24.6.23

Grande Angular - Emigrantes. Imigrantes.

Por António Barreto

Há anos, dez, vinte, que se sabe o que se passa no Samouco ou em Alcochete, isto é, no estuário do Tejo. Sabe-se tudo sobre aquela miséria vista todos os dias da ponte Vasco da Gama. Já se ouviu falar na ameijoa japonesa, nos bivalves tóxicos, na exportação para Espanha e na ilegalidade de todo o processo. Conhece-se ao pormenor, pelos jornais e pelas televisão, a vida dos imigrantes ilegais nos acampamentos, nas tendas e nos quartos sobrelotados. Sabe-se que igual ou parecido se passa no estuário do Sado, na ria de Aveiro e na ria Formosa no Algarve.

 

Há mais de vinte anos que a extracção e a exploração prosseguem tranquilamente. São, anualmente, milhares de toneladas de ameijoas assim apanhadas. Toda a gente sabe. Vereadores e ministros, Policias e inspectores, a ASAE, a saúde pública e o Serviços de Estrangeiros. Sem esquecer os jornalistas.

 

De repente, sem que se perceba porquê, o Samouco é notícia. Já foram Odemira e Aljezur, por razões parecidas, só que em vez de ameijoas eram mirtilos e abacates. E em vez das águas lamacentas do Tejo e do Sado, são as estufas, milhares delas. Ou então as terras do Alqueva e os olivais hipertensivos do Alentejo. E as vindimas do Douro, de que se começa a falar também.

 

Acrescentem-se os falsos endereços, os alojamentos miseráveis de Lisboa e os andares hiperlotados da margem Sul. Sabe-se tudo. Em nome do crescimento económico e do turismo, admite-se tudo. Sob pretexto de acolhimento humanitário e da hospitalidade, tolera-se tudo. Por causa do anti-racismo, aceita-se. Graças aos lucros com as exportações, fomenta-se. E por esses mesmo argumentos, receia-se a disciplina, escapa-se ao controlo, foge-se da legalidade e protege-se a marginalidade.

 

É velho e difícil problema. Lidar com a emigração e a imigração. Com os refugiados. Com os clandestinos. Com os contratados. Com os oportunistas e os traficantes. Dezenas de países e centenas de anos bastam para se perceber que o problema é medonho. 

 

Nada disso é desculpa. As autoridades portuguesas têm particular currículo de desajeito e cinismo. Gostam e não gostam de emigrantes. Aceitam e perseguem os imigrantes. Perdem e ganham com as migrações ilegais. Fingem que não viram e acusam. Não sabem o que fazem, mas denunciam os outros.

 

A ditadura do Estado Novo abominava as migrações ilegais que punham em causa a sua autoridade. Detestava a ideia de que os Portugueses se queriam ir embora! Não podia tolerar a fuga de jovens mancebos em tempo de guerra no Ultramar. Mas só perseguia uma muito pequena parte, enquanto deixava correr a maioria. Se o governo quisesse, com as leis que tinha, com as suas polícias, com uma só fronteira terrestre e a cumplicidade dos espanhóis, se o governo quisesse, dizia, estancava a emigração clandestina em dois tempos. Quase tudo, pelo menos. Mas o governo não queria. E via enormes vantagens nisso.

 

Basta recordar o facto de, a partir de certa altura, as remessas dos emigrantes ultrapassarem as receitas do turismo, a actividade emergente nesses anos sessenta. Era mais rentável receber as remessas do que os turistas.

 

Pense-se ainda nos efeitos formidáveis da emigração nas estruturas de actividade, da ocupação e do emprego. Graças à emigração, Portugal vivia, em vésperas da revolução de 1974, em situação de pleno emprego. As tensões sociais, nos campos e nas áreas metropolitanas, eram menores do que seria de prever sem emigração. Nas fábricas, faltava mão de obra. O desemprego era uma recordação. Em resumo, os governantes não podiam dizer publicamente, mas adoravam a emigração.

 

As autoridades portuguesas contemporâneas, da democracia, têm também face dupla. A emigração incomoda. Com números de emigrantes parecidos com os da década de 1960, pode o facto demonstrar uma espécie de equivalência: vive-se tão mal agora como então! Mas é difícil reconhecer o facto. Assim, pratica-se o culto da Diáspora, boa maneira de mostrar afectos. Verdade é que a emigração também é bem recebida. Até porque não tem sido possível satisfazer as aspirações dos cidadãos. Sejam os salários, sejam as oportunidades.

 

Por isso, às autoridades agrada a imigração. Aos políticos e aos empresários. Vêm trabalhadores dispostos a tudo, baixos salários, más condições de alojamento, obediência segura, trabalho sem contrato, poucos serviços de saúde e segurança social duvidosa. Ainda por cima, dizem, aumentam as receitas do Estado. O turismo em crescimento permanente e as exportações sazonais agradecem.

 

Toda a gente sabe tudo. É o pior diagnóstico que se pode fazer de Portugal e dos Portugueses.

 

Assim é que as autoridades não regulam as migrações, não disciplinam, não obrigam à legalidade e não inspeccionam as condições de vida e trabalho. Não protegem os que chegam, nem os que ficam. Ora, regular as migrações é uma das mais urgentes, necessárias e complexas acções que se espera. Regular as chegadas de imigrantes e candidatos. Estabelecer os enquadramentos desejáveis e democraticamente estabelecidos. Controlar as fronteiras e os documentos. Punir severamente os infractores, candidatos ilegais, traficantes, negreiros e criminosos de várias disciplinas que se escondem atrás da imigração.

 

Recorrer a todos os instrumentos legais conhecidos. Numerus clausus, quotas, vistos temporários, todos os dispositivos são bons, desde que legais, democráticos, públicos e respeitadores da dignidade humana. É a ausência de regulação que provoca a desordem e o conflito. É a falta de disciplina e de autoridade que está na origem da violência e da marginalidade.

 

Os residentes em Portugal, eleitores e estrangeiros legalizados, têm o direito de se exprimir sobre as políticas de imigração. Têm o direito de estabelecer quotas. Têm o direito de preferir certas nacionalidades, origens, religiões e profissões. Têm o direito de prosseguir políticas de integração dos imigrantes, com especial atenção para a língua, as culturas, os costumes, os sistemas legais e os valores da vida em comum.

 

Negar tudo isto, a pretexto da luta contra o racismo, a xenofobia, o colonialismo e outras fantasias é simplesmente contribuir para a perturbação, a desordem e o conflito que se preparam na Europa. Aquilo que se chama, em certos meios, a tolerância, a aceitação dos valores dos outros, o acolhimento humanista e a solidariedade humana, transforma-se em convite à ilegalidade, incentivo ao tráfego, recompensa à criminalidade e protecção da mais violenta exploração que se imagina. É o sonho transformado em pesadelo.

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Público, 24.6.2023

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17.6.23

Grande Angular - Independência. Isenção. Inteligência.

Por António Barreto

As melhores democracias não são apenas as que garantem os direitos e deveres políticos e cívicos fundamentais. Por exemplo, as regras do voto universal e de “uma pessoa um voto”; a da realização regular de eleições livres; o princípio de quem ganha as eleições governa e respeita quem as perdeu; e as liberdades de reunião, de associação e de expressão. Podem enumerar-se mais, mas estas são as que melhor definem o essencial desta formidável convenção que é a da democracia política.

 

Mas as melhores democracias do mundo são as que, além destes princípios, garantem outras regras simples, como sejam a democracia económica, a democracia social e a democracia cultural. O que são estas, exactamente, não é muito claro e é por vezes do domínio da fantasia. Mas até por intuição se entende o que pode ser uma democracia económica. Sendo verdade que o essencial é a democracia política. Como é igualmente certo que uma democracia política pode sê-lo de modos muito diversos e até estar em combinação com reduzida democracia económica e cultural.

 

As democracias têm ainda, na esfera política, outras características que as qualificam e lhes dão carácter e eficácia. As formas de representação e de governo, por exemplo, são diversas, todas se qualificando como democráticas. O sistema de Justiça, por exemplo, é decisivo. Como são os sistemas eleitorais. Como ainda o sistema de governo e de Administração. Uma democracia política pode ser muito diferente de outra, não por causa dos princípios fundamentais (uma pessoa um voto, eleições livres, etc.…), mas graças a sistemas de governo muito diversos. O centralismo pode ser tão democrático quanto a descentralização ou a regionalização.

 

Uma das maiores foças do Estado reside na sua capacidade de estimular o contributo da sociedade, despertar as iniciativas independentes, deixar crescer quem merece, apoiar-se nas opiniões isentas e confiar em cidadãos livres. Estas são características que faltam tristemente ao Estado português e ao seu governo.

 

O Estado português tem enormes dificuldades em tratar livremente com a sociedade. Em reconhecer as instituições civis. Em deixar viver as associações livres. Em permitir que as empresas e os sindicatos tenham as suas vidas próprias, a sua independência. Em valorizar o contributo que os cidadãos, suas organizações e suas instituições podem dar para a vida colectiva, sem estarem dependentes dos poderes estabelecidos do Estado, do governo e dos partidos. O que se passa actualmente com os novos estatutos das Ordens é uma boa ilustração. O governo, o Parlamento e a maioria dos partidos pretendem aprovar um novo regime legal que, no essencial, se traduz pelo aumento dos poderes do Governo, pelo reforço das capacidades de interferência dos poderes políticos na vida das associações e pelo enfraquecimento da independência das Ordens. Este Governo e, curiosamente, a maioria dos partidos da oposição vivem mal com a sociedade civil forte, com as associações mais robustas e com as instituições privadas mais livres.

 

O Estado português tem enormes dificuldades em reconhecer e valorizar o papel da isenção, isto é, o contributo que podem dar, para os processos de decisão, as organizações de carácter científico, técnico e até cultural capazes de juízos isentos, ou seja, sem terem interesses directos nos planos em causa ou nos projectos em curso. Uma comunidade académica, um grupo de cientistas, uma associação de economistas, um conjunto de artistas ou uma empresa de juristas, sem interesses partidários ou económicos directos, podem dar contributos de muitíssimo valor para o bom funcionamento da sociedade. Por exemplo, todo o processo de preparação do novo aeroporto de Lisboa é, há pelo menos vinte ou trinta anos, um bom exemplo do despotismo, do favoritismo e do envolvimento de interesses. Consta que foram várias as opiniões e muitos os estudos encomendados, o que garantiria a isenção dos procedimentos e das escolhas. Acontece que os estudos e as opiniões adquiridos pelo Estado eram aquelas que o Estado pagava bem com o fim de ilustrar o que pretendia. Várias instituições mudaram de opinião pela simples razão de que o Governo também tinha mudado, de partido ou de opinião. A localização do aeroporto ou dos aeroportos, o número de pistas, a distância à capital, os meios de transporte indispensáveis e a dimensão das infra-estruturas e dos equipamentos mudaram conforme os interesses em causa e conduziram a que as organizações escolhidas se limitaram tantas vezes a documentar o que o Governo exigia.

 

O Estado português tem enormes dificuldades em formular opiniões fundamentadas, em tomar decisões cientificamente apoiadas, em julgar projectos complexos de qualquer espécie, das ciências às engenharias, das instituições às artes, da cultura à educação. A decisão política e partidária vive mal com a capacidade científica independente. Desvalorizando a ciência e a técnica, o Estado deixou fugir as competências e as qualificações que se retiraram para os sectores privados. Querendo controlar a vida, o Estado recheou-se de funcionários, mas perdeu gente qualificada. Não soube recompensar os melhores. Nem sequer respeitar as suas opiniões e os seus estudos. O Estado engordou, mas a sua cabeça diminuiu. É hoje um colossal défice de competência técnica e de sabedoria científica. Nem sequer possui a habilitação suficiente para julgar as escolhas dos interessados e as opiniões dos subcontratados.

 

O aeroporto de Lisboa arrasta-se há décadas, com as consequências da praxe: custos cada vez mais elevados, dependência de interesses alheios, perdas de oportunidade e de capacidade e derrotas diante da concorrência. O relançamento dos caminhos-de-ferro, o início do TGV e a decisão sobre a configuração eleita (a famigerada questão das “bitolas” …) atrasam-se de modo irreversível, com perdas de centenas de quilómetros e com ineficiências definitivas, com desperdício de material e de infra-estruturas. As urgentes construções de novos hospitais, de expansão dos portos, de escolas de dimensão e localização ajustadas às novas cidades, de novos serviços sociais de cuidados especiais continuados e paliativos e de tantos outros equipamentos e instituições são adiadas com terríveis consequências humanas, sociais e financeiras. Procure-se e investigue-se bem. As respostas serão parecidas. Falta inteligência ao Estado. O Governo não sabe apoiar-se em trabalho isento. O Estado detesta o contributo independente. Assim, democrático é, mas detestável, corrupto e ineficaz, também é.

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Público, 17.6.2023

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10.6.23

Grande Angular - Ainda a dissolução

Por António Barreto

A interpretação dominante é a de que a dissolução do Parlamento é um castigo. Assim como um instrumento de fabrico de uma maioria ou de uma nova solução de governo, justamente com o objectivo de castigar o anterior. Só não partilham desta interpretação os apoiantes dos partidos no governo. Isto é, os militantes do PS, hoje; os do PSD, ontem. Se os partidos trocam as suas posições, no governo e na oposição, os seus apoiantes também.

 

Isto quase elimina uma das mais importantes causas da dissolução: a vontade do Governo de verificar o seu mandato, os seus poderes e a sua força. Esta deveria ser a principal causa de dissolução, logo a seguir à mais evidente: o termo da legislatura e o fim do respectivo mandato.

 

A terceira razão, que se aplica mais explicitamente à demissão do Governo e que deveria ser excepcional, é a da verificação que não há condições para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas. Isto faz com que seja ao Presidente que compete avaliar. Ele dissolve quando “acha” que os mandatos estão esgotados ou quando “acha” que é necessário assegurar o regular funcionamento das instituições. 

 

Ora, ao contrário do que pensa muita gente, as instituições funcionam regularmente. Sem qualquer dúvida. As tristes figuras dos interrogatórios parlamentares que passam por comissões de inquérito não constituem argumento suficiente. Aliás, sem eleição uninominal, o Parlamento futuro seria parecido com o presente e os deputados seriam mais ou menos os mesmos, o que faz com que os defeitos actuais sejam os defeitos do país. Não há dissolução que lhe valha.

 

O mau desempenho do Ministério Público e da Procuradoria geral da República também não chega para qualificar de irregular o funcionamento das instituições. Na verdade, estas, na maior parte dos casos, funcionam. Têm os seus problemas, que teriam de qualquer maneira, antes ou depois de eleições. A sua abstenção, designada pelos interessados por “falta de recursos”, deve-se a orientações específicas, em casos de certa natureza de crimes, de investigações e de prováveis arguidos. Nenhum destes problemas seria resolvido com a dissolução. Não seria um novo Parlamento que resolveria os processos de corrupção dos políticos e dos banqueiros.

 

A sucessão de trapalhadas e incompetências do governo ilustra bem a falta de valor do argumento do regular funcionamento das instituições. O caso TAP não seria resolvido com a dissolução. Aliás, foram vários os governos e as legislaturas com responsabilidades directas na má gestão, nas más decisões, nos actos duvidosos e nos gestos suspeitos da TAP e da sua tutela. A dissolução não resolveria o caso da TAP.

 

Melhor ainda, o caso do aeroporto, a jóia da coroa das barafundas deste governo. São vários os ministros e diversas as legislaturas responsáveis por esta história. A dissolução do Parlamento não traria solução eficaz. O mais provável seria mesmo que um novo Parlamento trouxesse mais uma variante.

 

Estará o regular funcionamento das instituições prejudicado pela crise da justiça, dos seus atrasos, da sua ineficácia e da sua possível parcialidade? Será esse um motivo suficiente para dissolver o Parlamento e convocar novas eleições? É evidente que não. A justiça portuguesa funciona mal, cada vez pior, há anos ou décadas. Nunca uma dissolução trouxe melhoria no funcionamento da justiça.

 

Também não é provável que a dissolução do Parlamento seja remédio eficaz para alguns dos casos mais gritantes da vida social: a Educação e o Serviço Nacional de Saúde. Este último, em particular, encontra-se em miserável estado. Quase todos os últimos ministros, provavelmente todos, garantiram que a situação era difícil e todos declararam que os problemas seriam resolvidos dentro de pouco tempo e terminaram os seus mandatos deixando a situação pior do que quando lá chegaram. Sem mudança de política, sem uma revisão nacional do programa de educação, sem um novo consenso maioritário sobre a saúde, será muito difícil que uma mera dissolução, seguida do mesmo governo ou parecido, seja solução.

 

Pedro Nuno Santos e João Galamba são seguramente as pessoas que mais danos causaram a este governo e mais prejuízos deram ao Partido Socialista. Mas o grau de descontentamento da população é muito superior ao causado por aqueles dois desastres e pelos seus colegas abstencionistas ou invisíveis. A insatisfação dos cidadãos tem fonte nos cada vez piores serviços públicos, a começar pela saúde e pela educação. Tem também origem na crise crescente da justiça, da habitação e do custo de vida.

 

A sucessão de erros e incompetências avulsas, com casos de gravidade diversa, ilustra bem a deriva política em que se encontra este governo, mas que não é equivalente a uma crise institucional. Trapalhadas como os problemas do consumo do tabaco, a revenda da EFACEC, os lucros cosméticos forjados da CP e da TAP, a crise dos transportes públicos e os problemas laborais com os oficiais de justiça, os professores, os auxiliares de educação e os enfermeiros, são todos casos de políticas, não de regular funcionamento das instituições. Ora, quem avalia os problemas de políticas é o eleitorado, não o Presidente da República. As avaliações do eleitorado fazem-se com datas marcadas e calendários previstos. Estas avaliações fazem-se após o cumprimento ou desenrolar de mandatos. Estas avaliações não se fazem de acordo com o que “acha” o Presidente da República. Este tem funções e poderes muitos mais importantes e nobres, convém reservar-se para isso. Aliás, mais do que um remédio, a dissolução é, ela própria, um exemplo de não funcionamento regular das instituições.

 

Na opinião pública, na comunicação social, nas redes sociais e nas academias, é comum e crescente a opinião de que são necessárias eleições. Mas esses reflexos traduzem um real descontentamento, não o irregular funcionamento das instituições.

 

Já nos partidos políticos e nos órgãos de soberania há muita gente que quer novas eleições, mas não o diz. Há mesmo quem não queira, mas diga que não se importa. Ou sobretudo quem queira, mas não tenha coragem para o dizer. Em poucas palavras: quer a dissolução quem pensa que pode ganhar com novas eleições. Não as deseja quem pensa que as pode perder. Isto não é mau funcionamento das instituições.

 

O 10 de Junho é o momento adequado para o dizer: a nação está em muito mau estado. É ao eleitorado, em eleições regulares, que compete verificar isso. Não ao Presidente, em dissolução irregular.

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Público, 10.6.2023

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3.6.23

Grande Angular - A consciência tranquila

Por António Barreto

Ter “a consciência tranquila”! É um dos mais interessantes fenómenos da vida política, mas também de outras vidas, como por exemplo, a económica. Ter “a consciência tranquila” é uma fase obrigatória de qualquer processo que envolva erro ou pecado. É indispensável em qualquer ocorrência que inclua culpa ou insídia. 

 

Quando alguém, nomeadamente um político, é acusado do que quer que seja, desvio, fuga fiscal, cunha, erro, ocultação, roubo ou mentira, rapidamente aparece a público a justificar-se, depressa desmonta as acusações, procura explicações e encontra desculpas, umas mais críveis do que outras, terminando muitas vezes os seus esclarecimentos com a beata frase: “tenho a consciência tranquila”. 

 

Em geral, salvo raras excepções, mesmo muito raras, essa belíssima frase quer dizer que o suspeito, arguido ou acusado é culpado. É um par estranho: a consciência tranquila e a culpa! Em Portugal, infelizmente, não se pode dizer que as cadeias estejam cheias de consciências tranquilas! Pela simples razão de que os processos judiciais ou policiais raramente chegam ao fim, não se realizam, esperam, são transformados em megaprocessos, encontram-se em segredo de justiça ou simplesmente prescrevem. Mas se olharmos para os casos mais flagrantes, os que incluíram cadeia ou pulseira electrónica, os que passaram pelo termo de residência, os que se encontram em fase de busca internacional e mandato de captura e os que chegaram já à prescrição, é muito fácil verificar que praticamente todos incluíram a sacrossanta frase “estou de consciência tranquila”! Pode mesmo considerar-se que essa frase é a mais certeira admissão de responsabilidade sem confissão de culpa. A intenção é oposta, o resultado involuntário, mas quase nunca falha!

 

Licenciamentos duvidosos, autorizações discutíveis, adjudicações habilidosas e favorecimentos encapotados conduzem inevitavelmente ao testemunho público, por parte dos visados, de que a tranquilidade da sua consciência poderia ser a garantia de honestidade. Nomear amigos, contratar parentes, informar correligionários, denunciar pessoas à concorrência ou a embaixadas, encomendar estudos e pareceres a colegas, sabotar processos de decisão, manipular sorteios e divulgar segredos são tão comuns no nosso espaço público! Tão comuns quanto os seus responsáveis ou autores terem a “consciência tranquila”!

 

À falta aflitiva de justiça sucede, cada vez mais, o papel investigativo dos jornais e das televisões. Graças a este último, têm os cidadãos percebido e sentido que existe um mundo estranho feito de ilegitimidade e de abuso de poder, que geram, paradoxalmente, não a inquietação e o receio, mas a tranquilidade da consciência! Nas últimas semanas foi um autêntico festival. Primeiro, as nomeações e as demissões da TAP, eram, por si só, casos enormes. Mas depressa ficaram medonhos, por causa das ramificações e implicações, incluindo as famigeradas operações de privatização, nacionalização e reprivatização. Sem falar nas compras e vendas de aviões. Segundo, o caso SIS, que ganhou vida própria dada a gravidade da ocorrência e a atrocidade da acção política subsequente. Terceiro, a agora rejuvenescida operação Tutti Frutti, que envolve estranhas alianças entre partidos rivais e cumplicidade entre poder central e câmaras. Dois factores comuns a todas estas situações: o abuso de poder e a “consciência tranquila”!

 

Quase todos os envolvidos no agora famigerado caso TAP, incluindo praticamente todos os ministros e secretários de Estado, assessores e adjuntos, administradores e directores, deputados e altos funcionários, muitos dos que tiveram intervenção pública passaram por esse momento de verdade que é o da “consciência tranquila”. 

 

O mesmo se terá passado com o complexo e infindável processo de decisão sobre o futuro aeroporto de Lisboa, que já envolveu uma dezena de localizações e variantes, milhões de euros gastos em estudos definitivos, processos de adjudicação, expropriações, declarações de interesse público, preparação de construção de estradas e projectos de caminhos de ferro, portos, pontes e aeroportos propriamente ditos. Quando postos em causa, governantes, técnicos, estudiosos e consultores, praticamente todos tiveram o seu momento de honra: “tenho a consciência tranquila”!

 

Se formos um pouco mais atrás, a processos mais antigos e já quase íntimos que podemos tratar por tu, a sensação é a mesma. São designações familiares que usam os nomes dos arguidos, das operações policiais ou das empresas e instituições.  Vistos Gold, Marquês, Freeport, Lex, EDP, BES, BPN, TGV, Monte Branco, Casa Pia, E-Toupeira, Bragaparques, Tecnoforma, Luanda leaks, as PPP, Futebol leaks, vários presidentes de clubes, diversas SAD e algumas das câmaras municipais mais importantes do país: o rol é longo! São cerca de 1.000 os processos pendentes cuja resolução se arrasta muito lentamente ou simplesmente não avança. Quase sempre, cada vez que ocorre uma expressão pública, tivemos o prazer de ouvir manifestar-se a “consciência tranquila”.

 

É interessante e curioso notar que não se trata apenas de casos de corrupção e roubo. Conforme as ocorrências, há muito mais do que isso. Há sobretudo a sensação de que o uso do poder e da influência no nosso país está sujeito a regras e práticas vergonhosas que todos os dias negam os direitos do cidadão e a honradez do serviço público.

 

A maneira como muitos políticos usam o seu poder e as suas funções denota um espírito de predador sem remorsos. O modo como alguns altos funcionários e empresários exercem os seus cargos revela uma insuportável atitude: a de quem utiliza regras e poderes como se o espaço público fosse propriedade sua, reserva de caça ou trampolim para a notoriedade e a importância. Nem sempre estamos perante os clássicos procedimentos de roubo, desvio e ganho sem causa legítima. Tão usual quanto isso é o comportamento que se destina a aumentar poder e importância, influência e protagonismo. Favorecer grande potência e respectivas embaixadas nem sempre dá dinheiro e lucro, mas muitas vezes dá alavanca e ponto de apoio. Deixar abrir um Plano Director Municipal pode dar lucro, mas também reputação e pose. Empregar amigos e ocupar cargos é compensador. Nem tudo é vil dinheiro, mas tudo é sinistra importância.

 

Uma coisa é certa: a “consciência tranquila” de uns é a inquietação de todos nós. 

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Público, 3.6.2023

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