Grande Angular - A festa acabou
Por António Barreto
Foi bonita a festa! Enquanto durou. Ano sim ano não, com uns problemas pelo meio, a verdade é que os 50 anos depois de Abril foram inesquecíveis. Geralmente para melhor. Com a pesada excepção das centenas de milhares de portugueses que viviam no Ultramar e que foram maltratados pelos homens e pela história, quase toda a gente vive melhor, vive mais, com mais conforto, mais decentemente e com mais dignidade. Saúde, esperança de vida, alimentação, educação, igualdade entre cidadãos, conforto e facilidades de vida quotidiana: em todas estas áreas, há razões para festejar. Com as excepções e as contradições de uso, é difícil encontrar serviço, dispositivo, bem ou equipamento que não se tenha generalizado: esgoto, água corrente, luz, electricidade, aquecimento, gás, estradas, automóvel, telefone, televisão, computador, vestuário, divertimento, cultura, vida nocturna e férias anuais.
Nestes 50 anos, fez-se a União Europeia, coisa nova e diferente, bonita de ver, numa Europa que viveu um inédito período de 70 anos sem guerra. O mundo democrático pareceu, a partir de certa altura, vencer. O número de países que queria ser democrático aumentava. Mesmo quando não o eram, reclamavam-se de tal qualidade. O apartheid ruiu. O comunismo desfez-se.
É verdade que as antigas colónias portuguesas se entregaram à guerra civil, como nunca no tempo português, tendo morrido centenas de milhares de pessoas, talvez mais de um milhão. É também verdade que noutros países africanos, Congo, Ruanda e Nigéria por exemplo, milhões de pessoas morreram. Mas a tendência geral era a da democracia e do desenvolvimento.
Tudo está hoje em causa. Guerra no mundo. Cada vez menos democracias. Os países em evidência são autocráticos. O terrorismo islâmico passa por virtude inocente. O imperialismo russo é aceite como inevitável. Qualquer que seja o resultado ou a situação na Ucrânia, ficaremos, em 2024, pior, muito pior. Qualquer que seja a evolução da situação em Gaza, na Palestina e em Israel, o mundo ficará pior e mais perigoso.
No horizonte, o Irão, a Rússia e a China, a que se acrescentam a possível eleição de Trump, os erros dos democratas europeus e a ascensão da extrema-direita fazem um planeta mais insuportável e ameaçador.
E Portugal… Uma oligarquia socialista dominante tem vindo a ocupar o país e as instituições. Acrescentou-se e ultrapassou uma clique social democrata que durante alguns anos se banqueteou. Ambas se adicionaram à cleptocracia corporativa que só aparentemente tinha desaparecido.
O estado lamentável em que se encontram os serviços públicos parece irrecuperável. O SNS está a ser metodicamente destruído. Se fosse deliberado, não teria sido tão eficaz. Assim, só por incompetência. Com efeitos semelhantes, a loucura que se apoderou do sistema educativo e das escolas públicas transformou a educação numa farsa em vias de subdesenvolvimento. A venda desbragada de património nacional, das terras às águas, das empresas à habitação, tem transformado o país, não num primor de eficiência, mas sim num universo de vida airada e descalabro.
Houve jeito para distribuir, faltou o talento para produzir. Houve vontade de educar, não existiu competência para ensinar. Multiplicaram-se direitos, reduziram-se os deveres. A festa acabou. Mal e tristemente. Se ao menos, em vez de festa, tivéssemos trabalho, estudo, organização, gestão, igualdade e democracia…. Então sim, valeria a pena a festa ter acabado.
A festa acabou, mas não a democracia. Este ano, há eleições. Poderia ser o princípio de qualquer coisa. A nossa escolha é o essencial. Pode, evidentemente, votar-se num partido pelas más razões. Por reflexo condicionado. Por consciência de classe. Por medo. Por convicção religiosa. Por dívida pessoal. Por repetição a que se chama coerência. Mas… as melhores razões não são essas. São, isso sim, as que decorrem do que se quer, do que se precisa e do que se pensa que é melhor para o país. É possível, mas não necessário, que estas razões nos conduzam a votar de modo diferente, de cada vez. Daí não deveria vir mal ao mundo. A competição partidária e a concorrência eleitoral são os melhores instrumentos de escolha.
Uma regra de ouro é a de não votar em alguém simplesmente pelo que é ou parece. Ou porque é um hábito. Aliás, em Portugal, hoje, nenhum partido merece que se vote nele pelo que é. Nem a direita, nem a esquerda, com currículos pouco recomendáveis após as últimas décadas.
O PS tem muito pesadas responsabilidades na degradação da vida nacional. Contribuiu, mais do que os outros, para os êxitos dos últimos 50 anos. Mas esse facto não desculpa a deterioração sistemática dos serviços públicos, a perda de capacidade para criar riqueza de modo consistente, nem a partilha de autoria e de culpas em todos os processos de corrupção e nepotismo.
O PSD tem enormes responsabilidades no declínio da vida nacional, tanto da economia como da cultura, da sociedade e da política. Depois de, com mérito indiscutível, ter contribuído para a consolidação da pertença europeia e para a afirmação democrática da direita portuguesa, este partido desinteressou-se da independência nacional e da afirmação da empresa portuguesa pública ou privada.
Em conjunto, PS e PSD, deixaram afundar o Serviço Nacional de Saúde e a educação pública. Um a vegetar na mais inacreditável desordem que se possa imaginar. Outra entregue à futilidade lúdica e a exibir os piores resultados de sempre.
O PCP, sempre o mesmo, tão irredutível e seguro de si! É-lhe indiferente ter 20%, 10% ou 3% dos votos, ou 40, 20 ou 5 deputados. Garante que tem sempre razão contra a população que não vota nele, que é quase toda. Persiste em afirmar que representa todos os trabalhadores, que a história sempre lhe deu razão. Até à derrota final. Até ao desaparecimento eleitoral.
O Bloco, moralmente superior e arrogante, convencido, presunçoso como poucos, firme na sua beatitude política e seguro da sua virtude ideológica, nunca fez nada de jeito que lhe dê qualquer espécie de currículo, qualquer folha de serviços prestados à sociedade.
O Chega não merece o voto só porque protesta, denuncia e ataca. Não é convincente, não tem políticas, não dá sinais de qualquer género de competência ou de saber. Utiliza as mais baratas receitas disponíveis, do nacionalismo ao grito dos descamisados.
A IL parece saída de uma produção laboratorial. É só mais um partido, sem currículo nem experiência, a vender camisolas de lã no deserto.
Nas próximas eleições, o momento é calhado, mais propício do que nunca, para votar de acordo com compromissos, em vez de repetirmos os gestos do sonâmbulo. Votar em compromissos é melhor do que votar em rebanho.
.
Público, 30.12.2023
Etiquetas: AMB