30.7.17

Sem emenda - Segredo de injustiça

Por António Barreto
Como foi possível chegar aqui, a esta polémica obscena a propósito dos fogos, em que quase todas as opiniões sobre os desastres, as causas, as soluções e as responsabilidades são dominadas pela simpatia partidária? O governo e apoiantes tudo fazem para esconder o falhanço, dissolver responsabilidades, acusar os serviços e denunciar a oposição. A oposição vitupera e acusa, faz demagogia, aproveita e aproveita-se. Toda a gente sofre em directo e chora para as notícias das oito. Fala-se em nome dos mortos, poucos referem os vivos.

Percebem-se os incêndios. Com o clima mediterrânico, as nossas matas, a desordem florestal, a insuficiência de bombeiros profissionais, a inércia dos governos fora da estação dos fogos, os criminosos mal castigados, as nomeações partidárias para os serviços de prevenção, a aquisição de um sistema de comunicações pelo ministro de então que é o Primeiro-ministro de hoje, as misteriosas compras de equipamento pesado, os estranhos contratos de aluguer de meios de combate, a corrupção imposta por alguns bancos e umas tantas empresas de serviços, com tudo isto, percebe-se que haja incêndios, que não haja prevenção adequada, que a luta contra os fogos acabe por ser descoordenada e ineficaz, que se coloquem em perigo de vida os bombeiros, os polícias, os enfermeiros e os guardas, para já não falar dos cidadãos, dos lavradores e dos velhotes.

Mas há algo que não se percebe. Como foi possível que um conjunto de instituições, prestigiadas umas, outras menos, considere que um desastre esteja em “segredo de Justiça” e que este se aplique a uma lista de mortos… Segredo de justiça? Para acidentes deste género? É simplesmente absurdo! Como é possível admitir que um governo invoque o segredo de justiça e se reclame da separação de poderes para não publicar a lista de mortos desde o primeiro minuto? Como foi possível chegar a esta hipocrisia canhestra que tenta esconder-se atrás de argumentos jurídicos que nada têm a ver com o assunto? Uma lista de mortos a enterrar é um segredo? De quem? Para quem? Os governos, as direcções gerais, as empresas de seguros, os bombeiros e os autarcas não têm obrigações perante os cidadãos? O que estava realmente em segredo? Os nomes? As circunstâncias? O sitio da morte? Ou as responsabilidades do governo?

Como é possível que se tenha estabelecido um black out informativo tentando impedir que autarcas, bombeiros, comandantes de guardas e polícias, responsáveis pela prevenção e pela saúde informem o público? E que se acuse de oportunismo e demagogia quem quer que faça perguntas sobre o que se passou? E que os partidos que apoiam o governo sejam incapazes de uma exigência de informação? Desde quando é demagógico fazer perguntas? Por que razão não se pode ou não se deve discutir o que realmente fez a diferença, isto é, a falha de previsão, a ausência de prontidão, a falta de coordenação e a carência de autoridade? Quem assim reage, como reagirá em todos os outros casos?

Como foi possível desnaturar de tal modo a democracia e os costumes para se chegar a este ponto? Como foi possível deixar que esta democracia se parecesse com a ditadura aquando das inundações de Lisboa e de outros desastres, para já não falar dos feridos e mortos da guerra do Ultramar com os quais o governo tentava também fazer selecção e tratamento? Como deixaram os deputados, os magistrados, os militares, os médicos, os autarcas e os comandantes dos bombeiros e das polícias que se chegasse a este ponto?

Que é feito dos homens livres do meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e conforto.

DN, 30 de Julho de 2017

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Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Varanda renascentista das Capelas Imperfeitas no Mosteiro da Batalha – Não é facilmente visível. Para a encontrar, tem de se saber o que se procura. É uma extraordinária varanda construída numa fase adiantada das Capelas que virão a ficar “Imperfeitas”. Os seus autores serão Miguel Arruda e João Castilho, arquitectos do Mosteiro nos anos 1530 e 1540. A varanda (tribuna ou janela), recheada de imagens e símbolos de difícil interpretação, fica ofuscada pelo portal manuelino sobre o qual se encontra. A distância que nos separa dela ajuda a passar desapercebida. Mas é uma obra inesquecível. Além das personagens cimeiras, quimeras e seres híbridos, temos, na base das três colunas, o rei D João III ladeado por um Africano e um Índio! As esculturas, de autor desconhecido, terão sido feitas a partir de modelo, o que era raro e, no caso do rei, inédito até essa altura. Na verdade, são retratos. Aquelas duas personagens no mesmo nível e com quase a mesma dignidade do rei deixam-nos a meditar na nossa história.

DN, 30 de Julho de 2017

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28.7.17

“O AVÔ E OS NETOS FALAM DE GEOLOGIA”,


Comentário de José Batista d’Ascenção, professor de Biologia e Geologia, da Escola Secundária Carlos Amarante, Braga)
Raramente um livro com conteúdo pedagógico, especialmente na área em que lecciono, me provocou um entusiasmo tão fundo e permanente. À medida que o ia lendo crescia o encantamento e a noção clara da importância que pode ter no ensino de muitos assuntos de geologia que, por dever de ofício, tantas vezes maçador e decepcionante, os professores do ensino básico e secundário se esforçam por fazer compreender às crianças e jovens que são os seus alunos. Escrevi que “se esforçam por fazer compreender”, na intenção de que seria bom que conseguissem fazê-los realmente compreender e, mais do que isso, que fossem capazes de os entusiasmar em tantas matérias de que eles não gostam porque, simplesmente, não estão em condições de as olhar com olhos de ver, pois que, em relação a elas, não lhes foi despertado o gosto, nem a curiosidade, nem o interesse, nem a atitude para o conseguir.
Sendo assim, a culpa é dos professores? Não, não sou dessa opinião, até por conhecer a escola, há longos anos, ininterruptamente. Mas não ilibo os docentes de um certo conformismo obediente (concordar nunca foi obrigatório) a ditames absurdos do ministério, a “teorias” pseudo-científicas de quem não dá aulas, a opiniões de “especialistas” diversos que procuram protagonismo (e proventos) com as desgraças da escola, à burocracia a que se apegam, complicam e multiplicam, ao seguidismo acrítico de conteúdos e sugestões metodológicas programáticas impraticáveis ou erradas, e ainda por cima de aplicação geral (o programa de ciências naturais de 7º ano de escolaridade, que incide sobre geologia, é disso exemplo) e à complacência com exames com perguntas mal concebidas e formuladas, com critérios de classificação subjectivos ou discutíveis, e desfasados dos programas, que, sendo como são (o de biologia e geologia de 10º ano, na parte de biologia, é outro exemplo infeliz, não sabendo eu no que mais se distingue: se em dificultar que os alunos aprendam ou se em impedir que os professores consigam ensiná-los), nem sequer são, para efeitos de exame, devidamente respeitados. Feita esta “mea culpa” colectiva, porque também sou professor, voltemos ao livro.
Este livro, de concepção muito original, faz uso de uma linguagem simples, clara e cientificamente rigorosa. O professor Rui Dias, no prefácio, ilustra exemplarmente a importância real deste facto. Recurso muito usado pelo autor, tanto quanto é desprezado na docência, é a “dissecação” de palavas, termos e conceitos na sua raiz etimológica, de forma elegante, oportuna e feliz. As situações imaginadas para expor as ideias subjacentes aos conteúdos são de mestre, pela clareza e intuição associadas, sem perda de rigor intrínseco e sem cair na “ganga folclórica” de efeito inútil ou contraproducente: é assim no exemplo de abraçar as mantas da cama, quais camadas sedimentares, juntando-as dos lados para o centro, com formação de dobras para cima e para baixo, que passam a representar os topos de montanhas expostas à erosão e as respectivas raízes, onde o aumento da pressão e da temperatura desencadeiam fenómenos de metamorfismo ou de anatexia; é assim também quando, à volta de uma mesa comprida, uma pancada seca, com a mão, num dos extremos do tampo rígido faz propagar vibrações, de tipo sísmico, menos sentidas à medida que for maior a distância ao ponto de origem, de onde se libertaram…, etc. A simplicidade das explicações chega a dar a ideia de extrema facilidade de apreensão dos conteúdos, o que é ilusório, porque a razão da eficácia do segundo aspecto é a qualidade do primeiro e não o contrário. Em pedagogia, o mais fácil é complicar, simplificar com rigor é muito difícil e não está ao alcance de qualquer pessoa: é preciso saber muito, amar o conhecimento, gostar de ver alguém aprender, não matar a curiosidade de quem aprende, estimular a sua capacidade e aumentar sempre e cada vez mais o seu entusiasmo. E estar disponível para a própria auto-aprendizagem e correcção da metodologia.
Então, este livro é (ou pode vir a ser) um milagre? Não. Os milagres só existem se os fazemos, normalmente com muito esforço e, não raro, sem ganhos materiais para quem ensina. Mas esse é o papel dos professores. E eles sabem que as vitórias que alcançam moram sobretudo no fundo ignoto do peito, às vezes tão grandes quanto desconhecidas, o que em nada as diminui, enquanto compensação afectiva imediata e perspectiva de fecunda frutificação no futuro. Ora, um livro, para produzir qualquer efeito tem, necessariamente, que ser lido. “O avô e os netos…” também é assim. E pôr os alunos a ler um livro, nos tempos que correm, não é tarefa fácil nem pequena. Calma, porém. Com a arrumação dos temas por capítulos, em que cada um pode ser lido sem precedência, a propósito de qualquer dos assuntos em estudo, nenhum deles com extensão excessiva, e constituindo diálogos muito bem arquitectados, que integram a linguagem das crianças, a sua leitura torna-se fácil e muito agradável, de tal forma que eu lembro-me daquele ditado de quando era menino, sempre que não tinha apetite, e me diziam que «comer e coçar é só começar». Tenho para mim que muitos jovens, começando a ler, vão continuar a ler, sobretudo se houver quem vá estimulando, o que pode ser outra virtude – tão conveniente! – do livro.
Mas este livro não se destina apenas a crianças e jovens, ele será útil a qualquer pessoa que o queira ler e, sobretudo, terá proveito para os professores do ensino básico e secundário que leccionam temas de ciências da natureza, geologia ou geografia, quer pelo enriquecimento cultural que proporciona, quer pela obtenção de conhecimento específico, quer pelas metodologias pedagógicas que exemplifica e sugere. Por isso, este livrinho - uso este termo por uma questão de carinho, mas também porque o seu peso e volume não fazem dele um desconfortável “tijolo” - minimiza o risco de afugentar os mais “alérgicos” à gostosa fruição da leitura e da aprendizagem.
Nota que também cabe na apreciação desta obra é a ternura que inspira quando põe em diálogo um avô, real, com os seus netos, também reais, mas que podem ser multiplicados por todas as crianças e jovens e menos jovens de Portugal. Perpassam do inicio ao fim genuínas vontade e generosidade de contribuir para um melhor ensino nas nossas escolas, de um modo elegante, delicado e comovente, tão firme na sua funda intenção, quanto nobre e belo e… terrivelmente necessário.
O autor é uma pessoa extraordinariamente humilde, tão terra-a-terra, que pediu a este escriba, obscuro professor do ensino secundário, que lhe lesse o esboço à medida que a gestação da obra ia progredindo. Foi assim que, surpreendido e atarantado com a solicitação, primeiro, e deslumbrado a seguir, logo que lidas as primeiras linhas, nunca me convenci, nem então nem agora, de que a minha acção tenha sido verdadeiramente útil, porque tudo me parecia bom e belo e eficaz para a função que pode e deve cumprir. Mas a responsabilidade dessa função já não pode caber a Galopim de Carvalho. Ele dá-nos a água e a cana de pesca e ensina-nos a pescar, e ainda nos dá o primeiro peixe. E também nos mostra o exemplo da sua vida, do seu profissionalismo e da sua acção cívica.
Não há mais que lhe pedir. Só a agradecer e aproveitar, preferencialmente, dando muito e bom uso ao material que põe à nossa disposição.
Parabéns!, e um grandíssimo obrigado.

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27.7.17

As catequistas e os frades (Crónica)

Por C. Barroco Esperança

A Ti Ricardina e a sua sobrinha Aurora eras as duas únicas catequistas da aldeia. Apesar de analfabetas tinham alvará para ensinar a doutrina da única religião verdadeira. Eram celibatárias e devotadas à propagação da fé. Sabiam de cor e lecionavam as orações e os castigos que o seu Deus reservava aos pecadores.


O pároco exercia o múnus em Casal de Cinza, Carpinteiro e Vila Garcia, mas residia na primeira paróquia, a que dispunha de “casa do padre”. Só aos domingos e Dias Santos de Guarda ia pontualmente a Vila Garcia dizer a santa missa e, em outros dias, quando necessário, para levar o viático a um moribundo, celebrar missas de corpo presente ou fazer funerais. Confissões avulsas, batizados e casamentos eram ocorrências dominicais.


Só ia ao sábado para desobrigas coletivas, com outro padre e hora marcada, para aliviar os pecados e aviar os pecadores que esperavam o perdão, após confissão bem feita, reza do ato de contrição e absolvição, que exigia ainda o cumprimento da penitência. E, logo que as confissões terminassem, seguia com o outro padre para nova paróquia.


No que me diz respeito, deviam ser leves os pecados porque a penitência que lhes cabia não excedia uns padre-nossos e poucas ave-marias, sinal de que eram leves as penas que o catálogo pio lhes atribuía, tal a brandura do cúmulo jurídico canónico.
Anualmente, o padre vinha ‘perguntar a doutrina’. Não me recordo de reprovações, mas alguns titubeavam na salve-rainha e outros hesitavam no credo, enquanto ele, absorto, refletia talvez no martírio do seu Deus ou na impureza dos pensamentos que o afligiam. A catequese ensinava que há pecados por pensamentos, não só por palavras e obras, e as obras não as conheciam ainda as crianças que nós éramos.

As catequistas esforçavam-se na preparação da eucaristia e esmeraram-se para o crisma com que o Sr. D. Domingos iria confirmar a apropriação eclesiástica com a falangeta do polegar direito a desenhar cruzes de óleo santo na testa dos sacramentados.

Eram então obrigatórias, para os cristãos, a missa dominical e, pelo menos uma vez por ano, pela Páscoa da Ressurreição, a desobriga e a comunhão. Mandava a prudência que os funcionários públicos cedessem os filhos à liturgia, para não poderem ser apodados de hereges, maçons, comunistas ou judeus, por ordem crescente de perigo profissional.

O cumprimento dessas obrigações não exonerava os crentes do terço, no mês de maio, o mês de Maria, das genuflexões na passagem à porta da igreja, em dias de Exposição do Santíssimo, ou da novena ‘ad petendam pluviam’, quando a canícula fustigava o renovo e o pároco decidia.

Procissões, jejuns e adoração da Cruz, na Sexta-feira Santa, e rezas à Sagrada Família, que viajava pela povoação e ficava 24 horas em cada casa, alumiada com a candeia de azeite, eram alimentos das almas e a obrigação pia da aldeia onde não chegara ainda a telefonia, a luz elétrica, o telefone, o saneamento ou outros malefícios urbanos.

Apesar da devoção, do zelo do pároco e da dedicação das catequistas, todos os anos ia à aldeia um frade a predicar. De sandálias, capuz e túnica de burel, cingida por uma corda cujas pontas baloiçavam, parecia ter-se soltado da argola onde o tivessem preso. Ia sem farnel e comia em casa de paroquianos, dormindo num cabanal, sobre palha, com manta emprestada, como prevenia o padre na missa anterior ao seu aparecimento.

Ainda ignoro a ordem dos frades que rumavam à paróquia, e ignorava então que o clero regular, à semelhança do reino animal, se dividia em ordens, classes, géneros e famílias. A chegada antecipava a desobriga anual e a sua prédica fazia chorar pessoas apiedadas das almas do Purgatório cuja duração da pena dependia das missas, orações e esmolas caídas nas caixas que lhes eram reservadas. Afligia os vivos com defuntos condenados por pecados veniais com que se finaram. O que diferenciava o Inferno do Purgatório era a barbaridade das penas e a eternidade, um padecimento irrevogável que interditava o Paraíso às almas caídas no primeiro.

Lembro-me dessas pregações sobre os horrores a que os pecadores seriam condenados se expirassem em pecado mortal; do fogo do Inferno; do azeite fervente; dos gritos de pavor das almas que o Demo frigia, em delírio, no caldeirão onde as mergulhava com o garfo de três dentes; do cheiro a enxofre; do eterno e inapelável sofrimento.

Com ameaças, advertia para o perigo do adiamento do batismo dos filhos, as mães eram sempre as responsáveis, apesar da obediência que deviam aos maridos, e o Limbo era o destino dos não batizados, com enterro na parte não benzida do cemitério. Era um local de tédio, triste e silencioso, de eterna melancolia, sem Deus nem Diabo.

Quando o papa Bento 16 aboliu o Limbo, por pudor ou sumiço da certidão do registo predial, lembrei-me da estupefação da menina Aurora quando perguntei como cabiam lá tantas almas. O Limbo era o destino de todos os finados sem batismo, a única terapia do pecado original, e havia imensos mortos antes de João Batista testar o batismo em Jesus, seu primo pelo lado da mãe, no rio Jordão. Disse que era mistério, a explicação habitual para todas as dúvidas, vinda de quem só tinha certezas.

Durante alguns anos julguei os frades mais horrendos do que o clero secular, sem pensar que era igual a farinha de que eram feitos e comuns os dogmas, antes de recusar a fé que me ensinaram e de me libertar do medo, cura que leva já seis décadas, sem recidiva.

Assim, depois de cumprido o ciclo biológico, vedadas a ascensão ao Paraíso e a descida ao Inferno, garanti a defunção no planeta em que nasci.

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25.7.17

Como há... colha!


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24.7.17

ALENTEJANOS

Por A. M. Galopim de Carvalho

Os vestígios mais antigos da presença dos nossos antepassados em terras do Sul do País remontam ao Paleolítico e estão representados, em especial, por utensílios em pedra lascada encontrados, em abundância, nos terraços fluviais de alguns dos seus rios, e por não menos importantes gravuras rupestres, como as trazidas às primeiras páginas dos jornais, na sequência dos trabalhos na barragem de Alqueva. Primeiro como recolectores, apanhando bolotas nos então muito mais cerrados montados, pescando e caçando, estes nossos longínquos avós acabaram por se tornar pastores e agricultores. Tal fixação levou à construção dos primeiros povoados nas colinas sobranceiras aos principais cursos de água. A densidade de construções megalíticas (antas, menhires e cromeleques), característica ímpar desta região, testemunha a importância da sociedade agropastoril que aqui teve berço há mais de 5000 anos.

Durante mais ou menos tempo, ligures, celtas, fenícios, gregos, cartagineses e romanos, ocuparam terras do Algarve e do Alentejo ou por aqui passaram, uns nas suas rotas comerciais e outros em busca do ouro, da prata, do cobre e do estanho, com particular relevo para os romanos. Estes, chegados no século III a.C., deixaram-nos importantes marcas civilizacionais da sua ocupação e do domínio político que exerceram durante, pelo menos, meio milénio. Antes de serem Alentejo e Algarve, estas terras constituíram parte da “Hispania Ulterior” (a mais afastada, em oposição a “Hispania Citerior”) na sequência da divisão administrativa criada na Península pelo invasor. Estas mesmas terras foram, mais tarde, a metade sul da “Lusiânia”, a mais ocidental das três províncias ibéricas do Império Romano (“Lusitania”, “Betica” e “Tarraconensis”).

Outra importante presença, que ainda hoje se faz sentir, foi a islâmica, iniciada no século VIII com a conquista de Mértola, por Muçá ben Nusayr, pondo fim à dominação visigótica, a última das invasões levadas a efeito por povos do norte da Europa (vândalos, suevos e visigodos), habitualmente referidos como bárbaros (a palavra provém do grego antigo, βάρβαρος (“barbarós”, que  qualificava todos os que não eram gregos). A ocupação muçulmana teve aqui uma longa permanência, cerca de cinco séculos, que só terminou com a reconquista cristã do Reino de Portugal, no século XIII.
Com a islamização, estas terras fizeram parte do “Garb”, que quer dizer Ocidente, designação naturalmente usada pelos que vinham de oriente, neste caso, os invasores árabes. Mais precisamente, o seu nome foi “al Garb al-Andalus”, que significa o ocidente da Hispânia, que incluía, não só, o Algarve como também o Alentejo e a Andaluzia, a oriente do Guadiana

Um parêntesis  para lembrar que Odiana ou Uadiana foi o nome deste importante curso de água, que foi fronteira entre os reinos de Portugal e de Leão e Castela. Odiana sobreviveu à reconquista, no século XIII, e assim se manteve, por mais três centenas de anos, na linguagem dos portugueses. Por seu lado os castelhanos transformaram o “uadi” (rio), radicado na região ao longo de cinco séculos de ocupação islâmica, em “guadi”, elemento que ainda hoje compõe o nome de muitos rios do sul de Espanha, como Guadalimar, Guadalupe, Guadojoz e o mais conhecido de todos, o grande Guadalquivir. Guadiana é, assim, um nome importado que se impôs em virtude da sua posição raiana e que, a partir do século XVI, substituiu o antigo Odiana, influência que não se verificou com os nomes Odeleite, Odiáxere e outros com a mesma raiz, correspondentes a rios mais afastados da influência castelhana.

A civilização muçulmana deixou aqui muito dos seus saberes, não só os tidos por eruditos, como os do melhor aproveitamento da terra. À unidade de coabitação entre a Andaluzia, o Alentejo e o Algarve, durante mais de um milénio, criada pelos invasores romanos e continuada pelos conquistadores islâmicos, seguiu-se a separação, delineada ao sabor da reconquista cristã e das disputas fronteiriças entre o reino de Portugal e o de Leão e Castela, ao longo do Guadiana. Não é, pois, por acaso, que há bastantes traços comuns entre “nuestros hermanos andaluces” e os alentejanos, por um lado, e entre estes e os algarvios, por outro. «Mediterrâneo por natureza e atlântico por posição», como nos ensinou o Prof. Orlando Ribeiro, os parâmetros fisiográficos desta região marcaram as populações que aqui viveram, do mesmo modo que continuam a marcar o alentejano e o algarvio dos dias de hoje.

Após a reconquista, concluída por D. Afonso III, e na sequência da reorganização territorial, foi criada a comarca de “Antre Tejo e Odiana” (Entre Tejo e Guadiana), designação antiga que resistiu ao tempo através da poética de Bernardim Ribeiro, na Écloga de Jano e Franco, e que corresponde, grosso modo, ao actual Alentejo. Anteriormente, o termo Alentejo, como nome de região, não existia. Com o significado de “para além do Tejo”, esta designação foi criada pelos conquistadores vindos do norte, do jovem reino de Portugal. O “Ultra Tagum”, no latim dos eruditos de então, deu algo foneticamente muito próximo de “Alem Tejo”, no dialecto romance galaico-prtuguês, que era o que se falava aí, ao tempo dos nossos primeiros reis.
Tendo este grande rio ibérico por fronteira natural, as terras que lhe ficavam a sul estavam, pois, para além dele (“para além do Tejo”).

No que respeita esta que é a mais extensa região do País, a sua diversidade geográfica e geológica determina que, dentro de uma certa unidade, como é muitas vezes apresentada, haja diferenças sensíveis de local para local. Há um Alentejo interior, a oriente, semiárido, dominado pela azinheira, e um outro, a ocidente, menos seco, influenciado pelos ventos húmidos do Atlântico, onde o montado de cortiça impera. Por outro lado, a escarpa de falha da Vidigueira, um acidente tectónico que limita a sul a serra de Portel, marca igualmente, como um degrau, a separação entre duas superfícies bem assinaladas pelos geógrafos, a de Évora, a norte, mais elevada e acidentada, e a de Beja, a sul, mais rebaixada e de mais vastas planuras. São ainda Alentejo os alagadiços campos de arroz da bacia do Sado, os densos pinhais da franja litoral e o extenso areal e os alcantilados da linha de costa.

O substrato geológico e os condicionalismos climáticos que caracterizam o Alentejo foram favoráveis à vegetação que aqui se desenvolveu, parte dela indígena e outra parte introduzida, bem como à ocupação animal, também ela autóctone e importada. O montado e o porco preto dele dependente, a vinha, o olival e a seara de pão, a ”tetralogia mediterrânea”, no dizer de Alfredo Saramago, constituem elementos maiores tradicionalmente referidos nesta paisagem que, como todos sabemos, ficou marcada por um regime de «Terra pouca para muitos, terra muita para poucos», como cantou Manuel Alegre, em 1996.

São alentejanos os madeireiros serranos de Portalegre e os seareiros das planícies que se estendem para Sul. São alentejanos os cultivadores de sequeiro, os regadores do vale do Caia e os que vivem dos campos aluviais dos seus grandes rios. . Mas não são menos alentejanos, quase sempre esquecidos, os pescadores na longa faixa litoral, que se estende da restinga de Tróia às falésias atlânticas do Algarve, por toda a Costa Vicentina.
Fala-se do falar alentejano, da cozinha alentejana, dos cantares do Alentejo e contam-se divertidas anedotas, visando os seus habitantes.

Há uma trintena de anos transportei comigo, vinda do Alentejo interior, uma comadre de visita a uma filha residente em Almada. Viemos por Setúbal e, durante a subida da serra da Arrábida, esta minha amiga que, pela primeira vez, saía do seu cantinho, dava mostras de um certo mal-estar. «Não sei o que tenho, sinto-me apertada. Falta-me a lonjura do nosso Alentejo. Isto aqui é só cabeços. E que cabeços!», dizia para mim.
E foi assim até ao alto da capelinha de Nossa Senhora das Necessidades. A partir daí, na descida para Azeitão, foi-se-lhe diluindo a aflição e, quando passámos à planura, ouvi-a exclamar: «Aqui, sim, já a gente respira!».
Em sua opinião, voltáramos ao Alentejo. E tinha razão!

Administrativamente integrada na Estremadura, a península de Setúbal só a ela se liga pela Ponte 25 de Abril e pelo grande fluxo de cidadãos, que, de uma e de outra banda do chamado Gargalo do Tejo, o atravessam diariamente nos dois sentidos, a caminho do trabalho e no regresso a casa. Como geólogo e curioso nas duas vertentes da geografia, a  física e a humana, contactei de muito perto com os terrenos e também com as gentes desta região, tendo tido oportunidade de constatar aqui a continuidade territorial e cultural do Alentejo. São as fábricas de cortiça e de transformação de carne de porco, são os mercados, onde não faltam o pão e o queijo alentejanos, os poejos, os cardinhos e as beldroegas, são os restaurantes, as tabernas e as vendas à moda antiga, as colectividades culturais e recreativas.


Alentejanos somos todos os da margem esquerda do Tejo e se o nome nada tem de especial, quando dito por alguém da margem norte, constitui um paradoxo sempre que são os próprios alentejanos que assim se autodenominam, uma vez que, sendo e estando do lado sul do Tejo (para eles o lado de cá, e, portanto, aquém do Tejo) se estão a afirmar além dele, como bem lembrou o Prof. José Mattoso. Alentejano é, pois, o nome pelo qual esta comunidade se autoidentifica sem se dar conta que, em rigor, o termo só faz sentido quando dito por estremenhos, beirões, minhotos ou transmontanos. Nunca por eles próprios e, muito menos, por algarvios. Nestas condições dever-nos-íamos considerar “aquentejanos”, sugestão, aliás, já avançada no século XIII, mas que não fez vencimento. Com efeito, dois documentos assinados em Beja, em 1284, auto-situam-se no “Aaquem Tejo”.

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23.7.17

Sem emenda - Tirania

Por António Barreto
Onde nasce a tirania? Antiga pergunta a que muitos tentaram dar resposta. Umas vezes com cultura e isenção, outras com fanatismo e crença. Mas há décadas ou séculos que a pergunta se repete e que as respostas se sucedem. Há poucos meses, mais um ensaio sobre o tema foi publicado por Timothy Snyder. Recomenda-se. É quase um manual de vida prática sobre o que fazer para evitar a tirania. Em tempos difíceis, como os de hoje e dos últimos anos, a interrogação volta sempre.

Onde nasce a tirania? A pergunta é actual. Não porque, em Portugal, o governo ou a oposição nos ameacem. Nem porque haja sinais evidentes de que a besta espreite. Mas simplesmente porque é sempre actual e porque, no mundo, dos Estados Unidos à Rússia, passando pelo Islão e pela Europa, há gente de sobra que a aprecie. A tirania é sempre do Estado ou através do Estado. Difícil é saber onde começa.

Como se sabe e é verdade, a tirania pode nascer da família, da terra, do capital e da espada. Mas também do voto, da assembleia, do sindicato e do partido. Do poder dos fortes, dos deuses e dos sacerdotes. Mas também do poder dos homens sobre as mulheres e dos mestres sobre os alunos. Do poder dos brancos, dos pretos e dos amarelos sobre qualquer uma das outras cores e do poder dos militares sobre os civis.

A tirania nasce de todos os poderes excessivos, mesmo legítimos, mesmo legais e mesmo maioritários. Nasce quando o poder é de um grupo ou uma entidade, um país, uma classe, uma igreja, um sindicato, uma etnia, uma profissão ou um banco. Nasce quando, num país, se recorre ao nacionalismo para afirmar a autonomia ou a independência. Nasce quando o singular se sobrepõe ao plural e quando a uniformidade leva a melhor sobre a diversidade. Nasce com o catecismo, o livro de citações, a cartilha, o livro único e o manifesto. Nasce quando o grupo se sobrepõe e domina o indivíduo ou quando este se submete e resigna.

A tirania nasce onde fraqueja a razão, o recurso, a liberdade e a oposição. Surge onde faltam a liberdade do artista, a palavra do escritor e a livre iniciativa. A tirania nasce na desigualdade de condição e na igualdade imposta. Nasce da extrema pobreza e da extrema riqueza. Mais ainda do que na desigualdade, a tirania nasce na injustiça.

A tirania nasce no rancor e no ressentimento dos derrotados a quem não é dada uma segunda oportunidade. E ainda no medo dos que já tiveram qualquer coisa e correm o risco de perder tudo. Mas também nasce na corrupção, na promiscuidade e na condescendência com a desonestidade. Como nasce na impunidade dos mais fortes e dos mais ricos, dos que têm mais votos ou mais sócios.

Nasce da fraqueza da sociedade civil, isto é, na fraqueza dos empresários, dos sindicatos, das associações, das igrejas e dos jornais. A tirania nasce no desenraizamento, na desordem cívica e no caos institucional. Nasce onde não há instituições, associações, igrejas e empresas ou onde todas estas dependem do Estado ou do partido. Onde o produto é mais importante do que o produtor e o consumo domina o consumidor.

Nasce quando o argumento é substituído pela proclamação. Quando o debate cede lugar ao insulto. Quando as opiniões são recitadas. Quando a força do dinheiro, da arma ou do voto exige a obediência.

Os inimigos da liberdade e as fontes da tirania estão longe e no exterior, mas também perto e no interior, dentro da democracia. A tirania nasce nas maiorias que não reconhecem as minorias, mas também nas minorias esclarecidas que têm a certeza de ter ideias para os outros e para todos. Nasce da multidão, tanto quanto da vanguarda.

A tirania nasce das ideias de perfeição, de pureza, de igualdade, de virtude, de utopia, de salvação e do homem novo. Nasce nas revoluções e alimenta-se do imprevisível.

A tirania nasce na ausência de Justiça.

DN, 23 de Julho de 2017

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