26.8.23

Grande Angular - O regime está a mudar

Por António Barreto

O mais provável é que Marcelo Rebelo de Sousa tenha razão. O seu veto ao programa de habitação do Governo e do Parlamento, isto é, do PS, justifica-se plenamente. Segundo a maior parte dos comentários independentes e das associações interessadas, para já não falar de todas as oposições, de esquerda ou direita, as propostas do Governo são insuficientes, erradas, demagógicas, desnecessárias e gravosas. Os técnicos e especialistas que se têm exprimido e não pertencem à esfera governamental são unânimes: criticam e condenam as propostas feitas. Ninguém as considera à altura dos problemas e da crise actual, quase toda a gente garante que a situação ficaria ainda pior. Quem sabe garante que as intenções governamentais integram e prolongam os erros e as deficiências dos últimos governos que ajudaram a consolidar a crise actual. 

 

Já que pode fazê-lo, o Presidente vetou tudo. Não por motivos constitucionais, jurídicos ou institucionais, mas por razões políticas e programáticas. Não sendo absolutamente inédito, o facto é novo e merece observação. A actuação do Presidente deve ser vista com cuidado, até pelo que implica de novidade ou de impulso inovador. Além do tradicional, o Presidente parece agora desempenhar vários papéis. O de fiscal da acção política, assim como o de provedor do cidadão. Coloca-se como co-legislador, função curiosa e interessante. Assume-se como responsável pelas políticas públicas, em grau e de feição nunca antes atingidos. Assim é que o regime continuará semipresidencialista, mas já não é o mesmo. Além de que esta é uma via sem regresso: será difícil que este Presidente ou os futuros reduzam a sua área de competência e intervenção.

 

O Presidente da República desempenhou na Ucrânia, com garbo e competência, a sua função de representação do Estado. Fê-lo política, cultural e afectuosamente, com brilho e distinção. Mas ultrapassou evidentemente as tradições de cerimónia. Dentro das margens toleradas pela Constituição, foi um verdadeiro chefe de Estado e chefe da política externa, tendo superado, nesta questão ucraniana, os limites semânticos e formais até hoje determinados pelo governo e pelo Primeiro Ministro. Tal como foram expressos pelo Presidente, o conteúdo e o grau de envolvimento do país responsabilizam o Estado e todos os órgãos de soberania como nunca antes. Não é crível que, depois deste ensaio, o Presidente ou outros presidentes futuros aceitem diminuir as suas responsabilidades e os seus poderes. É possível que desta maneira termine ou diminua a patética exibição da dualidade de representação do Estado tantas vezes observada.

 

Assim é que o semipresidencialismo português conhecerá novas formas e diferentes feições. Não é seguro que seja um progresso. Não há provas da superioridade, em Portugal, de qualquer das formas, parlamentar, presidencialista e ou semipresidencialista. Dado que se trata de uma história curta e recente, não temos outras experiências em democracia. Certo é que há quem prefira uma ou outras das formas conhecidas. Por boas e pelas más razões. Mas é verdade que os eventuais conflitos entre órgãos de soberania, os chamados conflitos institucionais, que são também conflitos entre pessoas e entre opções políticas, resultam deste nosso sistema semipresidencialista.

 

Estamos a assistir a uma mudança do regime. O semipresidencialismo é uma espécie de ocapi: bicho esquisito, tem de burro e de cavalo, de girafa e de zebra. Restringe os poderes do presidente, mas não faz dele um adorno democrático. Modera e limita a representatividade do parlamento, reduzindo por vezes esta instituição a um plano secundário. Reforça e reduz, ao mesmo tempo, os poderes e as responsabilidades do governo. Concebido em tempos difíceis, à saída de uma revolução e com o fim de evitar outra, receando o cesarismo e a intenção sidonista, com um carinho dúplice e não confessado pela primeira República e pelo Estado Novo, o semipresidencialismo português é uma espécie híbrida de menor dos males e de maior denominador comum. Àquelas fontes inspiradoras, os nossos constituintes acrescentaram uma picante influência francesa. O resultado é o que temos, nem carne nem peixe. Com prejuízo para a democracia parlamentar.

 

Vivemos tempos de revisão. Já se percebeu que não haverá nada de jeito, a não ser, eventualmente, uma reforma secundária, com pouco significado e alguma demagogia. Se houver revisão, será um exercício fútil de acrescentos e remendos, não de tentativa de reformar e rever.

 

Pense-se, por exemplo, no mais urgente, no mais grave: a reforma da Justiça, a necessitar adequação constitucional. Nada acontecerá. Reflicta-se ainda nos dois mais graves entraves à democracia parlamentar que são o sistema eleitoral e o semipresidencialismo. Podemos ter a certeza de que não teremos novidades nestas áreas. Acrescente-se o facto de hoje se poder ser ministro sem ser deputado. Ou que os partidos decretam a disciplina de voto com tranquilidade sem que haja sequer uma pequena revolta. Se o regime evolui, como se disse, é para não ser revisto.

 

Estamos a escolher, por inércia e tradição, uma via de mudança de regime não explicita e não discutida. À margem da querela jurídica, interminável e estéril, o que está a acontecer é o estabelecimento, por parte do Presidente da República, de uma prática política, de um hábito de intervenção presidencial programática, doutrinária, de contrapeso, de fiscalização política e social e de colaboração legislativa, não apenas constitucional e jurídica. Esta mudança é quase imperceptível, mas lá que existe… 

 

É verdade que muito depende das personalidades dos presidentes. Cada novo presidente acrescenta. Veja-se a França, por exemplo. Ao longo de quase um século, assistimos a várias mudanças do regime, o que não é exactamente a mesma coisa que mudança de regime. Com personalidades tão diferentes, nenhum presidente pôs realmente em causa o semipresidencialismo gaulista. 

 

Estas mudanças operam-se diante de nós. Pode parecer estranho, mas é assim. Estamos habituados a pensar sempre em mudanças radicais de regime. Mais ou menos revolucionárias, umas vezes violentas, outras impostas por forças exteriores. Por dentro, pacificamente, gradualmente, não são casos muito frequentes, mas também não são raros. Em certo sentido, os regimes são como as pessoas ou as nações. Mudam, mas ficam as mesmas. Não são iguais, são diferentes, mas são os mesmos regimes. Como as mesmas nações.

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Público, 26.8.2023

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20.8.23

Grande Angular - Antes que seja tarde

Por António Barreto

Acudir a tempo e horas ou não chegar tarde é uma das principais exigências de várias profissões. Como dos bombeiros e dos médicos, por exemplo. O tempo e a oportunidade são factores essenciais para evitar o desastre, mas também podem ser a sua principal causa. Por melhores que sejam as intenções, tudo cai por terra quando não se chega a tempo. Tentar o que quer que seja já fora de horas é inútil, mesmo por vezes prejudicial, dado que uma tentativa falhada agrava a condição. Não perceber a tempo é um convite à desgraça.

 

Tudo o que precede aplica-se à política e à gestão do espaço público e das instituições. Política, economia e sociedade dependem do tempo e do momento. Chegar tarde à inflação ou à doença, não chegar a tempo às migrações ilegais e às situações de conflito social, podem ser suficientes para que tudo se agrave e se torne mais difícil, até mesmo impossível, com más consequências para os cidadãos e a comunidade.

 

O actual governo, o Parlamento, o Presidente da República e as instituições, numa palavra, as autoridades ainda têm tempo (e meios) para resolver os actuais problemas mais críticos, ainda podem acudir ao que parece ruir todos os dias. É preciso que queiram, que estejam dispostos a arriscar, que não considerem prioritárias as suas vidas pessoais, que não acreditem em mitos ideológicos, que não se sintam prisioneiros de correligionários e que não estejam cativos de paixões menores. Nada disto é fácil, mas também nada é impossível.

 

As divisões dentro do Partido Socialista não parecem ter a gravidade que se lhes atribui. A competição, que vai ser feroz, não é pelo presente, mas sim pelo futuro. A opinião pública parece desafecta do actual governo, mas não necessariamente da actual solução parlamentar. O Partido Social Democrata ainda não parece estar à altura da alternativa, se é que algum dia estará. Do Chega vem muito barulho por pouca coisa. Dos outros partidos não é mesmo de esperar nada. Apesar da conflitualidade crescente, o Presidente da República, sem projectos para depois de terminado o mandato, não parece interessado em forçar uma ruptura insanável. A União Europeia vê Portugal com bons olhos, desde que não incomode. Há meios financeiros que suportem uma acção enérgica. A rotina e a imobilidade favorecem o Partido Socialista e o Governo. Mas prejudicam o país. E é provável que a perturbação eleitoral e a dissolução sejam pelo menos tão nefastos quanto a estabilidade ou a estagnação. É um dilema clássico: os termos da alternativa são ambos maus. E de ambos sofrerá a população.

 

A solução está evidentemente em prosseguir e manter a estabilidade, mas retomar a iniciativa e reformar. Em primeiro lugar, a recomposição do governo. Sabemos que é um tique dos primeiros ministros: não ceder! Este defeito transformou-se numa virtude, o que é um erro crasso. Um primeiro ministro que “defende os seus”, que “protege” os colaboradores, que “não dá o braço a torcer” e que não “faz a vontade dos detractores”, passa, nas crónicas medíocres, por um herói. Na verdade, é um pusilânime sem ideias nem autoridade. Toda a gente sabe que pelo menos meia dúzia de ministros e mais ainda secretários de Estado não estão à altura, não são capazes, enganaram-se no ofício, ficaram prisioneiros de causas menores e não conseguem arranjar colaboradores capazes. Ou simplesmente não têm jeito. Toda a gente sabe que estão nesse caso os responsáveis pelas infra-estruturas, pela Saúde, pela Educação, pela Justiça, pela Agricultura, pela Habitação…. Insistir no absurdo acaba sempre em drama ou tragédia.

 

Dizem os comunistas que “o importante são as políticas, não as pessoas”. Tal não é verdade, são tão importantes umas como outras. No caso presente, é tão evidente que é necessário mudar e alterar, que por vezes somos levados a pensar que o exercício do poder político tem efeitos negativos e perigosos na audição, na inteligência e na sensibilidade. E na visão.

 

Ficará na história quem decida tomar em suas mãos a grande reforma da Justiça, que demora anos a levar a cabo, que terá efeitos durante décadas, que será responsável por uma profunda mudança social e que dará nova vida às ideias de democracia e de liberdade, tal como as conhecemos em Portugal. Quem tome a responsabilidade de avaliar os seus nós e defeitos e de criar as condições para uma mudança fundamental de recrutamento, de disciplina, de procedimentos, de legislação e de organização da Justiça prestará um tal serviço ao país que os séculos não o esquecerão.

 

O primeiro ministro, ministro ou dirigente que consiga recuperar as rédeas, os meios, os recursos e a vocação do Serviço Nacional de Saúde, pondo termo à sangria de pessoal, à ineficiência, à desigualdade social, à miséria de meios e à ausência de previsão ficará com nome e memória comparáveis aos fundadores do SNS.

 

Será recordado, por décadas a vir, aquele que perceba a crueldade dos serviços púbicos, que conheça a injustiça das grandes administrações e que tenha compreendido o desprezo com que os cidadãos são tratados em tantas instituições. Ninguém esquecerá aquele que saiba voltar a dar vida e energia aos transportes públicos, especialmente à rede de comboios, conciliando eficácia com igualdade e com humanidade. Ficará conhecido, por uma população grata, quem dê estabilidade ao sistema educativo, quem trate da permanente algazarra escolar e quem volte a dar honra e dignidade ao ofício de docente.

 

Mais do que pela imprensa, será lembrado pelos corações e pelos espíritos das populações quem consiga conter a corrupção, dominar o nepotismo e contrariar o privilégio partidário.

 

E mais haverá. Mas o primeiro ministro sabe. E toda a gente sabe. A imobilidade já só é defendida por quem tem medo e respeitinho. Há heróis na história que souberam resistir às campanhas adversas, aos inimigos insidiosos e aos ataques injustificados. O problema é que não estamos numa situação dessas. Poucos são os que atacam o primeiro ministro, o governo ou o partido. Mas muitos são os que já não acreditam nele e neles. 

Público, 19.8.2023

 

 

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12.8.23

Grande Angular - O mal dos outros e o nosso

 Por António Barreto

O mundo não está bem. Raramente, nas últimas décadas, esteve tão perto de abismos diversos. É um daqueles momentos de transição que revelam perigos inéditos. É verdade que o mundo está sempre em mudança. Já deveríamos estar habituados. Mas o problema das evoluções bruscas é a dimensão e a profundidade. Reside no facto de os principais equilíbrios serem postos em causa. São momentos de transformação em que muitos perdem e alguns ganham: Estados, nações, povos, classes sociais, partidos e empresas estarão, dentro de poucos anos, em posição bem diferente da que conhecem hoje. São verdadeiras placas tectónicas em movimento.

 

Os Estados Unidos perdem, já não são a nação hegemónica. A Europa, sempre invejável, já só tem protagonismo se for parte do Ocidente, ao lado dos Estados Unidos. O mundo bipolar da Guerra Fria está longe de nós. Apesar de garantir um lugar no novo mundo fragmentado, a Rússia perde, não sem estrebuchar, deixando o planeta suspenso. A brutal invasão da Ucrânia é o mais recente feito da barbárie que julgávamos afastada. Graças ao seu esforço, a China ganha, ajudada pelo Ocidente que lhe deu as bases para uma posição invejável. O Japão, atá há tão pouco tempo uma potência ascendente, estagna e pesa pouco. A Índia, pelo contrário, surge no horizonte com cores de novo poder. No Próximo Oriente, Israel treme nos seus fundamentos, enquanto Estados islâmicos poderosos se preparam para uma nova era militar e financeira. Outras nações, africanas e asiáticas, querem garantir pelo menos um lugar de acessório indispensável. Mas toda a gente percebe que está tudo em causa. Drama é o termo mais tranquilo. Tragédia é mais provável.

 

Ceder parte da sua força, perder uma grande dose do seu poder e alienar uma enorme porção da sua fortuna não se fazem sem convulsão. Ascender às primeiras posições e obter lugar de proeminência só se fazem com inevitável perturbação da ordem estabelecida. Estas transformações fundamentais deixam o planeta em crise. A despesa militar não cessa de aumentar.

 

A América Latina já entrou em percurso agitadíssimo. A droga liquidou o continente. Do Equador à Colômbia, da Venezuela ao México e ao Brasil, aquele mundo prepara-se para viver um novo ciclo de violência. Em África, trava-se mais uma guerra de partilha e extracção, com um número inédito de protagonistas. As numerosas ditaduras locais aliaram-se às forças interessadas na divisão e nos despojos. Rússia, China, Europa, Estados Unidos, poderes islâmicos e regimes militares africanos preparam-se para deitar fogo ao continente. A democracia, em flagrante recuo no mundo, deixa de ser aspiração ou disfarce para povos e Estados. Cada vez mais confinada ao Ocidente, a vocação universal dos direitos humanos recua todos os dias. Os novos grandes poderes deste mundo declaram mesmo que a democracia e os direitos humanos são apenas tradições de uma pequena parte da humanidade.

 

E Portugal? E os portugueses? E nós? Onde estamos no meio destas ameaças? A primeira resposta é simples, optimista e errada: não estamos no centro de nenhuma destas controvérsias e por isso não seremos arrastados para uma situação dramática. Na superfície, está certo. No essencial, é falso: neste mundo, o nosso destino será o da Europa, teremos tanto a perder e a ganhar como qualquer um dos nossos vizinhos.

 

A segunda resposta é mais complexa, céptica e verdadeira. Sem envolvimento directo em nenhum dos vendavais, temos as nossas próprias misérias. Apesar das mudanças das últimas décadas, os nossos contemporâneos vivem a alegria de algum sossego, vivem a calma de agitações suportáveis, mas vivem também situações intoleráveis de uma sociedade dura e de um Estado moralmente medíocre. Até quando?

 

Tivemos uma Jornada da Juventude gloriosa. Temos todos os dias resultados desportivos que nos honram. Temos uma formidável temporada de concertos estivais com muitas dezenas de milhares de jovens entusiastas. Temos promessas ilimitadas de novos comboios, de aeroporto, de parques de inteligência artificial, de laboratórios científicos, de novos hospitais e de modernos portos marítimos. Pois bem! Pode ser que tudo isso seja verdade e que os feitos recentes do nosso povo orgulhem muitos. Ma nada é suficiente para esconder a falta de cuidado dos serviços públicos, em fase de desperdício e desatenção como raramente se viu. 

 

Na saúde, a ausência de previsão, de planeamento e de pragmatismo conduziu a esta situação desumana de maternidades fechadas, de urgências encerradas, de pobreza de recursos do INEM e de meses e anos de espera por parte dos doentes. Sem falar no recrutamento por atacado de centenas de médicos latino-americanos. Desfazem-se diante de nós anos e anos de lenta construção do Serviço Nacional de Saúde, agora condenado a uma cada vez mais triste e desigual existência.

 

Tudo o que pede cuidado, sentido de humanidade e de igualdade, eficácia e prontidão, parece condenado a um triste atraso, sem desculpa nem decência. Os custos e o tempo de espera na Justiça, desorganizada e desigual, são um permanente aviso e uma recordação do peso do privilégio. Os tempos de espera e a indiferença em quase todos os serviços que implicam atendimento e atenção, impedem um qualquer juízo de esperança e optimismo. A desordem na escola, o deficiente recrutamento de docentes, a vista grossa para o cumprimento dos deveres e a complacência perante a disciplina pedagógica quase nos fazem desesperar do progresso cultural do nosso povo. A permanente desordem na imigração e o vigor dos traficantes de mão-de-obra clandestina apontam directamente para a desorganização e a desumanidade.

 

Neste quadro sombrio, falta evidentemente uma breve alusão a esta incapacidade de criação de riqueza, de estimular investimento, de garantir melhor salário e mais rendimento, de oferecer oportunidades a uma população dividia e pobre. Vejam-se os números, deixemos de brincar e fazer demagogia com as estatísticas, não continuemos a responder a um passado triste e a um presente difícil apenas com promessas e intenções irresponsáveis. Olhe-se com seriedade para os montantes da emigração e tentemos responder à pergunta mais simples: porquê?

 

É de mau tom ser-se ácido e pessimista. Não fica bem “dizer sempre mal”. Mas não há por onde escapar: os portugueses não têm actualmente razões nem motivos para se sentirem optimistas.

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Público, 12.8.2023

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7.8.23

No "Correio de Lagos" de Jul 23


I — SE SE FIZER uma pesquisa no Google em “Bartolomeu Dias 1488”, encontrar-se-ão muitos resultados, com óbvio destaque para a descoberta da “passagem” para Índia pelo Cabo da Boa Esperança — assim renomeado por D. João II para corrigir o epíteto pessimista de “Tormentoso” com que o navegador o baptizara, e a que Camões, no Canto V de “Os Lusíadas”, chama “Tormentório”, em rima com “notório” e “promontório”... Obviamente que, se em vez de 1488 se escrever 1487, também se encontram muitas respostas, incluindo todas as anteriores, pois o navegador saiu de Lisboa num ano, e dobrou o sul da África em Fevereiro do seguinte.

Até aí, não há nada de especial; a parte curiosa é quando aparece alguém que diz que ele partiu de Lisboa em Agosto de 1486, tendo a viagem terminado em Dezembro de 1487. Ora, esse “alguém” é nada menos do que João de Barros (1496-1570), que ficou conhecido como “O Tito Lívio Português”, e que faz, nas suas “Décadas da Ásia”, uma narrativa desenvolvida dessa viagem, que situa UM ANO ANTES do que hoje em dia se toma como certo.

Mas, então, como se entende uma tal discrepância num assunto tão importante? 

Uma das explicações pode estar na implacável política de sigilo praticada por D. João II, com a consequente escassez de registos dessa altura. Outros lembram que, nessa época, muitos ainda consideravam que o ano começava em Março e não em Janeiro (*), pelo que “Fevereiro” poderia ser o de 1487 para “eles”, enquanto agora, para nós, esse mês já é o de 1488. Outra explicação possível seria um eventual lapso na crónica de Barros que, segundo Gago Coutinho, «não é isenta de outros erros», até porque Colombo (1451-1506) e Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), que já eram bem crescidos quando Bartolomeu Dias fez “a viagem” (**), consideram que o Cabo foi dobrado no ano de 1488, que hoje é o comummente adoptado.

 

II — VEM TUDO isso a propósito de uma curiosidade semelhante, relacionada com o nosso D. Sebastião, especialmente agora, que se comemoram os 450 anos da elevação de Lagos a Cidade. E o que está em causa é algo muito simples: EM QUE ANO, AFINAL, MORREU o rei? Sabe-se que foi em 4 de Agosto, no desastre de Alcácer-Quibir. Sim, mas DE QUE ANO?

E a dúvida é perfeitamente pertinente, pois todas as respostas conhecidas nos indicam que D. Sebastião foi morto em 1578, com uma única excepção, que fui encontrar na página https://www.cm-lagos.pt (da autoria da CML), onde o documento ENJOY LAGOS me informou, em português e em inglês:

«Janela Manuelina implantada no edifício do Castelo dos Governadores, 1485-1520 (...). Segundo a tradição, foi a partir desta janela que D. Sebastião terá assistido, em 1579, a uma última missa antes de partir para a batalha de Alcácer-Quibir»

Tudo bem, mas quem diria que, na nossa terra, até as viagens no tempo eram possíveis?!

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(*) – Está relacionado com isso o facto de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro serem os meses 9, 10, 11 e 12, apesar de os seus nomes terem origem nos números 7, 8, 9 e 10.

 

(**) – Bartolomeu Dias não parou depois disso: vemo-lo a assessorar a preparação da primeira viagem do Gama; depois, aparece a caminho da Mina, em 1497, a acompanhar o mesmo capitão durante as primeiras 4 semanas da grande epopeia; e, 3 anos mais tarde, a comandar um dos 13 navios de Cabral (também com destino à Índia, mas com uma imprevista “escala” na Terra de Vera Cruz), sendo personagem de destaque na carta de Caminha. Como se sabe, viria a perecer pouco depois, nessa mesma viagem, num naufrágio que, por uma cruel ironia do destino, ocorreu na zona do Globo que o imortalizou.

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5.8.23

Grande Angular - O Papa e nós

Por António Barreto

O carisma deste Papa é formidável. Procurem-se as qualidades que fazem dele um homem excepcionalmente popular e não é fácil encontrar o dom principal. Talvez seja a bondade. Tem evidentemente outros atributos, mas os outros Papas também tinham. Neste, há algo de diferente, de singular. É possível que seja também a disposição para a justiça social: as suas intervenções têm marcado seriamente o pontificado. Apesar da abstenção relativamente à ordenação das mulheres e ao casamento dos sacerdotes, a sua nota de progresso social é indelével. A sua aversão aos ídolos capitalistas e mercantis é também traço importante do seu carácter e do seu programa. Mas é o homem bom, irradiando generosidade e indulgência, que atrai os povos, os jovens e os fiéis. Essa parece ser a sua graça.

 

Não é adequado tirar conclusões seguras da observação desta Jornada relativamente à religiosidade dos portugueses. É possível que estejamos iludidos pela presença dos estrangeiros cujo grande número pode enganar. É também provável que a dimensão festiva, musical, teatral e lúdica atraia muita gente, sem que isso signifique uma consistente atitude religiosa. Mas é certo e seguro que as actividades religiosas e para-religiosas, mesmo as festivas, mostram um apetite e uma predisposição crescentes relativamente a formas diversas de espiritualidade.

 

Estaremos diante de um renascimento religioso, em moldes muito diferentes do passado? Haverá uma “nova Igreja” nascida nestas últimas décadas, feita de juventude, de festa, de responsabilidade juvenil e de um novo sentido de comunidade? Ou será uma Igreja cada vez mais pequena, mas mais militante, activista e empenhada? Por mais impressionante que esta seja, não é uma Jornada que esclarece.

 

Muito interessante e curioso é o facto de o entusiasmo favorável ao Papa contrastar com uma distância crescente dos portugueses relativamente à Igreja, aos rituais católicos, à comunhão com as comunidades cristãs e simplesmente ao culto religioso regular.

 

O que sabemos nós da religiosidade dos portugueses? O que se conhece realmente da sua prática religiosa? Pouco. Muito pouco. Dentro da Igreja, parece haver receio de estudar e conhecer. Fora da Igreja, há desinteresse. A verdade é que todos conhecemos frases feitas que traduzem o sentimento religioso de tantos. “Sou católico, mas não pratico”. “Há qualquer coisa, mas não sei se é Deus”. “Acredito que há alguém no princípio ou por cima, mas não sei quem é”. “Sou católico, mas não vou à Igreja!”. “Cá por mim, tenho uma relação directa com Deus, não preciso dos Padres para nada!”. “Gosto de Cristo, mas não gosto dos padres!”. “Sou crente, mas não vou à missa, nem me confesso!”. O anticlericalismo e a aversão à Igreja podem ser denominadores comuns a tantos ditos católicos portugueses.

 

Como não há estudos sérios e isentos, ou de qualquer outra espécie, o grau de ignorância é grande. Como as entidades estatísticas não querem ou não podem saber mais sobre as práticas religiosas, não sabemos realmente muita coisa importante que deveríamos saber. Tal aliás como com as questões raciais, em todos os aspectos ligados com a educação, a saúde, a cultura, o rendimento, a criminalidade e o comportamento eleitoral.

 

Raça e religião. Provavelmente também sexualidade. Ou ainda comportamentos familiares e domésticos. Não se pode perguntar. Não se deve perguntar. Não se quer perguntar. E muitos não querem responder. Assim é que desconhecemos o essencial da vários aspectos e diversas dimensões da nossa vida, da nossa sociedade.

 

Temos, aqui e acolá, informações laterais. Mas significativas. Sabemos que os casamentos estão em diminuição acelerada relativamente às uniões de facto e outras formas de conjugalidade ou de comunidade. Temos ainda informações fidedignas sobre os casamentos católicos em rápido declínio absoluto e relativo se comparados com os casamentos exclusivamente civis. Também sabemos que o número de baptizados é cada vez menor, não só porque há menos nascimentos, mas também porque as famílias dispensam o baptizado. É igualmente do conhecimento público o facto de a maioria dos nascimentos serem “fora do casamento”, isto é, resultado de uniões de facto, de maternidades monoparentais e de outras condições, mas não de casamentos católicos.

 

Estas informações não substituem as que não temos sobre vocações, ordenações, frequência de seminários, presença regular na missa, periodicidade de confissão e de comunhão e outros acontecimentos de carácter religioso. Sabe-se melhor, pelo contrário, sobre a prática educativa, isto é, o número de alunos e de escolas ligadas à Igreja: é muito considerável, sobretudo se pensarmos que se trata em geral de ensino pago, em comparação com a gratuitidade da escola pública. Por outro lado, é conhecido o facto de a maior parte da solidariedade social presencial ser obra da Igreja e das suas instituições. Nos bairros miseráveis, nos cantos e recantos onde vivem os “sem abrigo”, nos hospitais, nos asilos e nas prisões, a presença humana e solidária é assegurada quase exclusivamente por religiosos e pessoas ligadas à Igreja. É verdade que a democracia laica e a solidariedade social encontram respostas e argumentos nos direitos sociais, na Constituição e nas políticas públicas. Mas a humanidade exige a presença de pessoas e o seu sacrifico. Na dor e na doença, na fome e no sofrimento, é o religioso que está presente, não o funcionário ou o profissional.

 

Esta Jornada tem-se revelado um êxito muito especial. A popularidade e a alegria têm sido a regra. Portugal e os portugueses ficaram a ganhar. Apesar de se ter gasto de mais. Mau grado os poderes públicos se terem talvez empenhado excessivamente. E não obstante os políticos e as autoridades se terem aproveitado o mais possível da manifestação a fim de cuidarem das suas próprias reputações. Estes defeitos não chegam para pôr em causa a utilidade e o interesse da Jornada. Nem dão qualquer razão à brigada republicana, aos tractores da laicidade e a outros bolchevistas de choque que defendem que o Estado não deve ter qualquer relação com estas iniciativas religiosas.  Como também não é necessário invocar, quase obscenamente, os lucros monetários, o retorno turístico, o marketing internacional e o aumento de receitas…. Social, cultural e politicamente, a Jornada beneficiou o país. 

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Público, 5.8.2023

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