30.12.23

Grande Angular - A festa acabou

Por António Barreto

Foi bonita a festa! Enquanto durou. Ano sim ano não, com uns problemas pelo meio, a verdade é que os 50 anos depois de Abril foram inesquecíveis. Geralmente para melhor. Com a pesada excepção das centenas de milhares de portugueses que viviam no Ultramar e que foram maltratados pelos homens e pela história, quase toda a gente vive melhor, vive mais, com mais conforto, mais decentemente e com mais dignidade. Saúde, esperança de vida, alimentação, educação, igualdade entre cidadãos, conforto e facilidades de vida quotidiana: em todas estas áreas, há razões para festejar. Com as excepções e as contradições de uso, é difícil encontrar serviço, dispositivo, bem ou equipamento que não se tenha generalizado: esgoto, água corrente, luz, electricidade, aquecimento, gás, estradas, automóvel, telefone, televisão, computador, vestuário, divertimento, cultura, vida nocturna e férias anuais.

 

Nestes 50 anos, fez-se a União Europeia, coisa nova e diferente, bonita de ver, numa Europa que viveu um inédito período de 70 anos sem guerra. O mundo democrático pareceu, a partir de certa altura, vencer. O número de países que queria ser democrático aumentava. Mesmo quando não o eram, reclamavam-se de tal qualidade. O apartheid ruiu. O comunismo desfez-se.

 

É verdade que as antigas colónias portuguesas se entregaram à guerra civil, como nunca no tempo português, tendo morrido centenas de milhares de pessoas, talvez mais de um milhão. É também verdade que noutros países africanos, Congo, Ruanda e Nigéria por exemplo, milhões de pessoas morreram. Mas a tendência geral era a da democracia e do desenvolvimento.

 

Tudo está hoje em causa. Guerra no mundo. Cada vez menos democracias. Os países em evidência são autocráticos. O terrorismo islâmico passa por virtude inocente. O imperialismo russo é aceite como inevitável. Qualquer que seja o resultado ou a situação na Ucrânia, ficaremos, em 2024, pior, muito pior. Qualquer que seja a evolução da situação em Gaza, na Palestina e em Israel, o mundo ficará pior e mais perigoso.

 

No horizonte, o Irão, a Rússia e a China, a que se acrescentam a possível eleição de Trump, os erros dos democratas europeus e a ascensão da extrema-direita fazem um planeta mais insuportável e ameaçador.

 

E Portugal… Uma oligarquia socialista dominante tem vindo a ocupar o país e as instituições. Acrescentou-se e ultrapassou uma clique social democrata que durante alguns anos se banqueteou. Ambas se adicionaram à cleptocracia corporativa que só aparentemente tinha desaparecido.

O estado lamentável em que se encontram os serviços públicos parece irrecuperável. O SNS está a ser metodicamente destruído. Se fosse deliberado, não teria sido tão eficaz. Assim, só por incompetência. Com efeitos semelhantes, a loucura que se apoderou do sistema educativo e das escolas públicas transformou a educação numa farsa em vias de subdesenvolvimento. A venda desbragada de património nacional, das terras às águas, das empresas à habitação, tem transformado o país, não num primor de eficiência, mas sim num universo de vida airada e descalabro.

 

Houve jeito para distribuir, faltou o talento para produzir. Houve vontade de educar, não existiu competência para ensinar. Multiplicaram-se direitos, reduziram-se os deveres. A festa acabou. Mal e tristemente. Se ao menos, em vez de festa, tivéssemos trabalho, estudo, organização, gestão, igualdade e democracia…. Então sim, valeria a pena a festa ter acabado.

 

A festa acabou, mas não a democracia. Este ano, há eleições. Poderia ser o princípio de qualquer coisa. A nossa escolha é o essencial. Pode, evidentemente, votar-se num partido pelas más razões. Por reflexo condicionado. Por consciência de classe. Por medo. Por convicção religiosa. Por dívida pessoal. Por repetição a que se chama coerência. Mas… as melhores razões não são essas. São, isso sim, as que decorrem do que se quer, do que se precisa e do que se pensa que é melhor para o país. É possível, mas não necessário, que estas razões nos conduzam a votar de modo diferente, de cada vez. Daí não deveria vir mal ao mundo. A competição partidária e a concorrência eleitoral são os melhores instrumentos de escolha.

 

Uma regra de ouro é a de não votar em alguém simplesmente pelo que é ou parece. Ou porque é um hábito. Aliás, em Portugal, hoje, nenhum partido merece que se vote nele pelo que é. Nem a direita, nem a esquerda, com currículos pouco recomendáveis após as últimas décadas.

 

O PS tem muito pesadas responsabilidades na degradação da vida nacional. Contribuiu, mais do que os outros, para os êxitos dos últimos 50 anos. Mas esse facto não desculpa a deterioração sistemática dos serviços públicos, a perda de capacidade para criar riqueza de modo consistente, nem a partilha de autoria e de culpas em todos os processos de corrupção e nepotismo.

 

O PSD tem enormes responsabilidades no declínio da vida nacional, tanto da economia como da cultura, da sociedade e da política. Depois de, com mérito indiscutível, ter contribuído para a consolidação da pertença europeia e para a afirmação democrática da direita portuguesa, este partido desinteressou-se da independência nacional e da afirmação da empresa portuguesa pública ou privada.

 

Em conjunto, PS e PSD, deixaram afundar o Serviço Nacional de Saúde e a educação pública. Um a vegetar na mais inacreditável desordem que se possa imaginar. Outra entregue à futilidade lúdica e a exibir os piores resultados de sempre.

 

O PCP, sempre o mesmo, tão irredutível e seguro de si! É-lhe indiferente ter 20%, 10% ou 3% dos votos, ou 40, 20 ou 5 deputados. Garante que tem sempre razão contra a população que não vota nele, que é quase toda. Persiste em afirmar que representa todos os trabalhadores, que a história sempre lhe deu razão. Até à derrota final. Até ao desaparecimento eleitoral.

 

O Bloco, moralmente superior e arrogante, convencido, presunçoso como poucos, firme na sua beatitude política e seguro da sua virtude ideológica, nunca fez nada de jeito que lhe dê qualquer espécie de currículo, qualquer folha de serviços prestados à sociedade.

 

O Chega não merece o voto só porque protesta, denuncia e ataca. Não é convincente, não tem políticas, não dá sinais de qualquer género de competência ou de saber. Utiliza as mais baratas receitas disponíveis, do nacionalismo ao grito dos descamisados.

 

A IL parece saída de uma produção laboratorial. É só mais um partido, sem currículo nem experiência, a vender camisolas de lã no deserto.

 

Nas próximas eleições, o momento é calhado, mais propício do que nunca, para votar de acordo com compromissos, em vez de repetirmos os gestos do sonâmbulo. Votar em compromissos é melhor do que votar em rebanho.

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Público, 30.12.2023

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25.12.23

No "Correio de Lagos" de Nov 23

 









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19.12.23

"NÃO HÁ MACHADO QUE CORTE A RAIZ AO PENSAMENTO"

Por A. M. Galopim de Carvalho

Nesta frase, expressa nos dois primeiros versos do poema “Livre”, de Carlos Oliveira, musicado e cantado por Manuel Freire, o poeta complementa, por belas palavras, que o pensamento é um produto imaterial da matéria e, como tal, não tem dimensão física. Não tem volume nem massa, nem peso, nem cor, não é quente nem frio e não ocupa espaço. Para o pensamento não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras materiais ou prisões. É ubiquista, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, no ínfimo interior de um núcleo atómico, no centro abrasador do Sol ou na infinita abrangência do Universo, aqui e nas estrelas mais longínquas, a milhares de milhões de anos-luz.

 

O pensamento não surgiu da noite para o dia. É o culminar de uma evolução da matéria surgida com o começo de Universo, há cerca de 13 800 milhões de anos. É algo que está acima do poder de quem quer que seja.

 

Através do pensamento, o homem adquiriu capacidade de intervir no seu próprio curso, no da sociedade em que está inserido e, até, no da Natureza que o criou e lhe permite viver, seguindo por caminhos ditados pela sua imensa capacidade de decisão. E é aqui que os poderes totalitários procuram servir-se dos “machados”, referidos na poesia de Carlos Oliveira.

 

Servir-se do pensamento (esta maravilhosa e complexa capacidade da condição humana) foi o que os chamados filósofos gregos da Antiguidade ousaram fazer e, daí, o nome de pensadores por que são muitas vezes referidos. Foi a admiração e a perplexidade decorrentes de tudo o que os sentidos traziam ao seu conhecimento, que desencadearam neles esta atitude mental que está na base do maravilhoso edifício do conhecimento científico e tecnológico que temos ao nosso alcance.

 

Foi o confronto entre a realidade que se lhes deparou e as ideias que, a partir dessa realidade, foram formulando, que lhes conduziu o pensamento no caminho de uma ciência embrionária que, nessa fase primitiva, se confunde com a filosofia, no sentido de interesse ou preocupação pelo saber. É nessa fase que a filosofia ganha o estatuto de “mãe de todas as ciências”.

 

Terá sido, pois, na Grécia antiga que começou a audácia e a grande aventura do pensamento. Terá sido no decurso do século VII a. C., com o desenvolvimento e progresso nos trabalhos diários, que alguns gregos começaram a esboçar explicações racionais (leia-se pensar) que foram conduzindo à progressiva rejeição das explicações míticas da realidade que então se vivia.

A História ensina-nos que, muito antes do despontar do pensamento filosófico, nesta que foi o berço da civilização ocidental, os mitos (à semelhança das religiões) davam respostas às múltiplas perguntas, muitas delas perplexidades, que pairavam e, até, inquietavam o espírito das gentes. Para além de marcarem padrões importantes de comportamento na vida social (na ética, na moral) e política, os mitos veiculavam uma concepção religiosa do mundo à sua volta.

 

O pensamento surgiu, assim, como uma espécie de rotura com a visão mítica do mundo grego. Enquanto que os mitos não dispunham de qualquer suporte racional, o pensamento inaugurava o discurso abstrato e universal, amparado na reflexão e argumentação, formulando concepções do mundo e da sociedade, isentas de contradições e imperfeições no que respeita o raciocínio lógico. Ao contrário da crença, que não contestava, respeitava e não se afastava da narrativa mitológica, o pensamento serviu-se exclusivamente da razão para aceitar ou rejeitar as teses que se lhe depararam.

 

Um parêntese para dizer que mito (do grego “mythos”) começou por significar apenas, “palavra”, no simples sentido de “fala”, mas evoluiu, ganhando o valor de uma “palavra proferida com autoridade e digna de crédito”. Entende-se, assim, por mito um conjunto de crenças fundamentadas em relatos fictícios e imaginados pelos autores, poetas nos casos de gregos e latinos. Acrescente-se que a religião, seja ela qual for, visa ainda criar rituais ou práticas com a finalidade de estabelecer laços com a espiritualidade.

 

Todos sabemos que os governos, uns mais outros menos, estão condicionados, quer pelos grandes interesses económicos e financeiros, quer pelos sinistros e retrógrados poderes religiosos, dois grandes travões às legítimas aspirações da grande maioria das populações deste Planeta, a caminho da exaustão. Não lhes interessa, pois, que a maioria dos governados pensem demasiado.

Desviar o cidadão de pensar sempre foi preocupação dos poderes políticos e religiosos, propósito declarado, com censuras, proibições e outras limitações, em sociedades totalitárias, e mal disfarçado naquelas tidas por democráticas, com liberdades ditas asseguradas.

 

Um exemplo de um destes travões por parte do poder religioso, que nos toca de perto, é o facto de os países da Europa onde a Reforma protestante vingou, se terem desenvolvido muito mais do que os que ficaram amarrados ao catolicismo.

Este propósito de desvio do acto de pensar, ainda que disfarçado, afecta uma parte considerável dos nossos concidadãos, mantendo-os incultos, destituídos de pensamento autónomo, alienados pelo futebol e pelos programas televisivos de entretenimento que nos impõem e nos entram pela casa dentro a toda a hora. Concidadãos que ou não votam nos actos eleitorais próprios da democracia que lhes foi oferecida, ou votam, religiosamente, sem procurar conhecer as teses ou os programas que lhes são apresentados.

 

Em Portugal, é com mágoa que constato que, nas últimas décadas, a orientação seguida pelos políticos que elegemos para nos governarem, tem sido colocar o sucesso escolar obrigatório à frente do gosto pelo conhecimento indispensável à verdadeira condição de cidadania. Um propósito que satisfaz, plenamente, não só as estatísticas, como também, e muito, a nunca declarada, mas existente preocupação do poder político em o manter distraído.

 

A terminar, ocorre-me trazer aqui, uma vez mais, uma afirmação do nosso Primeiro-Ministro, em finais de 2015, na cerimónia de entrega do Prémio Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto. Disse ele, para quem quis ouvir:

“De uma vez por todas, o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”.

Esta afirmação, declarada, há oito anos, vem ao encontro do que, há muito, ando a dizer e, para infelicidade de todos nós, não passou de palavras. E a verdade é que não vejo qualquer propósito de alteração visando esta nódoa (há outras) da nossa democracia.

Nota:

Muitos autores consideram a Grécia como o berço da filosofia, todavia outros, os chamados “orientalistas”, defendem que o pensamento racional grego terá sido herança e posterior desenvolvimento de uma sabedoria vinda de povos orientais. Tem havido controvérsias sobre a origem desta forma de organização do pensamento, se na Grécia, se em civilizações orientais mais antigas, na Pérsia, na Índia, na China... "NÃO HÁ MACHADO QUE CORTE A RAIZ AO PENSAMENTO"


 

 

 

 

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16.12.23

Grande Angular - Estranha crise

Por António Barreto

Este fim de semana, os socialistas vão escolher o seu novo secretário geral. O eleito será, logo a seguir, candidato a Primeiro-ministro. Não é seguro, mas é possível que, depois, seja também Primeiro-ministro. O mais interessante, nesta eleição, é o facto de, entre dois dos mais sérios responsáveis pela política do governo desde há oito anos, a alternativa ser estranha. 

 

Pode facilmente pensar-se que não houve, nem há, crise política muito séria. É possível entender esta eleição simplesmente como rivalidade pessoal. Não custa a acreditar que os socialistas estejam persuadidos da bondade deste governo durante oito anos, para já não pensar nos seis anteriores de José Sócrates. Imagina-se que os socialistas não estão convencidos de que são eles os responsáveis pela grave crise dos serviços públicos fundamentais (saúde, educação, justiça…). É tudo possível. Na verdade, com a eleição deste fim-de-semana, os socialistas apagam os erros recentes e consideram-se prontos para um novo e virginal recomeço. As próximas eleições nacionais, as legislativas, serão bem diferentes.

 

A escolha do novo Secretário-geral sugere uma decisão entre dois mundos, dois estilos e duas pessoas. É possível. Mas não será, como deveria ser, uma escolha entre duas políticas.  Teremos, do lado de José Luís Carneiro, a sonolência democrática, a gestão conservadora e a obediência às regras. Do lado de Pedro Nuno Santos, será o sonho ideológico, a exaltação adolescente e o puro abuso de poder. Um gere, o outro faz. Não se sabe bem o quê, nem quando, nem como. Mas, no mundo despolitizado, estes vícios são virtudes.

 

Que querem eles fazer para acudir ao desastre do Serviço Nacional de Saúde? Como pretendem lutar contra a crise da habitação? Que farão a favor da igualdade social? Quais são as suas ideias e os seus planos para tratar da instabilidade e da ineficácia da educação? Como querem tratar do investimento privado? Quais são as suas políticas para a Justiça, a segurança e as polícias? Como explicam a profunda crise, inédita nas últimas décadas, nos serviços públicos? Não se perca tempo: não sabem. Ou não dizem. Ou não querem que se saiba.

 

A competição é adjectiva. Estão em causa procedimentos, processos e intenções. Além das aparências e da imagem, visivelmente diferentes, algo os separa radicalmente. José Luís Carneiro sonha com o partido bem-comportado, capaz de diálogo, com provável preferência pelas políticas centrais, eventualmente mesmo as do “bloco central”, entidade detestada pela vida política nacional. Pedro Nuno Santos anseia por um partido de rupturas políticas e fracturas sociais, idealiza a grande coligação das esquerdas, vive para os restos da revolução que confunde com sonhos.

Os dois candidatos esforçam-se por ser solidários com o governo e a maioria a que ainda pertencem e de que são, aliás, dos mais responsáveis. Mas não querem ser identificados com esse governo. Mas também não querem ser acusados de detractores. Gostariam de ser considerados como alternativas críticas a esse governo, sem que se perceba muito bem que o são. Ambos querem ser alternativas a António Costa e ao governo actual. Mas ambos sonham com o apoio de António Costa e o respeito pelo governo actual. Já toda a gente percebeu que tanto um como outro farão a diferença, mas não querem que se saiba.

 

É uma eleição adjectiva. Quem é mais à esquerda? Quem é mais dialogante? Quem ocupa melhor o centro? Quem está com mais capacidade para fazer alianças? Quem combate melhor o grande fantasma da próxima eleição, o Chega? Quem é mais alternativo, fazendo crer que é a continuidade? Quem é mais continuador, dando a entender que é a ruptura?

 

Muito mais estranho do que esta eleição socialista é a crise nacional. Em certo sentido, a eleição socialista é parte da crise nacional. Poderá um dia figurar nos anais da história como a “crise italiana”. Só que não se sabe se florentina, se siciliana. Verdade é que esta crise nasce e desenvolve-se por exclusiva vontade dos seus protagonistas e dos seus perpetradores.

 

É uma crise inútil, resultado das últimas versões do semipresidencialismo e da competição entre órgãos de soberania (magistratura incluída…). É difícil perceber, hoje, quem será a principal vítima desta crise, se o Governo de São Bento, se o Presidente de Belém. Mas podemos ter a certeza de que se trata de crise inútil e de paixões menores. Ainda não se conhecem os factos e as datas com indiscutível certeza. Mas já se percebeu que grande parte destas operações foi de denúncia premeditada, de revelação calculada e de sentido apurado de circunstâncias e de cronologia. Ninguém sai bem destas histórias. Dos “Influenciadores” às “Gémeas brasileiras”, as trapalhadas foram tais que nos envergonham.

 

Corrupção, cunhas, favoritismo, nepotismo e amiguismo, há de tudo em quantidade. E mais uma vez há a fragilidade da justiça, a vulnerabilidade dos sistemas de honra e a debilidade dos procedimentos honestos. A vida política portuguesa parece feita e imaginada por um espírito mau, diabólico e maquiavélico, que quis criar as condições para a destruição da democracia. A eleição proporcional, o estabelecimento da disciplina de voto, a hegemonia dos partidos, a perversão semipresidencialista e a fraqueza das instituições civis são estímulo à corrupção e protecção dos corruptos. 

 

É uma crise para ficar na história. Não se percebe quem ficou a ganhar. Nem quem perdeu. É mesmo provável que não haja realmente vencedores. Todos perdem, a começar pelos portugueses. O que é que Marcelo Rebelo de Sousa vai retirar destas crises? O que é que António Costa vai lucrar? O que é que os ministros, os partidos políticos e as instituições ficaram a ganhar? Pode repetir-se: todos ficaram a perder. 

 

 

Têm medo da revolução? Do regresso dos comunistas e dos soldados revolucionários? Receiam a extrema-direita e os fascistas? Abominam os justicialistas e os virtuosos de vão de escada? Assustam-se com o crescimento do partido Chega? Vivem apavorados com o surgimento e o crescimento de grupos e partidos estranhos, extremistas, vingadores, puros e totalitários? Têm pesadelos com poderes autoritários e purificadores que destroem as liberdades públicas? Vivem apavorados com a hipótese de surgirem no horizonte movimentos de salvação? Então olhem para onde devem, para a ausência de justiça, para a opacidade do sistema político, para o privilégio partidário, para o segredo de Estado, para a corrupção e para o nepotismo. Olhem e vejam-se ao espelho.

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Público, 16.12.2023

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14.12.23

PENSAR SOBRE O PENSAMENTO

Por A. M. Galopim de Carvalho

Feito dos mesmos átomos que existem nas estrelas, nos minerais, nas plantas, nos outros animais e em tudo o mais que existe, o cérebro humano, cuja estrutura vai sendo a pouco e pouco desvendada, é matéria que adquiriu complexidade tal que, além de coordenar toda a actividade vegetativa do corpo em que está inserido, se assumiu com capacidade de se interrogar, de se explicar e de intervir (positiva ou negativamente) no seu próprio curso e no do ambiente onde surgiu e habita como mais um elemento da biodiversidade. Ao interrogar-se e explicar-se, o homem, entendido como expoente máximo da matéria que se questiona a si própria, adquiriu a possibilidade de pensar sobre o pensamento.

 

A filosofia (do grego philo, amor, e sophía, sabedoria), ou seja, o amor pelo conhecimento, é, sobretudo, a via que conduz o nosso cérebro ou a nossa mente a “pensar sobre o pensamento”, como dizia o meu professor desta disciplina, em Évora, nos meus 6º e 7º anos do Liceu (actuais 10º e 11º), António Hortêncio da Piedade Morais. Daí que os filósofos sejam, muitas vezes, referidos por “pensadores”. Acrescente-se que devo a este belíssimo professor o ter mantido, ao longo da vida, um certo respeito pela filosofia, uma interessantíssima área do conhecimento que nunca aprofundei. 

Sei, no entanto, que o Homem, na sua capacidade de adquirir conhecimento, de o aprofundar e de o transmitir, é a manifestação mais elaborada da realidade física do mundo que conhecemos, na qual foi consumida a totalidade do tempo do Universo, avaliada em cerca de 13 800 milhões de anos. É o expoente máximo da evolução matéria que se questiona a si própria. Foi esta a evolução, que a própria filosofia (como amante da sabedoria que é) desvendou, que permitiu aos pensadores ou filósofos pensarem sobre o pensamento.

 

O pensamento, que não surgiu no cérebro humano da noite para o dia, é um produto imaterial da matéria. Não tem dimensão física. Não tem volume, nem massa, nem peso, nem cor e não ocupa espaço. Para ele não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras materiais. É ubiquista, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, aqui, no interior de um núcleo atómico, na superfície abrasadora do Sol e nos quasares mais longínquos, nos confins do Universo, a milhares de milhões de anos-luz. É imaterial, mas produz trabalho. Se produz trabalho é porque tem força, e muita. Sendo precisa, pode “mover montanhas”.

 

“Esforço intelectual” e “trabalho mental” são expressões correntes. Como tal, o pensamento é força e energia com capacidade de interagir com a matéria. E isso tanto acontece no acto de talhar o sílex entre as mãos de um neandertalense, de lapidar um diamante ou de fabricar um computador, por um conjunto de operários especializados.

 

Se tivermos em atenção a evolução do ser humano, desde o mais antigo primata até ao Homo sapiens, o actual, passando pelos australopitecos e pelos outros hominídeos que os estudiosos têm descoberto e descrito, a pergunta que me ocorre fazer é: - a partir de que estádio evolutivo da hominização, os nossos antepassados começaram a pensar racionalmente? Foi no do “Neanderthal”, aparecido há umas centenas de milhares de anos, foi antes dele, ou foi só no do Cro-Magnon, que se pensa ter exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?

Sabemos que muitos animais superiores revelam capacidades cerebrais amplamente investigadas em institutos de psicologia animal. Quem põe em causa a inteligência de um chimpanzé, de um cão, de um golfinho, de um elefante ou, mesmo, do Troodon formosus, o dinossáurio carnívoro, desaparecido há mais de sessenta milhões de anos? Sabemos, pois, sem sombra de dúvida, que os nossos antepassados pré-históricos exerceram actividade psíquica mais elaborada do que a dos animais vulgarmente ditos irracionais. 

A pré-história ensina que, ao longo da sua evolução física e psíquica, os nossos antepassados desse longínquo período observaram, experimentaram e estabeleceram relações de causa-efeito, transmitindo aos descendentes o saber que foram acumulando, servindo-se para tal da linguagem de que dispunham, de início o gesto e, mais tarde e progressivamente, a fala. Fizeram tudo isto e muito mais antes dos sumérios terem iniciado a arte de escrever, há cerca de 5000 anos. E foi só, a partir do momento em que passaram a viver em grupos progressivamente mais alargados, que se depararam com questões associadas à linguagem e aos valores morais, estéticos, políticos e religiosos. Foi nesta caminhada que surgiram os primitivos filósofos, designação genérica pela qual são habitualmente referidos os mais antigos geógrafos, historiadores, astrónomos, matemáticos e outros pensadores.

 

Há tempos tive curiosidade em passar os olhos sobre um Programa oficial desta disciplina (não sei se ainda em uso), no nosso ensino secundário, e uma das frases que li e que, como se costuma dizer, fiquei de boca aberta, com esta evidente tentativa de impressionar o leitor com propósitos de manifestações de erudição bacoca. Diz-se aí:

“Iniciar à discursividade filosófica, prestando particular atenção, nos discursos/textos, à análise das articulações lógico-sintácticas e à análise dos procedimentos retórico-argumentativos”.

Com uma tal fraseologia, acentuou-me a convicção de que um discurso tão desnecessariamente rebuscado, que aparenta mostrar o elevado nível filosófico de quem o escreveu, mas deixa-me sérias dúvidas e perplexo no que respeita a sua qualidade pedagógica. Um discurso assim faz fugir “a sete léguas” um qualquer adolescente. A mim, cuja idade pesa mais do que cinco adolescentes, foi o que me aconteceu, fugi.

 

Com boa vontade, podemos admitir que todos somos filósofos sempre que procuramos saber ou investigar algo, seja sobre minerais ou rochas, borboletas, literatura, castelos, gastronomia, pintura, planetas e satélites, jardinagem ou até, mesmo, futebol, moda ou tauromaquia. Tudo é sabedoria e tudo é, de facto, para os respectivos cultores, motivo de amor ou interesse. Mas o conceito académico de filosofia é algo mais profundo, a tratar por quem ganhou estatuto para tal. É, por assim dizer, uma sabedoria com uma longa história, vasta e complexa, que abarca a universalidade do conhecimento, que o questiona, explora e, tantas vezes, vai à frente dele.

Como disciplina dos programas escolares do secundário, a Filosofia é um ramo do conhecimento como qualquer outro. Afasta muitos alunos porque, como se viu, usa um vocabulário para eles erudito e hermético, fora do seu dia-a-dia e, portanto, sem interesse. Acontece que, se este “falar caro” for “trocado por miúdos”, deixa de “meter medo”, passa a ter significado e, até, acredite-se, pelo menos para mim, tem beleza. Como filósofo que sou, no estrito sentido de gostar de saber coisas, das mais simples e vulgares, como levantar uma parede de tijolos ou ferrar um cavalo, as ondas de gravidade previstas por Einstein há 100 anos e agora, finalmente, descobertas, ou o bosão de Higgs, não resisto a “meter o nariz e espreitar” este maravilhoso domínio do génio humano.

 

Fique claro que não pretendo “meter a foice em seara alheia”. Não adquiri preparação académica em filosofia. Limito-me, pois, a procurar tornar acessíveis as leituras que a condição de “arrumado na prateleira”, como aposentado, desde 2001 (há 22 anos, é muito tempo), me vão ensinando. ´

Que perdoem os muitos que tratam por tu o discurso filosófico. Não é para eles (que, certamente, dispensarão, estas minhas despretensiosas incursões) que escrevo. A eles peço, sim, que me corrijam onde eventualmente possa errar ou ser menos claro ou incompleto. Escrevo para os que não tiveram oportunidade de contactar com os temas que habitualmente divulgo e que, todos os dias esperam estes meus escritos. E é a pensar neles que vou pondo aqui, e “enquanto é tempo” (o horizonte de vida não permite dilatar o tempo), o que aprendi e continuo a aprender, bem como o que meditei ao longo da vida.

 

Com boa vontade, podemos admitir que a filosofia interessa a todos. Tanto podem falar dela os académicos, numa linguagem elitista, só a eles acessível, mas hermética para o cidadão comum, como nós, numa exigência mais modesta, ao nível da chamada divulgação. Todos somos filósofos sempre que procuramos saber ou investigar algo, seja o que for. Tudo é sabedoria, pelo que tudo é filosofia. Mas, volto a dizer, o conceito académico de filosofia é algo mais profundo, a tratar por quem ganhou estatuto para tal. É uma sabedoria vasta e complexa, com uma longa história, que abarca a universalidade do conhecimento, que o questiona, explora e, tantas vezes, vai à frente dele.

 

Foi o confronto entre a realidade e as ideias que, a partir dela, foram formulando, que conduziu os pensadores no caminho de uma ciência embrionária que, nessa fase, se confunde com a filosofia. É nesta fase que a filosofia ganha o estatuto de “mãe de todas as ciências". Foi a admiração e a perplexidade decorrentes de tudo o que os sentidos traziam ao seu conhecimento, que desencadearam neles esta atitude mental que está na base do maravilhoso edifício do conhecimento científico e tecnológico que temos ao nosso alcance.

 

Já o dissemos e continuamos a poder dizer que foi entre os gregos que começou a audácia e a grande aventura do pensamento. Há quem afirme que terá sido no decurso do século VII a.C., com o desenvolvimento e progresso nos trabalhos diários, que alguns gregos começaram a esboçar explicações racionais que foram conduzindo à progressiva rejeição das explicações míticas da realidade.

É hoje consensual que a filosofia, como superior elaboração do pensamento, nasceu da recusa ao carácter sobrenatural dos mitos, que então dominavam as crenças, não só da sociedade grega, mas de toda a Ásia Menor. A passagem de uma mentalidade fundamentada em crenças de carácter religioso, a uma outra, assente no raciocínio, marca, pois, o início da filosofia.

A filosofia surge, assim, como uma espécie de rompimento com a visão mitológica do mundo grego. Enquanto que os mitos não dispunham de qualquer suporte racional, a filosofia inaugurava o discurso abstrato e universal, amparado na reflexão e argumentação, formulando concepções do mundo isentas de contradições e imperfeições no que respeita o raciocínio lógico.

Ao contrário da religião (neste caso, também a mitologia), baseada na fé, que não contesta, respeita e, praticamente, não se afasta da tradição e dos textos sagrados, a filosofia serve-se exclusivamente da razão para aceitar ou rejeitar as teses que se lhe deparam. A dinâmica social em crescimento nas cidades-estados (“polys”, em grego) jónicas, nas colónias gregas da Ásia Menor, apagou progressivamente as instituições e os valores arcaicos, dando nascimento a uma nova maneira de ver e pensar o mundo.

 

Um parêntesis para lembrar que, na Grécia antiga, cidadão era aquele - nunca aquela - que gozava do direito de participar na vida política da “polys”, um direito igualmente vedado a estrangeiros e a escravos. Foi por essa secundarização da mulher, na chamada civilização ocidental (praticamente, até começos do século XX), que a filosofia, as ciências e muitas outras atribuições lhes foram vedadas.

Durante o século VII a.C., as novas condições de vida nas ditas “polys” acentuaram-se com o fortalecimento do artesanato, do comércio e da navegação, marcando definitivamente a decadência da organização social baseada numa estrutura de base agrária, patriarcal e gentílica. 

 

Este tipo de organização social deu lugar a uma nova forma de pensamento racional, que não partia da tradição mítica, mas de realidades apreendidas na experiência humana quotidiana. 

 

Dito de outra maneira, os resultados da experiência sensível no dia-a-dia conduziu à laicização da cultura e à sua integração numa visão racional e unificadora. Neste quadro, admite-se que tivessem surgido, nas colónias gregas da Ásia Menor, as primeiras manifestações de um pensamento racional, embrião da filosofia, abrangendo os primórdios de uma ciência teórica (sem qualquer apoio experimental). Admite-se ainda que foram também certas particularidades da mitologia grega que conduziram ao pensamento filosófico e que a contribuição dos primeiros filósofos foi dessacralizar e despersonalizar as narrativas tradicionais sobre a origem e organização do cosmos. 

 

Por outras palavras e por fim, não esqueçamos que, não obstante os mitos serem narrativas fictícias, afastadas do discurso racional (“logos”), foram eles que levaram à reflexão por parte dos filósofos, tornando-se, assim, num domínio de fronteira entre as crenças religiosas e a filosofia.

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9.12.23

Grande Angular - Uma tragédia

Por António Barreto

Em Gaza, encontramos muitos dos condimentos que fazem uma verdadeira tragédia. O sofrimento ilimitado. O sentimento de inevitabilidade. A sensação de que os deuses não se entendem entre si e nem sequer eles conseguem evitar a dor e a morte. A ideia de que mesmo os heróis são impotentes e não evitam o seu destino dramático.

 

Ali perto, por razões idênticas, Jerusalém é outro sinal vivo dessa tragédia. Uma das mais impressionantes criações da humanidade está condenada, como sempre esteve. Os seus dramas são eternos, como sempre foram. E não têm solução, como nunca tiveram. A não ser remendos temporários e frágeis, quase sempre impostos pela força.

 

Os protagonistas da tragédia regem-se por princípios de exclusão mútua. Se deixam de se excluir, morrem. Se continuam a excluir-se, vivem na dor e no drama. Contra as suas próprias vontades, a fatalidade impõe-se: a guerra ou a morte! E ninguém escapa à sua sorte.

 

O massacre hediondo levado a cabo pelo Hamas, a 7 de Outubro, foi o sinal de partida para mais um doloroso episódio de morte e chacina cujo fim não se antevê. E que, como sempre, depende de fora, das potências, dos financiadores, dos clientes, dos mandantes e dos fornecedores. Mas não se pense que aqueles povos são meros instrumentos, simples marionetes. Não. Já se percebeu que também agem pelas suas forças e pelas suas cabeças.

 

Israel tem o direito de ripostar e o dever de se defender. Atacado da maneira miserável como foi, em morticínio particularmente sádico, Israel luta simplesmente pela sua sobrevivência como Estado e pela vida dos seus cidadãos. Ao defender o melhor, a sua existência, Israel também defende o pior, a política dos colonatos, por exemplo.

 

Israel e os Judeus constituem um exemplo único: há quem queira destruir o Estado, eliminar os Judeus e liquidar aquele povo. Os Islamitas que o pretendem não se escondem atrás de retórica cínicas: é o que querem e afirmam-no. 

 

O actual governo de Israel respondeu, com justo furor, mas ultrapassou os limites: sem distinguir entre culpados e inocentes, entre terroristas e civis, entregou-se também a um massacre da população palestiniana. Gradualmente, o Governo israelita afasta o seu Estado da democracia, enquanto a Palestina e os seus aliados islâmicos se fortalecem, como sempre fizeram, fora da democracia.

 

O terrorismo islâmico e que inclui a Al Qaeda, o Jihad islâmico, o Isis ou o Daesh, o Hamas, o Hezbollah e outros menos noticiados, representa actualmente o pior que a humanidade propõe e conhece. O Hamas comete alguns dos piores horrores da vida contemporânea: a tomada de reféns inocentes, a execução de prisioneiros e de reféns e o esconderijo militar a coberto de creches, escolas, lares e hospitais. O chamado “escudo humano”, feito de reféns, hospitais e crianças, tem como objectivo claro ter vítimas para contar, motivos para sensibilizar a opinião mundial, oportunidade para filmar e fotografar a miséria e a violência infligidas por Israel. Acontece que, sabendo isso, Israel não poderia nem deveria bombardear tais sítios e massacrar os civis que lá se encontram. Ao fazê-lo, condena-se a si próprio.

 

Uma vaga de anti-semitismo no Ocidente surpreendeu muita gente. Na verdade, os europeus e outros ocidentais, pouco disponíveis para apoiar os Judeus e condenar a mortandade de 7 de Outubro, têm revelado uma formidável energia activista para protestar contra Israel e apoiar os Palestinianos em geral, o Hamas em particular. E não se pense que, nessas manifestações, se trata sobretudo de imigrantes muçulmanos. Os europeus, cristãos ou ateus, têm revelado uma constante solidariedade. Nunca a chaga do anti-semitismo europeu foi extinta, há muito não era tão visível como agora. Mas Israel deu alguns contributos para este anti-semitismo: as suas indiscriminadas acções de guerra são bons exemplos.

 

O totalitarismo islâmico é visível e activo onde quer que seja: nos movimentos de resistência, nos grupos e partidos terroristas, nos regimes confessionais, nos Estados do petróleo e até nas madraças. Sem eleições, sem parlamentos democráticos, sem sondagens e sem liberdade de imprensa, nunca saberemos o que pensam realmente os seus povos. Do outro lado, de Israel, temos eleições, parlamento e imprensa livre. Mesmo nessas circunstâncias, Netanyahu é apoiado no Parlamento. Parece evidente que, com ele e com as ditaduras islâmicas, é frustrada qualquer esperança de solução equilibrada e pacifica, mesmo temporária, mesmo frágil.

 

É de qualquer maneira legítimo perguntarmo-nos qual é o apoio real dos povos do Próximo-oriente, de Israel, da Palestina e de Gaza às políticas actuais de Israel e da Palestina. É bem possível que uma grande parte das populações da região seja favorável à guerra e à destruição do outro, do adversário e do inimigo. O ódio em vigor naquelas paragens é tal que custa acreditar que se trata apenas de opiniões das elites militares, dos dirigentes políticos, dos dignatários religiosos, dos vendedores de armamentos e dos comerciantes de petróleo. Há muito mais. É por isso que é tão difícil. Ambos os lados, a ditadura islâmica e a democracia israelita, parecem apoiar a guerra.

 

O Hamas sabia o que estava a fazer. Sabia muito bem que iria desencadear uma resposta violentíssima. Como sabia que iria perder milhares de militantes e dirigentes, toneladas de armamento, quilómetros de esconderijos e centenas de refúgios. Tinha a certeza de que, com as suas forças, era impossível destruir Israel. Previa evidentemente a destruição de Gaza pelas armas israelitas. Mesmo assim, tomou a iniciativa. É um facto incompreensível.

 

Como não é possível acreditar que Israel nada soubesse do que se passava. Que não percebesse que, durante anos, milhares de militantes, de milicianos e de terroristas treinavam e se preparavam. Que centenas de quilómetros de túneis eram escavados. Que milhares de toneladas de armamento eram preparadas, fabricadas e importadas para o território. Não é crível pensar que Israel não sabia. Também este facto é incompreensível. Parece que ambos, Israel e o Hamas, queriam a guerra!

 

A luta pela dignidade palestiniana e a luta pela sobrevivência israelita são incompatíveis, contraditórias e adversárias. A luta pelos dois Estados é uma solução. Parece mesmo ser a única solução. Impossível. Que ninguém quer. Talvez que, por isso mesmo, seja a única pela qual vale a pena lutar.

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Público, 9.12.2023

8.12.23

“E AS PEDRAS… ESSAS… PISA-AS TODA A GENTE!…" (*)


Por A. M. Galopim de Carvalho

Ao longo da vida, sempre foram e continuam a ser muitos os que me dizem ou confessam nunca terem tido interesse, muito menos prazer, nas matérias de Geologia e de Mineralogia (incluindo a Cristalografia). Estou em crer que esse desinteresse ou desprazer é, preto no branco, ausência de qualidade e de estímulo no respectivo ensino. Só pode ser isto.

Nestes oito anos que levo de participação no Facebook, são muitos os meus leitores que, tendo tido desinteresse ou desprazer no estudo destas matérias, me dizem estarem a encontrar, nelas, interesse e, até, alguma beleza. É verdade que só gostamos daquilo que nos é, verdadeiramente, dado a conhecer. Também é verdade que só ensina ou comunica bem, quem conhece e ama aquilo que ensina ou comunica. É verdade que, a par dos muito bons professores que ensinam esta matérias nas nossas escolas, e eu conheço muitos, também é verdade que há os mal preparados e destituídos do necessário entusiasmo, incapazes de despertar o interesse dos alunos, com emprego assegurado até à reforma e pensão garantida.

Para grande satisfação minha, o número dos meus leitores continua a crescer (hoje, a esta hora, são 4:35, já totalizam 33 255), encorajando-me a continuar nesta caminhada. 

Falemos, pois, de pedras, começando pelo poema

“Desejos vãos”, da grande Florbela Espanca.

 

Eu q’ria ser o mar d’altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu q’ria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu q’ria ser o sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu q’ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...

 

Sem que muitos deem por isso, as pedras ocuparam, desde sempre, um espaço importante no quotidiano do Homem. Elas estão em todo o lado, a começar pela capa rochosa que envolve a Terra e os planetas ditos telúricos (do latim "Tellus", a deusa romana mãe da Terra) a que os geólogos chamam litosfera (do grego "lithós", pedra, e "sphaira", esfera), ou seja, a esfera de pedra. Estão nos asteróides e nos núcleos dos cometas. Podemos vê-las nos meteoritos e através de fotografias, nas superfícies da Lua e de Marte. 

Bem perto de nós, temo-las em grande quantidade e podemos tocar-lhes, nas montanhas, nas arribas do litoral, nos taludes das estradas e nos seixos de praias e de rios. 

 

O conceito de pedra, como sinónimo de rocha, e os conhecimentos relacionados com esta realidade do chão que pisamos percorreram uma caminhada tão longa quanto a do "Homo sapiens". 

Nas suas cavernas, os nossos antepassados da Idade da Pedra encontraram abrigo e segurança e foram pedras, com destaque para o sílex, algumas das suas primeiras e mais importantes matérias-primas na confecção dos seus utensílios. 

Com grandes pedras (megálitos) se construíram antas, afeiçoaram os menhires que reuniram em cromeleques, velhos de mais de 5000 anos. Foi das pedras que, então, retiraram o cobre e o estanho com que praticaram a metalurgia do bronze, e do ferro, com que, cerca de 3000 anos mais tarde, fizeram outro tanto. Com pedras se fortificaram os castros da Idade do Ferro e ergueram castelos, catedrais e palácios ao longo da História e expressaram arte na estatuária de todos os tempos. Estão nas choças dos primeiros povoados e fizeram a monumentalidade de assírios, egípcios, gregos e romanos, bem como a do Renascimento e do Barroco.

 

Pisamo-las nas calçadas e pavimentos, nos degraus que subimos e descemos, no cascalho e na gravilha que suportam o asfalto das rodovias, e nos balastros sobre que assentam chulipas e carris de ferro. Em tosco, ergueram muros e paredes, quer de pedra solta, quer de alvenaria unidas com velhas argamassas feitas a partir do calcário. Vemo-las nas antigas cantarias, aparelhadas a picão, maço, ponteiro e bujarda, e, nas modernas construções, em placas serradas, polidas ou despolidas com recurso a máquinas e ferramentas diamantadas. Foi nelas, enquanto ardósias, que gatafunhámos as primeiras letras e os primeiros algarismos.

 

Delas extraímos o ferro, o cimento e a brita com que se faz o betão e, ainda, a cal que alveja o casario alentejano e algarvio. Fazem o polícromo dos vitrais que coam a luz, tida por celestial, que entra nas catedrais da Idade Média e fazem as amplas vidraças da recente arquitectura urbana. Fornecem o alumínio da imensa caixilharia que caracteriza a moderna construção civil e todos os metais com que se constroem navios, comboios, aviões, automóveis e naves espaciais e são utilizadas em todos os electrodomésticos. São matéria-prima de quase tudo o que são peças de televisores, computadores e telemóveis. Estão nos pratos, copos e talheres e nos utensílios de cozinha, nas jóias e bibelots, no silicone dos implantes em medicina reconstrutiva e nos muitos sais que alimentam as múltiplas indústrias químicas. E se tivermos em mente que o chão que nos dá o pão, ou seja, o solo, resulta da alteração das pedras, podemos afirmar que são elas, o suporte da nossa vida.

Do sílex e do bronze dos primeiros machados à pechblenda, o mineral de onde se extrai o urânio, base da terrível ameaça nuclear, passando pelos pelouros usados em catapultas e bombardas e pela pederneira de mosquetes e bacamartes, as pedras foram e são uma constante na tenebrosa e altamente proveitosa (para os chamados “senhores da guerra”) indústria bélica, um flagelo que, numa caminhada de centenas de milhares de anos, sempre acompanhou a humanidade. No seu inesgotável engenho, o homem retirou das pedras todas as matérias-primas com que fez o progresso, em paz, mas também, desgraçadamente, a guerra.

 

Nota: “A Pedra na Ciência e na Cultura” foi um livro que escrevi a pensar nos professores que ensinam geologia nas nossas escolas e que continua a encher espaço no armazém da editora. Isto porque, à semelhança da generalidade dos portugueses, são muito poucos os que compram livros, para além do manual de ensino adoptado.

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(*) - Último verso do soneto “Desejos Vãos”, de Florbela Espanca

 

 

 

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4.12.23

O SENHOR ANTÓNIO

Por A. M. Galopim de Carvalho

O senhor António sou eu, nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), no Centro de Saúde do meu bairro e nos privados (também eles, hoje, formigueiros de gente), todas as vezes (e são tantas) que a idade me obrigou e obriga a recorrer aos serviços que ali me prestam. 

Senhor António, é assim que sou chamado e tratado. Senhor António chega perfeitamente, dito com simplicidade, umas vezes mais, outras vezes menos atenciosamente, mas, tudo bem. O tratamento da lesão ou da enfermidade é o que mais importa. E é de justiça dizer que é sempre bom, algumas vezes, muito bom, 

A exposição do corpo às mais diversas enfermidades não olha à condição sóciocultural de quem necessita recorrer a uma destas, perdoe-se-me a expressão, “oficinas especializadas na reparação da saúde de pessoas”. É para reparações deste tipo, que os mais abastados recorrem às clínicas privadas, e que os mais necessitados esperam horas nas urgências dos hospitais do SNS. Mas diga-se, em abono da verdade, que, uma vez lá dentro, nada lhes falta. A partir do momento em que se despe a roupa pessoal e se veste aquela “camisa” de hospital, só há senhores Antónios. E eu sou testemunha disso, por umas quatro vezes ter estado internado em outros tantos hospitais, quer do SNS, quer do privado. 

Todos sabemos que, via de regra, o doente é uma pessoa fragilizada física e psicologicamente. Precisa que lhe cuidem do corpo e, quanto a isso, não há nada a dizer, mas também precisa (tantas vezes muito) de amparo e conforto para a alma. Tendo em conta apenas a minha experiência pessoal, constato que, com as pouquíssimas excepções, que sempre as há, os médicos e as médicas que me têm assistido, trataram-me, não como uma pessoa inteira, de corpo e alma, a necessitar de ajuda, mas sim e apenas como um corpo material, a pedir tratamento. Executam, e bem, essa a parte que lhes diz respeito, como profissionais, tal como um amolador de rua, amola uma faca ou uma tesoura. Pouco ou nada lhes interesso como pessoa. Não têm tempo ou disponibilidade para mais. Para esses, estou em crer que nem chego a ser um senhor António. 

Aquando dos internamentos (continuo a falar da minha experiência pessoal), diz a enfermeira:

— Senhor António, o Senhor Doutor já vem falar consigo.

As mais das vezes, a gente espera, espera, e as horas custam a passar. Por fim, como a luz por que almejamos, lá nos aparece o clínico de serviço nesse dia. Olha para algo que está escrito numa informação pendurada aos pés da cama, pergunta ou diz qualquer coisa e, se for preciso, apalpa, ausculta, manda abrir a boca e mostrar a língua e, dois ou três minutos depois, desaparece e nunca mais ninguém o vê. E é assim todos os dias. É verdade que tem vários doentes a assistir e que não pode dedicar muito tempo a cada um, mas podia, perfeitamente, passar duas, três ou mais vezes por todos eles, dar-lhes uma palavra ou um simples sinal de encorajamento, tão importante para quem sofre e julga ver, no médico, o conforto para o seu sofrimento ou, mesmo, a esperança para a sua salvação.

Por duas ou três vezes que perguntei a um médico, numa das várias especialidades a que recorro, sobre esta dor aqui ou sobre aquele incómodo ali, obtive por resposta clara e imediata, algo como:

 

— Marque consulta para o colega da especialidade.

 

Longe de mim dizer que o doente é mal-tratado. Pelo contrário, já o disse, nada lhe falta, mas apenas, insisto em dizer, no que se refere ao tratamento do corpo. A versão de 2017, do juramento médico, creio que, actualmente usada em Portugal, diz, num dos seus preceitos: «a saúde e o bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações”». As do corpo, tenho a certeza que sim, mas as do bem-estar emocional deixam muito a desejar. O acamado na enfermaria ou, ainda pior, no quarto individual, além dos males físicos, sofre horas de doloroso isolamento. 

No seu trabalho diário, os enfermeiros e enfermeiras, assim como os e as auxiliares cumprem tudo aquilo que lhes compete, uns mais outros menos carinhosamente, mas cumprem e bem. É justo dizer que são apenas estes e estas que lidam connosco e se aproximam de nós, não tantas vezes quantas desejamos, mas, diga-se, as necessárias. São, sobretudo, elas, pela sua própria natureza, que nos prestam algum refrigério.

O desconforto de uma noite inteira, no silêncio e semiobscuridade de uma enfermaria ou de um quarto, é sempre bruscamente interrompido, pela manhã, quando se abrem as luzes e se ouvem as suas vozes sonoras, quase sempre impessoais, mas sempre encorajadoras. 

— Bom dia Senhor António.

Por agora estou muito bem de saúde, ao nível a que se pode estar na minha idade, graças, repito, ao facto de o tratamento das minhas enfermidades ter sido sempre bom, algumas vezes, muito bom. E aqui, devo acrescentar, graças, também, aos prodigiosos avanços científicos e tecnológicos na área da saúde, sem esquecer os da farmacêutica.

E é por isso que estou vivo e que pude observar por dentro, nestes últimos cerca de vinte anos, uma muito pequena amostragem dos nossos serviços de saúde (5 hospitais públicos, 2 centros de saúde e 3 hospitais privados), aproveitando para acrescentar que, ainda assim, uma vez dentro, prefiro o serviço dos hospitais do SNS..

A mercantilização do acto médico é, em teoria, reprovada pelo Código de Ética Médica, mas, na prática, ela existe nos hospitais privados, com administrações e accionistas naturalmente interessados no lucro.

Nota: Talvez exagere esta minha apreciação de alguns elementos da classe médica, mas a verdade é que, por infortúnio meu, ela reflecte um sentimento bem interiorizado das muitas vezes que senti o que acabo de relatar, uma delas, mesmo, de declarada deselegância (num hospital privado, diga-se), para usar uma palavra mais suave.

 

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