Por A. M. Galopim de Carvalho
Os vestígios mais antigos da presença dos nossos
antepassados em terras do Sul do País remontam ao Paleolítico e estão
representados, em especial, por utensílios em pedra lascada encontrados, em
abundância, nos terraços fluviais de alguns dos seus rios, e por não menos
importantes gravuras rupestres, como as trazidas às primeiras páginas dos
jornais, na sequência dos trabalhos na barragem de Alqueva. Primeiro como
recolectores, apanhando bolotas nos então muito mais cerrados montados,
pescando e caçando, estes nossos longínquos avós acabaram por se tornar
pastores e agricultores. Tal fixação levou à construção dos primeiros povoados
nas colinas sobranceiras aos principais cursos de água. A densidade de
construções megalíticas (antas, menhires e cromeleques), característica ímpar
desta região, testemunha a importância da sociedade agropastoril que aqui teve
berço há mais de 5000 anos.
Durante mais ou menos tempo, ligures, celtas,
fenícios, gregos, cartagineses e romanos, ocuparam terras do Algarve e do Alentejo
ou por aqui passaram, uns nas suas rotas comerciais e outros em busca do ouro,
da prata, do cobre e do estanho, com particular relevo para os romanos. Estes,
chegados no século III a.C., deixaram-nos importantes marcas civilizacionais da
sua ocupação e do domínio político que exerceram durante, pelo menos, meio
milénio. Antes de serem Alentejo e Algarve, estas terras constituíram parte da “Hispania Ulterior” (a mais afastada, em
oposição a “Hispania Citerior”) na
sequência da divisão administrativa criada na Península pelo invasor. Estas
mesmas terras foram, mais tarde, a metade sul da “Lusiânia”, a mais ocidental
das três províncias ibéricas do Império Romano (“Lusitania”, “Betica” e “Tarraconensis”).
Outra importante presença, que ainda hoje se faz sentir,
foi a islâmica, iniciada no século VIII com a conquista de Mértola, por Muçá
ben Nusayr, pondo fim à dominação visigótica, a última das invasões levadas a
efeito por povos do norte da Europa (vândalos, suevos e visigodos),
habitualmente referidos como bárbaros (a palavra provém do grego antigo,
βάρβαρος (“barbarós”, que qualificava todos os que não eram gregos). A ocupação muçulmana teve
aqui uma longa permanência, cerca de cinco séculos, que só terminou com a
reconquista cristã do Reino de Portugal, no século XIII.
Com a islamização, estas terras fizeram parte do “Garb”, que quer dizer Ocidente,
designação naturalmente usada pelos que vinham de oriente, neste caso, os
invasores árabes. Mais precisamente, o seu nome foi “al Garb al-Andalus”, que significa o ocidente da Hispânia, que incluía, não só, o Algarve como
também o Alentejo e a Andaluzia, a oriente do Guadiana
Um parêntesis para lembrar que Odiana ou Uadiana foi o nome
deste importante curso de água, que foi fronteira entre os reinos de Portugal e
de Leão e Castela. Odiana sobreviveu à reconquista, no século XIII, e assim se
manteve, por mais três centenas de anos, na linguagem dos portugueses. Por seu
lado os castelhanos transformaram o “uadi”
(rio), radicado na região ao longo de cinco séculos de ocupação islâmica,
em “guadi”, elemento que ainda hoje
compõe o nome de muitos rios do sul de Espanha, como Guadalimar, Guadalupe,
Guadojoz e o mais conhecido de todos, o grande Guadalquivir. Guadiana é, assim,
um nome importado que se impôs em virtude da sua posição raiana e que, a partir
do século XVI, substituiu o antigo Odiana, influência que não se verificou com
os nomes Odeleite, Odiáxere e outros com a mesma raiz, correspondentes a rios
mais afastados da influência castelhana.
A civilização muçulmana deixou aqui
muito dos seus saberes, não só os tidos por eruditos, como os do melhor
aproveitamento da terra. À unidade de coabitação entre a Andaluzia, o Alentejo
e o Algarve, durante mais de um milénio, criada pelos invasores romanos e
continuada pelos conquistadores islâmicos, seguiu-se a separação, delineada ao
sabor da reconquista cristã e das disputas fronteiriças entre o reino de
Portugal e o de Leão e Castela, ao longo do Guadiana. Não é, pois, por acaso,
que há bastantes traços comuns entre “nuestros
hermanos andaluces” e os
alentejanos, por um lado, e entre estes e os algarvios, por outro. «Mediterrâneo
por natureza e atlântico por posição», como nos ensinou o Prof. Orlando
Ribeiro, os parâmetros fisiográficos desta região marcaram as populações que
aqui viveram, do mesmo modo que continuam a marcar o alentejano e o algarvio
dos dias de hoje.
Após a reconquista, concluída por D.
Afonso III, e na sequência da reorganização territorial, foi criada a comarca
de “Antre Tejo e Odiana” (Entre Tejo
e Guadiana), designação antiga que resistiu ao tempo através da poética de
Bernardim Ribeiro, na Écloga de Jano e Franco, e que corresponde, grosso modo,
ao actual Alentejo. Anteriormente, o termo Alentejo, como nome de região, não
existia. Com o significado de “para além
do Tejo”, esta designação foi criada pelos
conquistadores vindos do norte, do jovem reino de Portugal. O “Ultra Tagum”, no latim dos eruditos de
então, deu algo foneticamente muito próximo de “Alem Tejo”, no dialecto romance galaico-prtuguês, que era o que se
falava aí, ao tempo dos nossos primeiros reis.
Tendo
este grande rio ibérico por fronteira natural, as terras que lhe ficavam a sul
estavam, pois, para além dele (“para além do Tejo”).
No que respeita esta que é a mais
extensa região do País, a sua diversidade geográfica e geológica determina que,
dentro de uma certa unidade, como é muitas vezes apresentada, haja diferenças
sensíveis de local para local. Há um Alentejo interior, a oriente, semiárido,
dominado pela azinheira, e um outro, a ocidente, menos seco, influenciado pelos
ventos húmidos do Atlântico, onde o montado de cortiça impera. Por outro lado,
a escarpa de falha da Vidigueira, um acidente tectónico que limita a sul a
serra de Portel, marca igualmente, como um degrau, a separação entre duas
superfícies bem assinaladas pelos geógrafos, a de Évora, a norte, mais elevada
e acidentada, e a de Beja, a sul, mais rebaixada e de mais vastas planuras. São
ainda Alentejo os alagadiços campos de arroz da bacia do Sado, os densos
pinhais da franja litoral e o extenso areal e os alcantilados da linha de
costa.
O substrato geológico e os
condicionalismos climáticos que caracterizam o Alentejo foram favoráveis à
vegetação que aqui se desenvolveu, parte dela indígena e outra parte
introduzida, bem como à ocupação animal, também ela autóctone e importada. O
montado e o porco preto dele dependente, a vinha, o olival e a seara de pão, a ”tetralogia
mediterrânea”, no dizer de Alfredo Saramago, constituem elementos maiores
tradicionalmente referidos nesta paisagem que, como todos sabemos, ficou
marcada por um regime de «Terra pouca para muitos, terra muita para poucos»,
como cantou Manuel Alegre, em 1996.
São alentejanos os madeireiros
serranos de Portalegre e os seareiros das planícies que se estendem para Sul.
São alentejanos os cultivadores de sequeiro, os regadores do vale do Caia e os
que vivem dos campos aluviais dos seus grandes rios. . Mas não são menos
alentejanos, quase sempre esquecidos, os pescadores na longa faixa litoral, que
se estende da restinga de Tróia às falésias atlânticas do Algarve, por toda a
Costa Vicentina.
Fala-se do falar alentejano, da
cozinha alentejana, dos cantares do Alentejo e contam-se divertidas anedotas,
visando os seus habitantes.
Há uma
trintena de anos transportei comigo, vinda do Alentejo interior, uma comadre de
visita a uma filha residente em Almada. Viemos por Setúbal e, durante a subida
da serra da Arrábida, esta minha amiga que, pela primeira vez, saía do seu
cantinho, dava mostras de um certo mal-estar. «Não sei o que tenho, sinto-me
apertada. Falta-me a lonjura do nosso Alentejo. Isto aqui é só cabeços. E que
cabeços!», dizia para mim.
E foi assim
até ao alto da capelinha de Nossa Senhora das Necessidades. A partir daí, na
descida para Azeitão, foi-se-lhe diluindo a aflição e, quando passámos à
planura, ouvi-a exclamar: «Aqui, sim, já a gente respira!».
Em sua
opinião, voltáramos ao Alentejo. E tinha razão!
Administrativamente
integrada na Estremadura, a península de Setúbal só a ela se liga pela Ponte 25
de Abril e pelo grande fluxo de cidadãos, que, de uma e de outra banda do
chamado Gargalo do Tejo, o atravessam diariamente nos dois sentidos, a caminho
do trabalho e no regresso a casa. Como geólogo e curioso nas duas vertentes da
geografia, a física e a humana,
contactei de muito perto com os terrenos e também com as gentes desta região,
tendo tido oportunidade de constatar aqui a continuidade territorial e cultural
do Alentejo. São as fábricas de cortiça e de transformação de carne de porco,
são os mercados, onde não faltam o pão e o queijo alentejanos, os poejos, os
cardinhos e as beldroegas, são os restaurantes, as tabernas e as vendas à moda
antiga, as colectividades culturais e recreativas.
Alentejanos somos todos os da margem
esquerda do Tejo e se o nome nada tem de especial, quando dito por alguém da
margem norte, constitui um paradoxo sempre que são os próprios alentejanos que
assim se autodenominam, uma vez que, sendo e estando do lado sul do Tejo (para
eles o lado de cá, e, portanto, aquém
do Tejo) se estão a afirmar além
dele, como bem lembrou o Prof. José Mattoso. Alentejano é, pois, o nome pelo
qual esta comunidade se autoidentifica sem se dar conta que, em rigor, o termo
só faz sentido quando dito por estremenhos, beirões, minhotos ou transmontanos.
Nunca por eles próprios e, muito menos, por algarvios. Nestas condições
dever-nos-íamos considerar “aquentejanos”,
sugestão, aliás, já avançada no século XIII, mas que não fez vencimento. Com
efeito, dois documentos assinados em Beja, em 1284, auto-situam-se no “Aaquem Tejo”.
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