No "Correio de Lagos" de Fev 21
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Por António Barreto
Por vezes, as grandes crises são propícias às transformações. A actual pandemia é disso um bom exemplo. Aliás, mesmo antes de esta última se ter revelado, já havia sinais de que se preparava uma reconfiguração da política portuguesa. Havia sinais inconfundíveis. O declínio assustador da direita democrática e da democracia cristã. A decadência do centro social-democrata. A frenética ascensão da extrema-direita e do Chega. O imobilismo comunista. A deriva da esquerda radical não comunista. O desenvolvimento das tendências e das “sensibilidades” socialistas. E a proliferação de pequenos partidos.
O protagonismo do Presidente da República acrescentou uma nota consistente e um peso específico próprio com o qual teremos de contar durante os próximos anos. Na sociedade em geral, no mundo sindical, nos meios católicos, nos ambientes maçónicos, nos círculos profissionais e no universo intelectual, surgem fenómenos inéditos que não desmentem a descrença política e sugerem novas afirmações políticas.
Por enquanto, em Portugal, a pandemia tem favorecido o que está estabelecido, o statu quo e o poder do dia. E tem beneficiado os socialistas. Não se sabe por quanto tempo. Por isso, com a necessidade de aprovar três novos orçamentos, com a aproximação das eleições autárquicas e já com as legislativas (antecipadas ou não) no horizonte, a urgência de revisão política é total. Tanto nas esquerdas como nas direitas.
Estranhamente ou não, a esquerda é actualmente a mais importante força de estabilidade e de conservação política. Se pudesse, tudo ficava como está. Aos outros, na oposição, nas margens e nas extremas, compete o mais difícil: reconquistar, reorganizar, renovar e consolidar. Mas a esquerda sabe que, mantendo-se imóvel, fica dependente e pode perder os trunfos actuais. Por isso vamos, quase inevitavelmente, assistir a grandes movimentos políticos e doutrinários no universo esquerdista. E aqui surge, uma vez mais, a necessidade de clarificar as semelhanças e as diferenças entre as duas esquerdas.
Há muitos anos, mais de um século, as divisões dentro das esquerdas são conhecidas. Martov e Kerenski, por um lado, Lenine e Trotski ou Estaline, por outro, representam boa parte dessas diferenças. Que atingiram estados elevados de violência, como é sabido: o assassinato de milhares de socialistas pelos bolchevistas constitui ainda hoje inesquecível marco.
Antes e depois deles, na Rússia e alhures, as discussões dentro das esquerdas nunca foram suaves. Karl Kautsky e Eduard Berenstein protagonizaram visões moderadas do socialismo. Tal como Ebert, na Alemanha, Leon Blum, em França, ou os trabalhistas ingleses Attlee, Bevin e Bevan. Enquanto os comunistas desses países se constituíram depositários do poder soviético e da tradição autoritária e despótica da esquerda.
Em todas as esquerdas europeias, passando pelas alemãs, as suecas, as italianas e as espanholas, encontramos fenómenos semelhantes: desde a segunda metade do século XIX e até há bem pouco tempo, as separações dentro das esquerdas foram sempre um capítulo fundamental, muitas vezes violento, da história política europeia. Por exemplo, os confrontos entre as duas esquerdas, em plena guerra civil espanhola, ficaram para a história. Mais perto de nós e sem o carácter sangrento de outras paragens, o confronto entre socialistas e comunistas, ou entre Soares e Cunhal, transformou-se no mais sério contributo dos portugueses para a história política das esquerdas na Europa.
A associação do PS às esquerdas radicais (PCP e BE), no Parlamento e no governo, já criou uma situação inédita que dura há quase seis anos. Na crise actual, já se percebeu que as coisas não ficarão como estão ou como têm sido. E o que está em causa é muito importante. Juntam-se finalmente as esquerdas democráticas e as não democráticas? Separam-se de vez? A esquerda democrática consegue atrair e digerir as esquerdas não democráticas? Ou estas últimas obtém a vitória histórica de mudar e dominar os socialistas democráticos?
Os socialistas têm o benefício das opiniões e dos votos. Por enquanto. Fortemente identificados com a Europa e a democracia (e a Aliança Atlântica), mostram vantagem. Mas a sua vulnerabilidade diante dos negócios, dos grandes grupos económicos, da corrupção e do jacobinismo abre-lhe um flanco mais fraco. Tal como a sua dificuldade em combater a desigualdade e em alicerçar uma aliança durável com o mundo do trabalho. Dependentes das outras esquerdas, os socialistas, para ganhar, podem ter de vender alma e doutrina.
Na sua melhor tradição, os socialistas opõem-se aos métodos revolucionários, ao terrorismo, à violência, à colectivização, à destruição da iniciativa privada, à opressão da Igreja, ao monopólio do Estado na educação e na saúde, à aniquilação das Forças Armadas e a formas de governo não democráticas e não parlamentares. Mas também sabem que nas esquerdas há muito fortes tendências exactamente contrárias, com especial inclinação para destruir o mercado livre e a iniciativa privada, com um estranho afecto por formas “populares” de governo, com a obsessão do monopólio do Estado e com uma absoluta aversão pelo investimento privado. Estão ainda conscientes de que as esquerdas radicais têm uma concepção elástica dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos cívicos e políticos; assim como têm convicções condescendentes sobre a guerra civil e a luta das classes, a violência e o terrorismo (se este for de esquerda, das minorias, de tudo quanto é anti-capitalista ou anti-americano…) contrárias às tradições socialistas. Como é sabido que nas esquerdas vegeta uma grande complacência, quando não admiração, por formas de governo muito especiais, como sejam as do despotismo tropical latino-americano, as das ditaduras militares africanas e asiáticas, as das burocracias parasitárias africanas e árabes, as dos movimentos radicais muçulmanos e as dos separatistas europeus violentos.
Quando, há seis anos, António Costa decretou “o fim do tabu”, isto é, dispôs-se a governar em aliança com as esquerdas radicais, iniciou-se uma nova e interessante fase na política nacional: a colaboração entre as duas esquerdas. Na Europa, com o desaparecimento dos partidos comunistas e aparentados, já não se falava disso. Mas, em Portugal, quase sempre atrasado, iniciou-se essa colaboração. Por necessidade, claro, mais do que por convicção. Mas, sem esclarecimento, trata-se de colaboração passageira. Sem objectivos. Sem horizonte. Quer isto dizer que a hora das escolhas está a chegar.
Público, 27.2.202
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Por Joaquim Letria
Um jornalista ocidental perguntou certa vez a Deng Xiao-ping quais, em seu entender, tinham sido os efeitos da Revolução Francesa sobre o pensamento europeu. O velho líder chinês respondeu:
— Ainda é cedo para o sabermos.
De uma crise como esta que vivemos actualmente não se sai sem um grande acordo social, no qual os principais interlocutores – empresários, trabalhadores e administração pública – cedam conscientemente nas suas posições de princípio até encontrarem um mínimo denominador comum que permita a recuperação, o bem estar e, por fim, o desenvolvimento.
Perdidos no meio de tanta teoria, sujeitos a tantos especialistas tombados sobre mapas e gráficos de tanta estatística, números frios e inertes, jaz o drama de muitos milhões de pessoas, verdadeira vala comum de sonhos desfeitos.
Muito pouca desta gente a quem pertencemos saberá o que é o PIB ou o défice comercial e quase ninguém será capaz de explicar o que é a balança de transacções correntes.
Sobrevive-se numa sociedade desprendida e sem solidariedade em que ninguém quer repartir o que há, de forma a que algo chegue para os que nada têm. Só um grande debate poderá levar-nos ao acordo necessário. Deixando cada um de fora as malas da demagogia, impõe-se a honestidade de remeter cada discurso para a crueldade dos factos.
O homem de hoje tem de se reconhecer provisório. Como dizia Karl Marx, diante de nós tudo se volatiliza, tudo o que é sólido se pulveriza no ar. Finitos como somos, reinventamo-nos sem cessar.
Este é um debate que devíamos travar com serenidade e a duas dimensões. A do dia a dia de hoje e a do grande amanhã.
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Por C. B. Esperança
A pandemia em curso remete-nos para a guerra colonial, quando o medo, a ansiedade e as saudades da família e dos amigos se fundiam numa amálgama de sentimentos que se agravavam, e perturbavam os mais sensíveis ou os que experimentavam maiores riscos.
Era vulgar, dia após dia, ver aumentar o número dos que sofriam pesadelos, gritavam e pediam a arma durante o sono e, acordados, diziam frases sem nexo ou remetiam-se ao mutismo. Eram designados por “apanhados pelo clima”, a forma de referir as alterações do comportamento.
A pandemia, ao contrário da guerra colonial, não tem um fim previsível e nem sequer se pode dizer que, depois dela, o perigo passa. A pandemia é a guerra sem quartel, contra um inimigo invisível, sem limite de tempo, e, na melhor das hipóteses, de conversão em epidemia. O fim do confinamento não é o termo de uma comissão na guerra colonial.
O apelo dramático de Guterres, para não se deixarem os países pobres sem vacinas, não é um mero apelo à solidariedade que lhes devemos, é um contributo para a nossa própria sobrevivência. O vírus não respeita fronteiras e é, talvez, na sua letalidade, uma tragédia democraticamente dirigida a ricos e pobres, países e pessoas.
Nota-se na reação das pessoas que conhecemos bem uma progressiva melancolia ou um desespero que aumenta a agressividade e nervosismo. A conduta dos média e das redes sociais tem sido nefasta na exploração do medo e exigência de respostas desconhecidas. Esquecem-se as hesitações das mais credíveis organizações científicas mundiais e as dúvidas e contradições de epidemiologistas e infeciologistas consagrados.
Nunca tínhamos passado, a nível planetário, por situação tão dramática, por uma infeção tão contagiosa e letal. Não admira que o medo nos oprima, a ansiedade nos deprima e a falta de afetos, de contactos, sociais e físicos, nos perturbem. É dramático ver um perigo em cada filho, e como suspeitos os netos.
Vai ser difícil viver com medo e ansiedade, com afastamentos físicos, máscaras e receio do troco do café, do puxador da porta da rua, da mão amiga que deixou de se estender, dos beijos e abraços que nos enterneciam.
Há quem consiga digerir a situação com alguma bonomia, mas é difícil que se adaptem todos os que sentem o peso do confinamento, da abdicação das liberdades elementares e dos condicionalismos que vão persistir.
Quando a situação melhorar, há de melhorar, são de temer os comportamentos, exagero na recuperação do tempo perdido ou abulia pelo regresso à normalidade que há de vir, bem diferente, decerto, da que antecedeu a pandemia.
Na religião, na política, nos afetos e nas relações sociais e familiares haverá alterações pautadas por excessos numa crise existencial que a falta de empregos e de perspetivas exacerbará.
As feridas não dilaceram apenas as gerações que vivem o drama pungente da pandemia, hão de repercutir-se nas gerações que hã de vir.
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Por António Barreto
A pandemia e os seus efeitos, assim como os processos de combate, a organização dos serviços e a eficácia das medidas tomadas, ocupam os nossos dias, os jornais, as redes e o espaço público. É normal. Fala-se de mais e surgem multidões com uma competência médica e cientifica inesperada. Tanta gente tem tantas opiniões definitivas sobre estes assuntos! Mesmo nestas circunstâncias é razoável que o tema seja a principal preocupação de todos, pessoas, organizações e jornais. Ainda por cima, com a acumulação de incerteza, de ineficiência e de erros, é compreensível que quase não se discuta outra coisa.
Mesmo assim, vivemos tempos em que novas polémicas se instalam, desenvolvem e sobem de tom. Ou antes, velhos preconceitos e antigas irracionalidades renascem. Fascismo e antifascismo, racismo e anti-racismo, antigas rivalidades, estão de novo presentes. Mesmo estando hoje desadequados à sociedade portuguesa, absolutamente fora de tempo e questão, sendo indignos disfarces para outras lutas e infames pretextos para envenenar as relações sociais e políticas, estes dilemas ocupam o espaço que deveria ser de razão e liberdade. Há fascistas em Portugal? Certamente. De todas as condições. Há racistas em Portugal? Não há dúvidas. De todas as cores. Devem a democracia, a razão e a liberdade combater essas pessoas e esses valores? Seguramente e sem hesitação. Mas o que fazem os que se classificam como antifascistas e anti-racistas é tão nefasto à liberdade quanto os adversários. A peste não se combate com a cólera.
Quando as coisas correm mal, mesmo muito mal, o pior vem ao de cima. Os espectros que actualmente ameaçam a paz em Portugal, os vultos que rondam as ruas e os campos são as causas erradas. Não a pandemia, não a desigualdade, não a pobreza, não a incerteza económica e social, mas sim o fascismo e o antifascismo, o racismo e o anti-racismo.
Em tempos de crise, há quem culpe os estrangeiros. É sempre assim, há séculos. Doença ou greve, fuga de capital ou conspiração, terrorismo ou desordem, tudo vem com os estrangeiros. Porque eles tomam conta dos nossos empregos, casam com as nossas mulheres, ficam com os nossos homens, ocupam as nossas casas, trazem valores deles para as nossas escolas, não respeitam as nossas tradições nem as nossas leis. São estrangeiros e abusam da nossa hospitalidade. Aprenderam a viver à custa dos subsídios do Estado, não pagam impostos, só têm direitos, não querem ter deveres. Se não se sentem bem, deveriam ir-se embora. Para o seu país.
E depois há os que além de serem estrangeiros são negros, amarelos ou castanhos. Asiáticos ou ameríndios. Árabes ou chineses. Sem falar nos judeus e nos muçulmanos. São duplamente nocivos. Não respeitam as nossas tradições e querem impor as deles. Desprezam as nossas leis e querem forçar as suas regras. Com os seus deuses, as suas comidas, as suas famílias, as suas regras de casamento e educação, não fazem esforços para se integrar. Forjam casamentos contratados, vendem crianças e adolescentes, trocam pessoas por fortunas, tratam mal os animais, vivem fechados nas suas comunidades, só tratam dos seus e sujam o espaço público de todos e o nosso em particular. Oprimem os seus e não querem saber da democracia.
Somos nós os europeus verdadeiros, senhores de um passado, mestres da descoberta. Filhos e herdeiros de uma longa história, de uma velha tradição, não podemos deixar que nos destruam costumes, regras e crenças. Fomos generosos a ponto de deixar entrar estrangeiros, minorias, negros e árabes, mas eles não se querem integrar nem respeitar as nossas leis. Por isso temos de restaurar a nossa pátria, reconsiderar as nossas tradições e exigir respeito, sem o que terão de ir embora, até porque muitos vieram com mentira, não são refugiados, não são exilados e não são perseguidos. Uns procuram trabalho, outros nem sequer, entregam-se a actividades ilegais, a comércio ilícitos, conspurcam as ruas e as instituições. Não é verdade que somos todos iguais. Quem não está bem que se retire. Não sou racista. Até tenho amigos pretos.
É por isso que combatemos os “supremacistas” brancos. Nós, portugueses de outra etnia, imigrados, minoritários, africanos, estrangeiros, brancos solidários com as minorias e que denunciamos a superioridade dos brancos, dos antigos colonialistas, dos esclavagistas e dos nostálgicos do fascismo. São esses brancos que nos exploram, abusam das nossas mulheres, tentam vender-nos droga, não nos pagam a horas e quando pagam são salários de miséria. Não nos admitem nas suas escolas nem nos seus hospitais, não cuidam dos nossos velhos, pagam mal as pensões e quando as coisas não correm bem para eles, por causa deles, a primeira coisa que lhes ocorre é dizer-nos “vão-se embora”. Nem sequer percebem que muitos de nós, cada vez mais, nascemos aqui. Por isso, exigimos medidas contra os racistas, contra os que, no espaço público, alimentam o ódio contra os estrangeiros, querem restaurar as glórias do colonialismo, a força dos conquistadores, os direitos ilimitados dos brancos e dos poderosos sobre os trabalhadores. Exigimos que nos devolvam o património que nos roubaram durante séculos. E que a história seja expurgada do racismo e do colonialismo.
Estes confrontos envenenam a vida política portuguesa. Destroem a inteligência e o sentido de comunidade solidária. Estes episódios fazem-nos ter saudades da luta das classes! Dos tempos em que as lutas se desenrolavam à volta de questões políticas, económicas e sociais de grande importância e de relevo para a direcção de uma sociedade e para a afirmação de um poder! Dos debates em que estavam em causa o poder político, as relações entre o capital e o trabalho, a propriedade dos meios de produção e a repartição do produto e do rendimento. Dos combates em redor da organização do Estado, da defesa nacional, da paz e da guerra e da segurança colectiva. Saudades dos tempos em que se lutava por valores essenciais da política, do trabalho e do emprego, dos direitos dos trabalhadores e dos patrões, das obrigações e dos deveres de cada um e de todos! Saudades das lutas pelos serviços de saúde e de educação e pelos direitos e deveres dos idosos! Dos tempos em que a liberdade e a democracia estavam no centro das discussões e das lutas e não eram consideradas, como hoje, hábitos adquiridos e secundários ao lado da importância decisiva de símbolos, da memória e da culpa.
Público, 20.2.2021
Por Joaquim Letria
Parece que foi ontem que eu saía às duas da manhã duma segunda sessão duma Revista do Parque Mayer, perfeitamente a tempo de encontrar cafés abertos com gente a conversar e a máquina dos expressos ainda ligada.
Depois dum café e de dois dedos de conversa, saltava-se gostosamente de cabaret em cabaret. Encontrávamos aí as habituais e os habituais, é verdade que se bebia bem mas ninguém picava os braços e os afectos, por um lado, e a luxúria por outro, entretinham-nos até bem dentro da madrugada, muitas vezes até de manhã.
Eu não era um desses fregueses de mercearia de bairro que, uma vez por semana, vive a aventura das grandes superfícies. Compartia com naturalidade essa promiscuidade das pequenas multidões com o gosto de desfrutar o prazer mais íntimo das pequenas lojas.
Nunca fui um incapacitado face à mais complicada adaptação de limpar a cabeça e fazer o corpo pagar o ócio, a aventura, o prazer, a dúvida e viver a vida. Era a nossa vingança da infelicidade da vida do pára-arranca, da tristeza, do abandono, das incertezas. E vai ser essa a nossa vingança daquilo que a vida nos inflige hoje, logo que a maioria de nós conserte a sua vida.
Já devem ter reparado que só muito raramente escrevo algo relacionado com a pandemia que tanto nos faz sofrer, mas recuso-me a cantar no coro de todos os que se substituem aos médicos, aos economistas, aos sociólogos, aos políticos, criando um ambiente que tanto faz sofrer, muitas vezes dizendo coisas sem fundamento mas que contribuem para a neurose e o sofrimento mental que tanta gente afecta.
Deixem os médicos e enfermeiros derrotarem a doença, os políticos fazerem o seu trabalho mesmo com algumas asneiras difíceis de aceitar que, essas sim, devem ser denunciadas, mas permitam que se pense noutras coisas, não nos imponham o lado mau de tudo o que temos de resolver no dia-a-dia das nossas vidas. E o pesadelo do futuro logo se verá. Mais vale pensarmos assim do que submetermo-nos á monstruosa crueldade a que nos sujeitam sem nos deixarem outra saída que não seja não pensar em mais nada que não seja a desgraça desta situação.
Transportar todo o passado livre e feliz para a nossa vida de hoje deixa-nos um mau gosto na boca e desenha-nos um sorriso triste na cara. Mas há que acreditar que tudo aquilo de que nos lembramos e os pequenos prazeres que ainda não se apagaram voltarão a ser possíveis e que ganharemos força e vontade para ajudar, estimular e conseguir levar até á vitória aqueles outros de todos nós que vão vencer este maldito tempo e que ultrapassarão as marcas mais graves que a doença nos vai deixar.
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Por C. B. Esperança
A absolvição no Senado, onde eram necessários 2/3 dos senadores para a condenação, foi trágica para a democracia.
Não bastaram quatro anos de pregação do ódio, de afronta às instituições democráticas, de rutura com acordos internacionais assinados pelo Estado americano e as tropelias do homem sem ética, sem coerência, sem sentido de Estado e em permanente conflito com a verdade.
Viu condenar os amigos na duvidosa eleição que o levou à presidência, por perjúrio na trama russa no resultado eleitoral, assistiu à permanente debandada dos seus mais fiéis servidores quando um módico de dignidade os assaltou e manteve-se cobarde e mitómano durante todo o mandato no persistente abuso dos poderes presidenciais e na obstinada manutenção no poder para desacreditar e destruir a democracia.
Perdidas as eleições fez tentativas grosseiras para se manter no poder, desde pressionar um governador para lhe inventar uns milhares de votos até ao falhado golpe de Estado no assalto ao capitólio, dirigido por ele através dos média e das redes sociais. Quis que a eleição ignorasse as urnas, primeiro por fraude, depois pelos tribunais.
No Supremo nomeou 3 juízes vitalícios, dois deles de forma insólita, o primeiro porque o Partido Republicano impediu Obama de o nomear por estar a cerca de 1 ano do fim do mandato e a última quando ele próprio já estava em campanha eleitoral.
A instigações do assalto ao Capitólio e as cinco mortes ficaram impunes por cobardia de senadores que perderam a dignidade com medo de com da vingança dos eleitores de Trump nas suas reeleições.
Trump acabou a indultar os crimes dos seus amigos e familiares e acabou ele próprio absolvido no Senado que manchou a sua dignidade e a das instituições democráticas dos EUA, num péssimo exemplo para o mundo.
O Partido Republicano, hoje dominado por seitas e organizações de extrema-direita não foi sempre menos democrático do que o seu rival, era apenas mais liberal na economia. Hoje, tão mal frequentado, é cada vez menos recomendável.
Joe Biden, no curto espaço do seu mandato, tem cumprido de forma digna as promessas que fez, sendo-lhe difícil restaurar a autoridade moral perdida e a confiança dos países onde o Estado de Direito define as democracias.
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Por António Barreto
Não é inevitável, mas tudo leva a crer que, dentro de poucos meses, se abra o debate sobre as alianças políticas. Dado o afastamento dos governos de iniciativa presidencial e de unidade nacional, as hipóteses são conhecidas: esquerda contra direita? Bloco central?
Com o que sabemos hoje, não será exagerado prever que a decisão pertencerá sobretudo à esquerda, ao PS em particular. É verdade que a pandemia tem provocado uma enorme erosão do governo, mas também é certo que a direita não parece beneficiar dessa evolução. Cumprida ou não a legislatura até ao fim, a mais importante decisão será a que diz respeito às esquerdas: unidas ou separadas?
Esquerdas sempre as houve, duas ou mais. O que as define e divide é o essencial da política, como a liberdade e a democracia. Nas questões sociais (saúde, educação, segurança social, trabalho…) pode haver diversidade, mas não separação definitiva. É a política que as divide, não o social nem a economia, muito menos a cultura. São poucos os critérios decisivos. A democracia e o respeito pelas regras democráticas vêm à cabeça. Estas constituem os principais elementos definidores da democracia: igualdade de estatuto e de direitos entre cidadãos; direito de voto em eleições periódicas e regulares; quem ganha eleições governa e respeita quem perde; garantia de liberdade de expressão; e instituições livres. Isto é o fundamental. As variantes adjectivas, democracia “cultural”, “social” ou “económica”, por exemplo, são outras coisas. Em geral, fantasias.
O entendimento da liberdade individual é outro critério. Quando a liberdade e a dignidade da pessoa humana começam no indivíduo, estamos numa esquerda. Quando a liberdade individual está submetida à “liberdade colectiva”, quando os “direitos individuais” dependem dos “direitos colectivos” e quando é o “colectivo” que determina a amplitude do “individual”, estamos noutra esquerda. Uma e outra são incompatíveis, a não ser com enorme dose de oportunismo.
O papel da iniciativa privada pode ser mais um critério. A esquerda democrática ou a social-democracia respeitam e dão uma larga margem à iniciativa privada. A esquerda radical, comunista, socialista e revolucionária, não lhe confere qualquer papel, tolera-a a contragosto ou elimina-a.
Há uma esquerda que pretende controlar a iniciativa privada. Os socialistas e os sociais-democratas andam por aí. O princípio é simples: o poder político tem o primado sobre o poder económico. Há outra esquerda que quer simplesmente acabar com a iniciativa privada, a não ser que seja pequena, pobre e obediente. Os famosos “pequenos e médios” (agricultores, camponeses, comerciantes, industriais…) formam essa iniciativa privada tolerada e dependente.
Há uma esquerda que aceita a economia de mercado, o capitalismo, a livre empresa, os empresários e a iniciativa privada, mas entende que toda esta realidade deve ser compensada, contida, regulada ou equilibrada pela política e pelo Estado Social. Enquanto há uma outra esquerda que tem como objectivo último a destruição do capitalismo, da iniciativa privada, das empresas, das classes proprietárias, da banca, dos seguros e dos serviços privados de saúde e educação.
Costuma referir-se outros critérios como a igualdade social e económica, o papel do Estado, a centralização do poder, a regionalização e outros. Mas não são realmente conceitos que identificam ou distinguem. Revelam simplesmente a variedade programática das tendências. Por exemplo, a esquerda democrática, em Portugal, já foi centralista e adversária da regionalização; agora ainda é centralista, mas já é favorável à regionalização. Quanto à esquerda comunista, sempre foi fortemente centralizadora, mas também, paradoxalmente, defensora da regionalização.
Outros critérios importantes são a nação e a identidade nacional. Constituem distinção importante entre esquerda e direita, mas não muito para as duas esquerdas. Conforme os tempos e as necessidades, há nacionalismo, patriotismo e internacionalismo numa ou noutra esquerda, ou nas duas. Ou em nenhuma. A União Soviética, por exemplo, era ferozmente nacionalista e proclamadamente internacionalista.
Novo critério ainda, o da religião. Os republicanos, os maçónicos e os jacobinos, que frequentam com assiduidade o socialismo e a social-democracia, não gostam em geral da religião, receiam-na, utilizam-na quando lhes convém, adulam-na quando precisam, hostilizam-na quase sempre. Já os comunistas, conservadores como são, respeitam a religião enquanto estão na oposição. Se um dia chegam ao poder, perseguem-na.
Interessante é perceber que o que distingue as duas esquerdas não é o que separa a esquerda da direita. Com efeito, o papel do Estado, por exemplo, pode ser defendido com ferocidade por correntes da esquerda, mas também da direita. Os fascismos, o nazismo e as ditaduras ibéricas eram favoráveis ao papel dominante do Estado, tal como a esquerda radical, sempre, e a esquerda moderada por vezes. A regionalização também não é carácter distintivo: tem os favores de várias correntes de direita e várias de esquerda.
O que separa realmente as duas esquerdas é a liberdade e a democracia. É verdade que ambas dão mais importância à igualdade do que à liberdade. Ambas preferem o Estado e o poder político às empresas e ao poder económico. E ambas privilegiam o Estado como fornecedor dos serviços de educação e saúde. Mas há diferenças fundamentais entre as duas esquerdas: a liberdade individual e a democracia.
O PS parece ter renunciado definitivamente à ambição maioritária. O que quer dizer que a sua política de alianças passou a ser a pedra de toque. Aliança com o centro e a direita social-democrata ou democrata-cristão. Ou aliança com a esquerda radical, não democrática e revolucionária. Esta parece ser a mais provável. O que tem o mérito de obrigar a uma discussão séria sobre os limites dessa aliança, o seu objecto e o seu horizonte.
Como é sabido, o Estado democrático é, para os comunistas e talvez também para o Bloco, etapa ou fase de transição. O que vem a seguir, mais ou menos socialista, mais ou menos comunista, mais ou menos ditadura do proletariado, mais ou menos democracia avançada, é uma grande incógnita. Que precisa urgentemente de esclarecimento. Em tudo o que é essencial, os direitos individuais, o Estado, a democracia, a defesa nacional e a propriedade, a separação entre as duas esquerdas é total, o obstáculo é intransponível. A não ser que uma abdique a favor da outra.
Público, 13.2.2021
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Por Joaquim Letria
Esta coisa de viver meio confinado e com justas preocupações pela saúde de familiares e amigos leva-nos a fugir, de vez em quando e quase sem dar por isso, para memórias e saudades, algumas das quais são recordações distantes que regressam sem explicação.
Foi deste modo estranho que dei comigo a lembrar-me agora dos franceses a perorarem em Hanói, território da francofonia, com cabo-verdianos e guineenses a observarem aquela comunidade presunçosa de intelectuais, através da qual eu soubera que o meu amigo Emmanuel Dongala, um dos melhores escritores da língua francesa do século XX, encontrara os braços abertos de Philip Roth que o despachou para a paz do Bard College, em Massachusetts.
Foi aí, não muito longe de Boston, que Emmanuel passou a viver com um visto que o reconhecia como Professor Universitário Convidado. Ali, no meio do verde da relva e do vermelho escuro dos tijolos, deixando perder a vista atrás de irrequietos esquilos, Dongala voltou a ensinar Química e Literatura Africana de Língua francesa.
Dongala, que conhecia a minha paixão por Brazzavile, onde nos conhecêramos, dera-me notícias tristes sobre o estado daquela que outrora fora uma das mais bonitas, delicadas, acolhedoras e cosmopolitas capitais de África e que então fora reduzida “a escombros, só escombros, faz lembrar Berlim em 1945”, dissera-me ele. ”Dos milhares de livros da minha biblioteca não salvei muitos mais do que uma dúzia”, acrescentou, explicando que naquele tempo houvera cinco meses de combates com milhares de mortos pelas ruas e que ele e sua família se salvaram por mero acaso.
Conhecera Dongala pouco antes de ele ter ido a Paris apresentar o seu último livro, “Os Putos Nascem das Estrelas” onde conta a história do Congo. O escritor optara por apresentar essa narrativa através do olhar falsamente inocente duma criança. O autor de “Uma espingarda na mão e um poema no bolso” não tinha intenções de saír de Massachusetts. Hoje perdi-o de vista, sei que continua por lá, mas tenho saudades daquele bom amigo com quem viajei por África. Oxalá tudo esteja bem com ele e que todos aqueles que puderem que o leiam.
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Por C. Barroco Esperança
Não sei como conciliar a defesa da liberdade de expressão, que passei a vida a defender, e a condenação de médicos que negam o interesse do uso generalizado de máscaras, dos testes da Covid-19, da gravidade da pandemia e lançam dúvidas sobre as vacinas.
O grupo Médicos Pela Verdade suspendeu a participação nas redes sociais e o e-sítio em que exerciam a sua ação deletéria. Fizeram-no, acusando que vivemos em ditadura, que a liberdade de expressão é desrespeitada, que foram perseguidos, o que é provável, com a ameaça de que vão repensar a forma de divulgarem o que chamam ciência. Parecem virologistas da escola de infeciologia de Trump e da de epidemiologia de Bolsonaro.
O alarme social que esse grupo de médicos provocou levou a Ordem a abrir processos disciplinares contra os seus membros. Espera-se que, no intervalo das entrevistas contra o Governo e, em especial, contra o ministério da Saúde, o Bastonário informe o país sobre o andamento do inquérito e, a seu tempo, sobre as conclusões e eventuais sanções disciplinares.
Se esses Médicos Pela Verdade fossem uma seita religiosa, um grupo de jogadores de bisca lambida ou de jogadores de chinquilho, sem exercerem medicina, nada haveria a opor, estavam ao mesmo nível do que juram que a Terra é plana e o Sol gira à sua volta.
Ora, os médicos devem respeitar “o estado da arte”, isto é, exercer segundo o que a arte médica, de acordo com os conhecimentos científicos, determina em cada momento. Não duvido do mediatismo que esperavam com a negação da realidade atual da ciência, mas já causaram graves danos ao combate à pandemia e à mortalidade.
Quem confia nos médicos, como deve e convém, ficou perplexo e foram devastadoras as consequências no aumento da ansiedade e do medo nas pessoas.
Os referidos médicos não se limitaram a colocar as dúvidas entre especialistas, foram os divulgadores de mentiras, que o estatuto profissional tornou credíveis, para a população.
É natural que a OM oculte os resultados do inquérito, que os que ora dizem ser vítimas de perseguição e sofrimento fiquem impunes, porque que as Ordens se substituíram aos sindicatos e os Bastonários se converteram em sindicalistas e militantes partidários, e a deontologia parece ter sido exonerada.
Está em causa a saúde dos portugueses e, se o Estado está tolhido pelas corporações, os cidadãos devem escrutinar as Ordens e exigir que cumpram as obrigações disciplinares.
Foto e link: Observador
Ponte Europa / Sorumbático
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Por António Barreto
Um boato corre o mundo: foi a pandemia que derrotou Donald Trump. A vida política é feita destas pequenas verdades e destes grandes boatos, assim como de rumores académicos, disfarçados de rara sabedoria. Inventados por gente esperta, são depois retomados nas redacções dos jornais e nos canais de televisão. Assim se chegou à certeza de que a pandemia tem potencialidades políticas inesperadas. Logo se começou a pensar que é preciso agir depressa para aproveitar o momento. De imediato se começaram a fazer cálculos para as mais insensatas aventuras, para o que políticos portugueses rapidamente se prepararam.
Está estabelecida a ideia de que “quanto pior melhor”. Se tudo correr mal nos hospitais e nos centros de saúde, perde o governo e ganha a oposição. Como de facto muito não está a correr bem, os políticos de oposição sentem que têm de estar atentos. Não só os actuais dirigentes, mas também os candidatos. As direcções partidárias do PS, do PSD, do CDS, do Bloco e até, imagine-se, do PCP são vítimas da pandemia.
Assim é que, dentro dos partidos, começou a temporada de luta e caça. Até no PS, que deveria estar mais empenhado em tratar do governo e do país, apareceram as primeiras “movimentações”. Nos outros partidos, vai haver luta pela liderança antes do Inverno. Na previsão de que, até lá, se confirme a perda de reputação de António Costa e do seu PS. Desde a votação do orçamento que se percebeu que a maioria estava desfeita. Bloco e PCP fazem contas à vida e percebem, com as presidenciais, que o seu futuro está periclitante. Foi quanto bastou para que a competição interna desse sinais de aquecimento. No PSD, que nunca deixou de estar em guerra consigo próprio, revelaram-se já ambições inesquecíveis.
A verdade é que o governo e as autoridades sanitárias não têm desempenhado as suas funções com eficácia. Antes pelo contrário. Mostraram hesitação, ignorância e medo. Revelaram prepotência e capricho. Deram provas de uma obscena inclinação para a propaganda política. Deixaram vir à tona do discurso toda a sua aversão à sociedade e à economia privadas. Ganharam terreno as alucinadas veleidades do PCP e do Bloco que sonham com a destruição pura e simples do mundo privado.
As autoridades enganaram-se com as máscaras, o plano de vacinas, a duração e as regras do confinamento, os comércios a fechar, o ensino à distância, o teletrabalho e a colaboração com os hospitais privados. Falharam nas previsões. Mesmo sabendo, como os socialistas dizem há anos, que o Serviço Nacional de Saúde estava com enormes faltas de pessoal, instalações e equipamento, não foram tomadas medidas suficientes, mal se soube o que aí vinha. Erraram para além do admissível numa área particularmente sensível, a do racionamento e das prioridades das vacinas.
Exageraram nas facilidades e no optimismo quando deviam ser firmes nas regras e nos costumes. Tentaram manipular as taxas e as estatísticas, como fazem os ditadores. Exageraram nas conferências de imprensa ou nas conversas de vão de escada, deram avalanches de pormenores técnicos, logo contrariados no dia seguinte, afogaram a opinião pública, confundiram os cidadãos com excesso de informações inúteis, ocultaram sistematicamente os números simples e reveladores em proveito das enxurradas de equações e taxas. Conduziram uma política de comunicação errada. Informação a mais. Pormenores técnicos a mais. Política a mais. Ideologia a mais. Auto-suficiência a mais. Foram meses que poderão servir, dentro de anos, nas escolas de comunicação, como exemplos da arte de errar e manipular.
Portugal já revelou os melhores resultados do mundo, está agora na fase dos piores resultados do mundo! A chegada de equipas médicas das Forças Armadas alemãs, com material e equipamento, foi festejada como uma vitória diplomática. Foi gesto único ou quase em toda a Europa. A recepção no aeroporto foi um triunfo. Só que o facto não foi apenas visto com reconhecimento. Levou toda a gente a concluir o inevitável: a situação é pior do que se pensava, está tudo mais grave do que se imaginava.
As mudanças de regras e de critérios relativamente às vacinas, a denotar demagogia e propaganda, constituíram os momentos mais confrangedores desta opereta. A elaboração das listas dos “vacináveis” é um monumento à incompetência. Mais de oitenta anos? Mais de 65? Mais de 50, mas com doenças? Que doenças? E os políticos? Os governantes e os deputados? E os profissionais de saúde? E os cuidadores? E os autarcas? E os habitantes dos lares? E os responsáveis das IPSS?
Desorientação convida a sonhar e crise acelera as ambições. Que fazer? Convocar eleições? Dissolver o Parlamento? Demitir o Governo? Nomear um governo de iniciativa presidencial? Obrigar a um governo de unidade nacional com todos os partidos? Forçar um bloco central com o PS e o PSD? Exigir uma coligação formal com de toda a esquerda? Estamos no domínio da fantasia. Os especialistas em artes e manhas políticas sabem tanto ou mais do que os especialistas em máscaras cirúrgicas e em marcas de vacinas.
Reformar? Sim. Mudar um ministro? Com certeza. Demitir um director? Sem dúvida. Criar um serviço mais competente, menos político, menos partidário, mais isento e mais operacional? Sem hesitações.
Mudar o governo? Fazer novo orçamento? Repartir cargos pelos diferentes partidos? Distribuir os directores pelos partidos apoiantes? Voltar aos debates programáticos no Parlamento? Nem pensar nisso! Não há tempo, nem necessidade. Nem se compreenderia uma monumental perturbação política no meio da pandemia, da terceira ou quarta vaga. A não ser que se pretenda pura e simplesmente esquecer a democracia, congelar direitos e deveres, impor autoridade sem limites…
Faça-se o que tem de ser feito neste maldito ano. Mude-se um ou vários ministros. Secretários de Estado. Comissários e directores gerais. Alterem-se procedimentos. Acabe-se com o discurso ridiculamente propagandístico. Recorra-se cada vez mais aos profissionais e aos cientistas. E sobretudo vacine-se o país! Quando chegarmos a um equilíbrio sanitário, a um controlo eficaz e a uma relativa imunidade de grupo, nessa altura terão tempo para fazer eleições, recompor maiorias e governos, derrubar presidentes e secretários-gerais, ajustar contas, derrotar com seriedade os extremos, elaborar plataformas pré-eleitorais adequadas e conhecidas a sufragar pelo eleitorado… E sobretudo terão salvado vidas.
Público, 6.2.2021
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Por Joaquim Letria
Na quinta-feira da semana passada, a RTP2 mostrou um maravilhoso programa sobre João Villaret. Mas se rever e ouvir aquele artista extraordinário que nos enchia de felicidade era um privilégio, recordar o que foi a RTP do tempo da outra senhora é um espanto, para nós que nos recordamos e para aqueles que nunca a viram mas assim podem ficar com uma vaga ideia.
Ainda há pouco tempo o primeiro-ministro brincava com aquela frase que a RTP usava “Pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos”. Mas ele não faz ideia dos milagres que os técnicos e engenheiros faziam naqueles barracões alugados no Lumiar onde funcionavam os estúdios da RTP até muito depois do 25 de Abril.
Estou à vontade a escrever isto porque embora tivesse lá alguns amigos a trabalhar (José Mensurado, Baptista Bastos, Fernando Lopes, João Moreira, etc.) a RTP para mim era um instrumento da ditadura que eu combatia. E isto era principalmente verdade na informação e no teor dos telejornais, mas há que reconhecer que a programação, a concepção da grelha de programas, tinha uma qualidade inigualável e incomparável para os dias de hoje como parte do programa sobre João Vilaret não pôde deixar de demonstrar.
As histórias contadas por Vilaret – maravilhoso aquele passeio nocturno pela Rua do Arsenal com António Boto e Fernando Pessoa — a paixão que ele tinha pelo Teatro e por Sarah Bernhardt a quem referia em quase todos os programas, a sua revelação da poesia e de brasileiros grandes escritores da língua portuguesa pouco lidos entre nós naquele tempo, como Manuel Bandeira e outros, valiam mais do que alguns cursos universitários dados à pressa que por aí há.
Mas como ignorar os programas de Vitorino Nemésio, José Hermano Saraiva, de David Mourão Ferreira, de António Pedro, extraordinário fundador do Teatro Experimental do Porto, do engº Sousa Veloso que nos metia a lavoura em casa, a única Maria de Lurdes Modesto que nos ensinava as artes da culinária, o programa de João Vilaret, maravilhoso e aguardado por milhões de admiradores que dele se despediram num fantástico funeral que encheu Lisboa de lágrimas, o maestro Vitorino de Almeida a falar-nos desde Viena e as maravilhosas gravações de ópera do São Carlos e do Trindade, o arquitecto Nuno Portas a falar-nos do urbanismo e de Lisboa, os excepcionais programas sobre os primórdios do cinema de António Lopes Ribeiro, acompanhado ao piano pelo maestro António Melo.
E a somar a tudo isto não esqueçamos as gloriosas “Noites de Teatro” com os melhores actores portugueses, as “Noites de Cinema”, e para rematar, no meio de muitas outras coisas que injustamente estou a esquecer, a Telescola, onde muita gente aprendeu a ler, a escrever e a ter noções de história, geografia e português assistindo no Salão Paroquial ou no Café porque pouca gente tinha televisão em casa. Tudo isto Villaret nos trouxe e a RTP2 nos mostrou. Se não viu, ande para trás, se puder, e veja!
Publicado no Minho Digital
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Por C. B. Esperança
Hoje, na ansiedade de uma vacina que pode salvar vidas, vejo os pequenos decisores de lares, hospitais ou instituições prioritárias na vacinação, a incluírem os primos, os filhos e os amigos numa renúncia ao pudor e afronta à dignidade cívica.
São da massa de que eram feitos os próceres da ditadura cujo ADN anda aí na cadeia de transmissão do oportunismo, traficância e troca de favores, sem ética, pudor ou medo.
A veniaga seduz os pequenos decisores, arruína a honra de provedores de santas casas, a santidade de párocos de província, a idoneidade de autarcas de obscuras localidades, e a inveja move os que mais gritam, consome os mais fracos e dilacera os que, em silêncio, ruminam ódio.
É nestas situações de ansiedade e medo que uma legião de delatores está disponível para a denúncia, em gritos estridentes ou na cobardia da carta anónima, na exposição pública da indignação ou no lamento hipócrita bafejado em surdina.
Em quase 46 anos de democracia mudaram pouco os hábitos, a mentalidade e o civismo de um povo que parece regredir a cada sobressalto e regressar à indignidade sempre que a ocasião surge.
O favor da dose da vacina para amigos e familiares, obtida por nepotismo do decisor ou fraude de um imaginativo burocrata é a metáfora inequívoca do país que não deixámos de ser e teimamos em continuar.
Não é apenas o vírus que nos mata, é a falta de decoro que nos faz morrer de vergonha.
Ponte Europa / Sorumbático
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