel dos partidos pela função dos líderes. Poderá dizer-se que não se trata de fenómeno novo. Mas novo é o facto de tal se fazer à custa da dissolução sistemática das estruturas dos partidos. Os organismos partidários são meros instrumentos do Chefe. É visível e deplorável o apagamento de estruturas partidárias. A doutrina comum, a natureza de classe, as inclinações religiosas, as tradições comunitárias e as opções doutrinárias desaparecem, deixando lugar às mais banais proclamações adjectivas.

 

Movimentos novos e partidos tradicionais agem no mesmo sentido, no da destruição do partido como organização política autónoma e reconhecida. Pelo que não percebem das mudanças do eleitorado. Pelos erros que cometem. Por esta espécie de autismo em que os partidos vivem, na certeza de que tudo o que está mal é da culpa dos outros, da extrema-direita, dos esquerdistas, dos imigrantes, da juventude sem credo e do povo sem crença!

 

Sem partidos políticos, não há democracia. É, para muitos, um princípio indiscutível. Mas não é possível deixar de pensar em todas as outras possibilidades. O que é a democracia sem partidos políticos, ninguém sabe. Mas…. Há quem pense que é possível organizar a vida política das comunidades com outras instituições e de outras formas. Teoricamente, a democracia pode ser melhor sem partidos. Com menos “rackets” organizados para capturar o Estado e as autarquias.  Mas também pode ser pior, com movimentos ditos “inorgânicos” e efémeros, sem identidade histórica nem programa, sem doutrina nem valores de referência, quase só energia e protesto. E vontade despótica.

 

Os partidos políticos podem ser fonte de racionalidade, tal como os “movimentos” são factores de irracionalidade. Os novos movimentos, associações e grupos efémeros, dependem de racionalidades ou interesses externos, ligados a uma pessoa, herói ou demagogo.

 

Há vários exemplos em Portugal. É uma realidade em crescimento. Chega, PAN, ADN, Bloco de esquerda, Nova Direita e outros pertencem a esta nova variedade. Os dois grandes partidos, PS e PSD, resistem, mas já exibem as suas fraquezas. O mais antigo, PCP, está em vias de desaparecimento, como em quase todo o mundo. O CDS já despareceu. É possível que a democracia portuguesa seja dominada, nas próximas décadas, por figuras efémeras, agentes de interesses, mafias internacionais…

 

As presentes eleições e respectiva campanha são as mais certeiras demonstrações deste caminho para a destruição dos partidos como centros de racionalidade. Uns desapareceram. Outros nasceram, mas já não são partidos políticos no sentido conhecido. Os que melhor resistem são agora obrigados a compor com movimentos, com iniciativas sem história e talvez sem futuro. Mas que são o que é hoje a política. Os que se mantêm como partidos deixaram de perceber os cidadãos. E deixaram de ter que lhes dizer. Não recebem inspiração, nem lhes dão valores, só subsídios e pensões. O tema não é evidentemente português. O mesmo acontece em vários países, na Itália e em França, ou na Europa central e oriental. Muitos são os partidos socialistas, social-democratas, democrata-cristãos, comunistas e radicais que já desapareceram.

 

Curiosamente, os partidos tinham mais existência, como organizações e estruturas associativas, quando tinham líderes fortes e notáveis (Soares, Sá Carneiro, Cunhal…), do que agora que parece terem dirigentes iguais aos militantes. Em certo sentido, parece poder dizer-se que os chefes muito fortes eram traços de continuidade ou faróis de reconhecimento. Os seus partidos podiam perder ou ganhar, mas eles mantinham-se por períodos razoáveis (talvez de mais, quem sabe?) e os programas duravam com eles. Hoje, líder derrotado é líder morto. Chefe que não vence vai para a rua. Líder que vence, fica e manda.

 

Chefes fortes de partidos fracos são más receitas para a democracia. São partidos com poucas relações com as instituições, as associações profissionais, os sindicatos, as empresas, as religiões, as universidades e outras, que reforçam as democracias e as liberdades. Chefes fortes querem dar voz ao descontentamento, ao protesto e às pulsões naturais das pessoas em dificuldade. São partidos instantâneos e fracos que não existem sem os seus líderes de momento.

 

De modo crescente, as campanhas eleitorais têm sido viveiros de líderes fortes de partidos fracos, o que é confirmado pelas dezenas de comentadores, jornalistas, analistas e académicos que ocupam os canais de televisão. Já ninguém quer saber da espessura política e da vivacidade doutrinária de um partido. A ideia é simples: a mensagem passa se o líder passa. O líder passa se tudo depende dele, se só ele tem voz e se os militantes se limitam às árias do coro ou às funções do papagaio. Aliás, os debates, as entrevistas e os comentários giram cada vez mais à volta das questões adjectivas. Com quem se alia? Quem rejeita? Quem exclui? De quem quer apoio? E se perder muito? E se ganhar pouco?

 

Convém não esquecer: os partidos fracos tornam fracos os fortes líderes.

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Público, 2.3.2024

 

 

 

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