RAZÃO VERSUS FÉ, UMA DIALÉTICA DA IDADE MÉDIA
Por A. M. Galopim de Carvalho
Situada entre aproximadamente os séculos V e XV, a Idade Média foi um tempo de
alastramento do cristianismo e da vida cultural
na Europa ocidental, sobretudo através do surgimento de mosteiros da Ordem dos
Beneditinos. Seguidores de São Bento de Núrcia (480-547), os monges desta
comunidade cristã, iniciadores do movimento monacal, foram os herdeiros da cultura
latina e os depositários do essencial do saber do mundo antigo. Estão entre
eles os criadores do enciclopedismo, com destaque para Santo Isidoro de Sevilha
(570-636) que nos deixou “Etymologiae
sive origines”, publicado oito séculos depois, em 1483. Durante este
período, o estudo e o ensino transitaram dos mosteiros e conventos para as
chamadas escolas catedrais, criadas por toda a Europa, estas que, por seu turno, foram os
embriões das universidades nos centros urbanos mais importantes (Salermo,
Bolonha, Paris, Oxford, Montpelier, Arezzo, Salamanca, Pádua, Orleães, Roma, Siena,
Lisboa, entre muitas outras), privilegiando o ensino de
disciplinas como teologia, gramática, retórica, dialéctica (lógica), aritmética, geometria, astronomia, direito, medicina e música.
Com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, parte
importante do conhecimento produzido e ensinado na Antiguidade sobreviveu
graças às traduções que eruditos árabes e judeus fizeram das obras clássicas.
Tal permitiu que a alquimia dos chineses, babilónios e egípcios e a filosofia
dos gregos reaparecessem na Europa medieval. Foi o tempo da escolástica (do
grego scolastikós, instruído), o
método de pensamento dominante no ensino nas universidades
medievais europeias. Entendida como uma
via de harmonização da fé com a razão, a escolástica procurou conduzir o racionalismo
e o empirismo
filosófico de Aristóteles no interesse da teologia ou, numa outra versão,
conciliar o pensamento do Filósofo com a doutrina da Igreja. As obras então
publicadas nos campos da filosofia e da teologia revelam a redescoberta das
ideias de Aristóteles como correntes do pensamento que conduziram à introdução
da lógica no discurso, constituindo uma via interessada em abordar, de forma
sistémica, a razão e a verdade da Fé.
Na evolução do pensamento
científico é necessário recordar o grande filósofo de origem árabe, Abu
al-Walid Ibn Munhammad Ibn Ruchd (1126-1198), mais conhecido por Averróis (distorção latina do seu cognome árabe). Nascido em Córdova, na vizinha Espanha,
então território muçulmano, é tido como o mais afamado pensador islâmico da Idade Média, viveu muito à frente do seu
tempo, abrindo o caminho para o Renascimento e influenciando,
significativamente, a filosofia europeia. Intelectual de grande
eclectismo, Averróis foi médico,
astrónomo, jurista e teólogo. Estudioso do direito canónico muçulmano, foi um
dos maiores conhecedores e comentadores do pensamento de Aristóteles, tendo ficado
conhecido na história da filosofia pelo cognome de “O Comentador”. Ao afirmar
que, “com excepção do sobrenatural, o pensamento se deve sujeitar à força da
razão”, este muçulmano ibérico, contemporâneo
do nosso rei Afonso Henriques, Teve grande e decisiva influência na
evolução da ciência, em geral. Seguidor do aristotelismo, na tradição árabe de recuperação
da filosofia grega, Averróis soube fundi-lo com uma parcela de platonismo.
Assim, afirmava que, “a par da verdade óbvia do dia-a-dia, observável e aceite
pelo povo, e da verdade mística da Fé, defendida e propalada pelos teólogos, há
a verdade científica, fruto da razão, podendo estar em desacordo umas com as
outras”.
Num tempo em que a teologia
dominava sobre a filosofia natural (ciências naturais), as suas ideias alastraram
entre a comunidade de estudiosos cristãos da Universidade de Paris, criando uma
corrente de pensamento científico puro e independente das crenças religiosas,
oposto à envelhecida tese de Santo Agostinho (354-430), segundo a qual havia
uma única verdade, a dos santos evangelhos. Para Averróis, uma dada afirmação
pode ser filosoficamente (cientificamente) verdadeira e teologicamente falsa e
vice-versa. Embora não tenha abordado temas directamente relacionados com as
ciências da Terra, a intensa defesa que fez do pensamento científico e da sua
independência relativamente aos dogmas da Igreja, deu sustentáculo ao avanço,
tantas vezes difícil, levado a cabo, primeiro, por naturalistas e, mais tarde,
por geólogos.
A Andaluzia era,
então, um dos mais notáveis centros de sabedoria da humanidade. Muitos dos
textos dos filósofos gregos salvos das bibliotecas de então foram aqui
traduzidos, dando lugar um movimento intelectual notável que acabou por ser
aniquilado pela reconquista cristã. Uma tal hegemonia intelectual determinou
que, durante os últimos quatro séculos da Idade Média, o árabe foi a língua
dominante na ciência embrionária no espaço europeu. Durante parte da sua vida,
Averróis contou com a protecção dos califas locais, até que foi desterrado por Abu Yusuf Ya'qub al-Mansur que, na
mesma linha das hierarquias do catolicismo, considerou as suas opiniões
desrespeitadoras e em desacordo com o Corão. Muito da sua obra acabou também
por ser condenada pela Igreja Católica. Tomás de Aquino (1225-1274),
que foi um seguidor de Aristóteles e de Averróis, opôs-se, no entanto ao
naturalismo exclusivamente racional deste filósofo muçulmano.
Visto como o mais ilustre professor da Faculdade de
Teologia da Universidade de Paris, o filósofo e alquimista dominicano alemão Albrecht von Bollstädt (1206-1280), o Doctor
Universalis, é conhecido entre nós por Alberto, o Grande ou Alberto Magno
e, também, por Maître Aubert, ou
simplesmente Maubert. Lembrado como o
maior filósofo e teólogo cristão da Idade Média, Alberto
Magno foi também figura de grande prestígio no mundo da ciência do seu tempo,
em domínios mais tarde incluídos na química e na mineralogia, que realizou na
sua qualidade de alquimista. Após concluir os seus estudos em Pádua e em Paris, Alberto optou
pela vida religiosa, ingressando na Ordem de São Domingos, em 1223, tendo
chegado à dignidade de Bispo de Regensburgo
(Ratisbona).
Tendo estudado o pensamento de Aristóteles e de Averróis,
produziu uma das mais importantes sínteses da cultura medieval e defendeu a
coexistência pacífica da ciência e
da religião,
tendo sido o primeiro a aplicar as ideias do fundador do Liceu de Atenas no
pensamento cristão. Mas não se limitou a repetir a obra do “Estagirita”
(Aristóteles nasceu em Estagira, antiga cidade da Macedónia, na Grécia).
Procurou recriá-la com a sua própria experiência e as suas observações. No
propósito de subordinar o aristotelismo à fé cristã, o Papa Gregório IX
incumbiu Alberto Magno dessa árdua
tarefa. Em resultado do
seu trabalho, a física e a metafísica, a lógica, a ética, a psicologia e a
política de Aristóteles passaram a fazer parte da escolástica.
Do outro lado do Canal, o franciscano Roger Bacon (1214-1294), filósofo e alquimista
inglês, considerado o mais importante cientista da Idade Média, foi
pioneiro na estruturação empirismo, termo aqui usado no sentido de método
experimental, como forma de validação do conhecimento científico. O seu papel
nas ciências da Terra decorre da sua visão sobre a ciência, em geral. O seu
nome ficou ainda ligado à matemática (trabalhou na correcção do Calendário
Juliano) e, principalmente, à óptica. Estudou em Oxford, tendo sido professor nesta Universidade, bem como na de
Paris. Bacon viveu um período onde o influxo de textos dos filósofos gregos
revolucionava a vida intelectual do ocidente europeu. Bastante influenciado por
eles, foi um dos principais europeus do seu tempo a ensinar a filosofia
de Aristóteles. Colocando ênfase considerável sobre os procedimentos
empíricos ou experimentais, lutou contra as chamadas ideias inatas. Face a esta
sua acção inovadora, ficou na história com o título de Doctor Mirabilis (Doutor Admirável, em latim). Propondo novas
metodologias de investigação científica, colocou em causa os métodos de ensino
praticados por franciscanos e dominicanos, o que o tornou impopular perante as
autoridades eclesiásticas. Consciente de que a escolástica fora concebida como
uma via para conciliar a razão com a fé, não deixou de salientar as virtudes
desta disciplina medieval, mas apontou-lhe os vícios, em especial os que
misturavam os dogmas da Igreja com a ciência,
defendendo a separação entre a teologia e o saber científico, numa atitude
coincidente com a de Averróis e de outros comentadores árabes de Aristóteles.
Esta atitude de Bacon germinou mesmo no seio da Igreja e teve aí seguidores
afirmando que a teologia não era uma
ciência, uma vez que as suas deduções não assentam em dados concretos,
observáveis e experimentáveis, mas em premissas sustentadas e, tantas vezes,
impostas pela Fé.
Na medida desta nova atitude perante o conhecimento
científico, as ideias sobre a origem, a história e a natureza da Terra começam
a apontar o caminho que as afastou das crenças ancestrais e as conduziu às
preocupações, em primeiro lugar, dos naturalistas e, mais tarde, dos geólogos.
Deve-se a Bacon a criação e divulgação do conceito de "leis da natureza",
facto importante num período em que estavam ocorrendo modificações no
pensamento filosófico, em geral, e na filosofia natural (história naturalRazã),
em particular.
Restrições censórias e perseguições movidas pela Ordem
Franciscana que, em 1272, proibiu a divulgação dos seus livros, afectaram uma
parte importante da sua criatividade intelectual. Esta sua dissidência face à
hierarquia e a sua actividade nas práticas alquímicas (entre outras, descobriu
a combinação perfeita da pólvora) levaram-no à prisão por mais de uma década.
Contemporâneo de Bacon, o dominicano italiano Tomás de
Aquino, distinto aluno de Alberto Magno e autor da influente obra Summa Theologica,
ficou na história da filosofia e da teologia com o título de Doctor
Communis ou Doctor Angelicus.
Considerado um dos principais expoentes da escolástica, foi o
criador do Tomismo, a doutrina adoptada oficialmente pela Igreja Católica
que, sem deixar de valorizar o pensamento de Platão e o misticismo de Santo
Agostinho, visou, sobretudo, integrar a filosofia aristotélica nos textos bíblicos,
criando uma espécie de teologia científica.
Na Península Ibérica, ao tempo do rei de
Castela e Leão, Afonso X (1221-1284), lembrado como o
Sábio ou o Astrólogo, a
corte deste monarca foi uma autêntica academia científica no espaço
mediterrâneo, tendo marcado um período excepcional no culto da sabedoria,
conhecido por “Renascença do século XIII”. Judeus, árabes e cristãos conviveram
nesta corte em absoluta harmonia e respeito pela cultura e pela ciência. Este
que também foi o imperador eleito do Sacro Império Romano-Germânico (mas que
não exerceu esse cargo) realizou a primeira reforma
ortográfica do castelhano, língua que adoptou oficialmente, em substituição do latim.
Não irmanado com qualquer ordem religiosa, ao invés da
grande maioria dos intelectuais da Idade Média
ligados quer aos franciscanos, como Bacon, quer aos dominicanos,
como Tomás de Aquino, o francês Jean Buridan (c.1300-1360), Reitor da
Universidade de Paris, foi um clérigo e filósofo liberto das amarras impostas
pela religião o que lhe permitiu o avanço em domínios da ciência que marcaram a
sua obra. Como professor na mesma Universidade ao longo de uma vida, ensinou e
escreveu sobre lógica, metafísica, ética, filosofia natural (história natural),
numa metodologia e numa prática entendidas como seculares, isto é, distintas da teologia. Considerado o
filósofo francês mais influente, no século XIV e nos dois ou três que se lhe
seguiram, desenvolveu o conceito físico de impulso, dando, assim, o primeiro passo no sentido do moderno conceito
de inércia,
inexistente no pensamento de Aristóteles.
Alvo de uma campanha encorajada por Roma e concretizada por partidários do
franciscano e escolástico inglês, William Ockham
(1285-1347), a obra escrita de Buridan foi proibida pela Igreja Católica e
colocada no famigerado Index Librorum Prohibitorum, promulgado pelo Papa Paulo IV,
em 1559, com uma
versão revista e autorizada pelo Concílio de Trento, em 1563.
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