No "Correio de Lagos" de Dez 20
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Por C. B. Esperança
Eduardo Lourenço – Faleceu um dos nossos mais originais e influentes pensadores de sempre. Fecundo ensaísta, filósofo, historiador, escritor e crítico literário, nascido em S. Pedro do Rio Seco (Almeida), foi uma figura ímpar da segunda metade do séc. XX e do século que deixou aos 97 anos.
Eduardo Lourenço_2 – A missa nos Jerónimos, com dois cardeais, foi a confiscação feita pela Igreja, Governo e PR do cadáver do intelectual cujo pensamento recusou duas ortodoxias, o catolicismo, alicerce ideológico da ditadura, e o marxismo.
Sérgio Moro – O juiz venal que perseguiu Lula da Silva e foi ministro de Bolsonaro, é o novo diretor da empresa de consultoria americana Alvarez & Marsal, administradora judicial da Odebrecht, empresa que ele investigou e usou para perseguições políticas.
Hungria – O eurodeputado de extrema-direita, József Szájer, casado e com 1 filho, foi detido pela polícia belga numa orgia gay com mais 25 homens. Da máxima confiança do PR Viktor Orban era o grande defensor das políticas homofóbicas do seu partido.
Espanha – Militares na reforma discutiram golpe de Estado e fuzilamento de milhões de espanhóis no WhatsApp tendo o apoio do partido fascista VOX, o que levou o chefe do Estado-Maior a garantir lealdade à Constituição. A democracia corre perigo.
PR – Depois de várias comissões de inquérito durante 30 anos, da decisão dos Tribunais de que foi acidente e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ter validado a decisão, ao considerar que foi crime, feriu o Estado do qual ele é a primeira figura. Deplorável.
EUA – O ato de higiene que afastou Donald Trump da Casa Branca foi um folhetim que envergonhou a América e a tornou suspeita aos olhos do mundo, com danos irreparáveis para as democracias de que a sua Constituição e a prática eleitoral eram exemplo.
FDA – A ameaça de demissão do chefe de gabinete da Casa Branca ao diretor da FDA para aprovar a vacina da Pfizer, segundo o Jornal Washington Post, atinge a autoridade e o prestígio mundial da Administração de Alimentos e Medicamentos norte-americana.
Pacto ecológico europeu – O Conselho Europeu chegou a acordo para uma redução de 55% nas emissões de CO2 até 2030, tendo como referência os valores de 1990. Não é a meta desejável, mas é um esforço notável para abrandar o aquecimento global.
França – A laicidade é a exigência da neutralidade religiosa e não pode a sua defesa ser considerada uma medida contra qualquer religião, mas é o obstáculo ao proselitismo e a defesa da cidadania contra o comunitarismo violento onde medra o terrorismo islâmico.
Joe Biden – O regresso ao Acordo de Paris sobre o clima, a reintegração dos EUA na OMS e a recuperação dos acordos internacionais, especialmente o acordo nuclear com o Irão, são relevantes na reposição da previsibilidade internacional da política americana.
Donald Trump – A sua derrota não causou surpresa ou regozijo, apenas a sensação de alívio, a pausa na náusea e no medo da fragilidade democrática. Foi só o furúnculo que rebentou sem que a infeção do Senado e do Supremo Tribunal fosse debelada.
Eutanásia – A proposta do PSOE, com apoio parlamentar de Podemos, Ciudadanos e PNV, 198 votos a favor, 138 contra e duas abstenções, legalizou a eutanásia e o suicídio assistido, direitos individuais. Espanha tornou-se o 6.º país a regular uma morte digna.
Rio de Janeiro – O presidente da câmara, Marcelo Crivella, foi preso na operação que investiga uma rede de lavagem de dinheiro na autarquia. O autarca, bispo da IURD e aliado do Presidente Bolsonaro, atribuiu a sua prisão à “perseguição política”.
Reino Unido – O Brexit, infeliz decisão que lesou o RU e a UE foi o fator de discórdia que prejudicou as relações dos dois lados do Canal da Mancha. A lepra do nacionalismo corroeu a coesão e influência da Europa com consequências danosas mútuas.
Graça Freitas – O regresso da abnegada diretora-geral de Saúde que, com a ministra, foi presença constante a aconselhar os portugueses em tempos da pandemia, merece a simpatia e a gratidão de quem vê nela a amiga que aconselha e transmite confiança.
Europa – O difícil acordo da UE com o RU foi a decisão inevitável que evitou maiores danos, mas são já irreparáveis os prejuízos sofridos, e a Escócia está em vias de exigir a secessão para se tornar uma “nação europeia independente”, na UE.
Rui Moreira – O autarca do Porto, monárquico do CDS, dececionado por o PSD não o convidar a encabeçar a lista, é presidente independente. Se for condenado judicialmente, que partido será julgado? Os independentes são políticos disfarçados e perigosos.
El País – O diário espanhol, um dos mais prestigiados da Europa, virou à direita. Joseph Oughourlian, principal acionista do grupo editor explicou: “Não investi 300 milhões de euros para poder fazer favores ao Governo”. É mais rentável a direita.
União Europeia – A assunção de dívida comum, atitude sempre repudiada, e a decisão de vacinação simultânea contra a covid-19, em todo o seu espaço, mostram que o nosso futuro coletivo só será melhor com maior integração e solidariedade.
Madeira – Com obras públicas em curso, a violência da chuva provocou inundações, a prisão de 8 turistas num túnel, e a destruição de casas e do cemitério de Ponta Delgada. No Continente, o PR já teria admoestado o ministro das Infraestruturas e da Habitação.
China – Quando a lei penal de uma autocracia considera 12 anos a idade mínima para a responsabilidade criminal, punindo as crianças como adultos, a aversão às ditaduras aumenta. A lei, aprovada no dia 26, entrará em vigor a 1 de março de 2021.
Covid-19 – A vacina é uma janela de esperança que se escancara, mas a prevenção do contágio deve continuar rigorosa, e a tragédia provocada nos empregos, na economia e na sociedade manter-se-á durante décadas, e exige um novo modelo económico.
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Por A. M. Galopim de Carvalho
(uma reflexão em final da segunda década do século XXI)
Continuo profundamente desiludido com o andar da nossa escola pública. Quando, em 2015, no começo do seu mandato, o Primeiro Ministro afirmou que o nosso maior défice era o da Educação, deu-me razão, mas já passaram cinco anos e nada de verdadeiramente importante aconteceu. “Tudo como dantes, quartel general em Abrantes”, a frase que nos ficou do tempo da primeira invasão francesa, tem aqui total cabimento.
Cada vez há menos incentivos que tragam os jovens para a docência. Espera-os uma ocupação mal paga, que perdeu o respeito e a dignidade que já teve. Espera-os o terem de andar de terra em terra, longe da família, com toda a frustração e os gastos que isso implica. Muitos dos actuais professores que ainda resistem, estão cansados, desmotivados e desiludidos, ansiosos pela aposentação. Dentro de alguns anos não temos professores que cheguem para assegurar o ensino escolar obrigatório, universal e gratuito, até ao 12.º ano ou aos 18 anos de idade. E isto é grave. É, mesmo, muito grave,
Como o escrevi e não é demais insistir, a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há 46 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos cultura civilizacional e humanística, o que é muito grave, colocando-nos muito abaixo dos países que sabemos estarem mais avançados.
Entre os sectores da vida nacional que nada beneficiaram com a liberdade que, de facto, estamos a viver, e esta abertura à democracia, está a educação. E, aqui, a escola falhou completamente. É notório e os professores sabem bem que temos vindo a trabalhar para as estatísticas e para os “rankings”.
Não é difícil acreditar que:
1 - A par de excelentes professores, que os há e são muitos, existem outros, sem preparação suficiente, que fazem do ensino um emprego, não uma profissão e, muito menos, uma missão, e outros, ainda, francamente maus, que, em avaliações a sério, já teriam sido afastados;
2 - O nível sóciocultural de milhares de famílias carentes de tudo, é umas das causas mais gritantes da situação que se vive no sector;
3 - A deficiente preparação científica e pedagógica de muitos professores também conta, e muito, na dita falência. Sempre defendi, devem saber muito mais do que o estipulado no programa da disciplina que devem ter por missão ensinar, não se podendo limitar a meros transmissores dos manuais de ensino. Para tal, os professores necessitam de tempo, e tempo é coisa que, no presente, não têm. Há, pois, que libertá-los das tarefas que não sejam as de ensinar;
4 - É necessário e urgente fomentar, como inerência de cargo, a dignificação e o respeito pelo professor, duas condições que lhes foram retiradas com o advento da liberdade e que a democracia não soube aproveitar, e é igualmente necessário e urgente que a Escola recupere todas as competências fundamentais à disciplina, em democracia;
5 - É necessário e urgente rever toda a política dos manuais de ensino, em especial no que diz respeito à creditação científica e pedagógica dos autores e à correspondente supervisão, impondo-se repensar a política de exames e de classificação do aluno;
6 - É necessário resolver o grave problema da colocação de professores, com vidas insuportáveis material e emocionalmente, a dezenas de quilómetros de casa, separados das famílias;
7 - Impõe-se rever a remuneração dos professores que como tenho defendido, tem de ser compatível com a sua real importância na sociedade. Um(a) professor(a) universitário(a) não é nem mais nem menos importante do que um(a) educador(a) de infância ou de um(a) professor(a) do ensino secundário ou do básico;
8 – À semelhança dos professores universitários, que são avaliados, a sério, pelo menos três vezes ao longo da carreira, os professores do básico e do secundário têm de se submeter a avaliações dignas desse nome.
9 – É preciso e urgente que o Ministério da Educação se torne numa das principais preocupações dos governos, não só na cuidada escolha dos titulares, como nas dotações orçamentais que permitam dar às escolas e aos professores as necessárias condições de trabalho;
10 - E necessário e urgente olhar para esta realidade e haver vontade política (despida de constrangimentos partidários) para promover uma profunda avaliação e consequente reformulação desta nossa “máquina ministerial” poderosa e nebulosa, de há muito instalada[DG1] , a ver desfilar ministros e secretários de estado.
Cada vez estou mais convicto de que os graves problemas que nos afectam a nível da Escola (além de outros) decorrem do modelo económico da sociedade, dita do desenvolvimento, dominada pelo dinheiro. Se assim for, não conseguiremos inverter este estado de coisas sem ir ao âmago do problema.
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Por Joaquim Letria
Portugal está a definhar. Não só nos níveis de pobreza mas também no número dos seus habitantes e no rejuvenescimento da sua população.
Segundo o Instituto Nacional de Estatística, mais de 40 por cento das mulheres em idade fértil não têm filhos e aquelas que pensam ser mães nos próximos três anos formam uma percentagem mais baixa do que aquela que existia em 2013. Estes dados, interessantes de serem do nosso conhecimento e analisados, foram divulgados pelo Inquérito à Fecundidade agora revelado pelo Instituto Nacional de Estatística.
Tendo ainda em consideração que a grande maioria dos portugueses não quer ter mais de dois filhos, podemos ficar a saber que Portugal não recuperará os níveis de natalidade que apresentou há 10 anos. Segundo os demógrafos, a substituição de gerações com 2 ou 3 filhos por mulher não pode ser assegurada a médio prazo, assim como não voltaremos a ter médias de 100 mil nascimentos por ano.
Estes dados agora revelados mostram que 10 por cento dos portugueses não são pais nem querem vir a sê-lo, percentagem que é superior à verificada em 2013.
Os portugueses não têm mais filhos porque não podem ou não querem? A resposta dos estudiosos é porque não querem. Uma descendência numerosa não existe sequer nos desejos da esmagadora maioria da população. Por outro lado, verifica-se que 45 por cento das mulheres e 56 por cento dos homens tiveram os primeiros filhos mais tarde do que desejavam.
Desde o início da década de 80 que Portugal não assegura a substituição de gerações por ter deixado do ter uma média de 2,1 filhos por mulher. Para tal, pode contribuir o facto das mulheres terem adiado o nascimento do primeiro filho 5 anos, sabendo-se que o seu período fértil é limitado. Há 40 anos que Portugal mantém uma persistente tendência de declínio da fecundidade. O que necessariamente fará com que Portugal venha a definhar na pujança do seu povo. Seremos poucos mas bons…
Publicado no “Minho Digital”
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Por António Barreto
Pode não ser, desde o fim da segunda guerra mundial, o mais grave. Nem, desde 1974, a pior crise política. Talvez não seja, desde há meio século, o ano da mais difícil crise económica. Nem seja, socialmente, o mais dramático. Mas é tão difícil! Sobretudo porque tudo parece convergir para agravar as dificuldades: política, economia, pobreza, saúde e justiça. Este fim de década é o pior momento de crise e dificuldades que Portugal vive desde a fundação da democracia.
Os mais novos não viveram. Os mais velhos não recordam. Só alguns não esqueceram. Já vivemos tempos muito difíceis. Com os obstáculos e as ameaças à democracia, em 1974. Os repatriados de 1975. As crises económicas e os pedidos de intervenção financeira. A crise da dívida, a assistência internacional e a austeridade. A inflação a mais de 30% e o desemprego a mais de 15%. Mesmo assim, com este tremendo passado recente, vivemos, provavelmente, o pior momento.
Também no mundo já se viveu pior, com efeitos para Portugal. O fim da guerra no Vietname e as guerras asiáticas que se seguiram. As ameaças e os perigos, assim como os violentos episódios de guerra conhecidos, nos Balcãs, no Próximo Oriente e em África. O desmembramento do império soviético e os múltiplos conflitos que se seguiram, da Jugoslávia à Chechénia, da Ucrânia à Arménia. O crescimento incessante das guerras da droga, dos minérios, dos armamentos e dos imigrantes trouxe violência para quase todos os cantos do globo. Também o mundo vive hoje um momento de extrema dificuldade.
A decadência relativa de um poder indiscutível, o americano, projecta sombras sobre a humanidade. As perdas de hegemonia têm sempre consequências temíveis. Em paralelo, a ascensão de novos poderes, de uma nova grande nação à partilha do poder mundial, a China, deixa toda a espécie de interrogações e de novas tensões de efeitos imprevisíveis. E os europeus já estão conscientes de que, sem a América, contra a Rússia e apesar da China, a Europa não resiste à subalternidade.
Note-se bem como quase tudo o que a Europa fez nos últimos anos foi reagir, retomar, equilibrar e salvar. Já não cria, já não avança e já não inova. Reage e resiste. As divisões europeias, o Brexit, a ascensão de movimentos anti-europeus, o recrudescimento do nacionalismo, as divisões entre países e partidos revelam uma Europa a perder o Norte, à deriva e a tentar recuperar o que ainda é possível. Ao que se podem acrescentar as crises de demografia, da imigração e do refúgio. Nunca como agora, nos últimos setenta anos, andaram pela Europa hordas de milhões de vagabundos, esfomeados e doentes, nómadas da sociedade industrial, sem protecção nem futuro, à procura de sobreviver.
Para além da morte e da doença em doses aflitivas, a pandemia revela confrangedora desigualdade entre países ricos e pobres, entre poderosos e destituídos, entre influentes e despojados. Sofre-se nos lares infantis e morre-se nos lares de idosos. É-se mais contagiado nos bairros suburbanos, nos locais de desempregados, nos guetos de imigrados e nas áreas subdesenvolvidas. Há meios científicos, recursos financeiros, poderes políticos e gestão capazes de contrariar a lógica letal da desigualdade e da pobreza. Mas não serão aproveitados, a tempo, tanto quanto se poderia desejar e seria legitimo esperar.
Portugal partilha os problemas da Europa e do mundo, mas acrescenta os seus próprios. Vivemos uma inédita convergência de crises e dificuldades. Sem a tragédia de uma grande guerra, sem o drama dos repatriamentos forçados e dos campos de concentração ou refugiados, mas com a acumulação de crises e ameaças. Iniciamos a terceira década do século XXI com uma enorme crise sanitária; uma ameaçadora crise económica e social; a manifestação drástica de desigualdades profundas; acrescidos fenómenos de pobreza; reduzidas capacidades de criação de emprego e de novas produções; poucos grupos económicos à altura das necessidades de desenvolvimento; sem capitais próprios privados ou públicos; e com soluções políticas de enorme fragilidade. Os grandes sistemas nacionais, saúde, segurança social, educação e justiça encontram-se à beira de uma crise sem exemplo e com difíceis soluções.
Os portugueses não são culpados de tudo, nem responsáveis por todos os factores de crise. Só de alguns e já não são poucos. Mas são responsáveis por grande parte das soluções, das nossas soluções, das soluções que nos dizem respeito, a começar pelas políticas, pela congregação de esforços, pela criação de confiança, pela manutenção da democracia e das liberdades e pela preservação de uma sociedade decente.
As negociações políticas frágeis não anunciam nada de bom. A destruição das grandes empresas nacionais e as vendas injustificadas e em más condições de grupos, empresas e património cortaram-nos as mãos e os meios. A incapacidade de combater a corrupção e de castigar os corruptos é uma deficiência fundamental. Os absurdos termos de “limpeza” e equiparados já surgiram na boca de pelo menos dois candidatos (André Ventura e Ana Gomes), o que apenas traduz impotência e populismo barato.
As eleições presidenciais não vão resolver nenhum destes nossos problemas. Nem sequer vão definir os moldes da acção política futura. Muito menos vão determinar as condições de governação. Em muito especiais circunstâncias, podem ajudar, mas não resolvem. Em finais de Janeiro, ultrapassada que vai estar a eleição presidencial, vamo-nos encontrar no ponto em que estamos, talvez em piores circunstâncias. Mais infectados, mais desempregados e mais pobres.
Apesar de antiga, com tradição e cultura, história e património, a sociedade portuguesa está hoje pobre institucionalmente, tanto na esfera pública como na privada. Tanto na economia, como na política ou na cultura. É, no entanto, aí, que se encontram soluções e meios. No reforço das instituições, públicas e privadas, na consolidação de organizações humanas e sociais capazes de proporcionar a reflexão, de estimular a acção e de dar uma oportunidade aos esforços de construção gradual e racional.
Este próximo ano será exigente como poucos. É possível que se encontrem soluções e remédios para o mais urgente, o que permite sobreviver. Mas de nada servirá o esforço se não preparar o médio e o longo prazo. E podemos ter a certeza: só com instituições mais fortes venceremos. Golpes de sorte e de génio, habilidades e invenções de nada servirão. Instituições e liberdade, sim.
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Por C. B. Esperança
Na noite de hoje, que a tradição fez pretexto para reuniões familiares, há o desalento de quem costumava rumar às terras de origem para o convívio, à volta da mesa, na festa dos afetos e na ternura do encontro de várias gerações. O ágape desta noite era ansiado por todos, crentes de vários deuses e de nenhuns, ritual mais profano do que religioso, uma ansiada liturgia cuja repetição se desejava todos os anos. Era a festa da família.
Este ano, tudo mudou. A prudência aconselha preservar a saúde de quem estimamos e a defesa da nossa. Ficaram silenciosas as casas e mais crispados os rostos na sólita solidão a que nos vamos resignando.
Erguemos os braços e o espaço fica vazio; ensaiamos os beijos e faltam as faces que os acolhiam; esboçamos sorrisos e sentimos esgares com a ausência de destinatários.
O que o frio, a neve e a distância não conseguiam evitar, os encontros familiares que os afetos exigiam, conseguiu-o um vírus que trouxe consigo a destruição da economia, da sociedade e dos momentos felizes. Quem arrisca manter a liturgia sente-se receoso pelas consequências, e teme ser a vítima e o algoz de derradeiras reuniões.
Este ano não fruímos o prazer dos encontros acalentados durante o ano, ficamos pávidos com a vida que nos resta, a pensar nos danos irreparáveis que nos perseguem, na falta de tempo para nos ressarcirmos do amor sufocado, dos carinhos que esperámos e não vêm, do enlevo da reunião que se esvaiu e morreu na ausência de quem aguardávamos.
Este ano devia ser exonerado do calendário da memória e levar consigo as lágrimas que explodem e a solidão que nos habita. Este ano é devastador.
Na lúgubre melancolia que nos invade, resta a recompensa de ficar com quem se ama e, no grupo de dois apaixonados, ver num ecrã os sorrisos dos filhos e netos, um privilégio de quem tem modernos meios de mitigar a dor da ausência e o vazio do contacto físico com que contávamos preencher a noite de hoje.
Espera-se que o ano que há de vir seja o da vitória da vacina sobre o vírus, que a solidão deste ano se transforme na fraterna comunhão de homens e mulheres de um mundo que consigamos salvar das guerras, do aquecimento global e da escassez de alimentos.
Um abraço para tod@s, do tamanho do palco que o coronavírus conquistou, com votos de que o Novo Ano seja diferente e melhor.
Não é pedir muito.
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Por António Barreto
O balanço global do primeiro mandato do Presidente Marcelo é evidentemente positivo. Muito. Ao contrário do que tanto se diz, os seus maiores trunfos não foram os afectos, nem os seus principais efeitos foram sentimentais. Apesar do frenesim e da agitação, o Presidente trouxe serenidade às instituições. E fez com graça o que outros fariam com solenidade ou fútil popularidade.
Um dos grandes méritos do Presidente Marcelo foi e é o exercício forte e permanente da influência, sem o fazer através das oposições. Isto é, directamente com o governo, por um lado, com a população, por outro. Nisto foi muito diferente de Soares, de Sampaio ou de Cavaco. Aproximou-se dos adversários e distanciou-se dos seus, gesto em que muitos vêm o princípio da traição, mas que é a maior dificuldade na acção de um presidente eleito: ser presidente de todos.
Não exerce a influência que tem graças ao seu poder que, à partida, não tinha. Através da sua influência, conquistou poder. Fez-se sentir útil e necessário. O governo precisou dele. O Partido socialista também. E o primeiro-ministro António Costa nem se fala.
Resolveu um problema delicado: o de articular poder com influência. Já tivemos presidentes com uma e sem o outro. Ou vice-versa. Deu geralmente desastre. Ou insignificância. No seu caso, conseguiu raro equilíbrio.
Popular, combateu o populismo. Jurista, privilegiou a política. Intelectual, exprime-se com impressionante simplicidade.
O sistema semipresidencialista, iniciado e mal conduzido por alemães, codificado por franceses, com relevo para Maurice Duverger e seguido por devotos portugueses, tem-se revelado útil de vez em quando, inútil quase sempre e prejudicial muitas vezes. Uma revisão histórica dos mandatos presidenciais portugueses mostrará um balanço complexo. Vários parlamentos dissolvidos e governos demitidos por causa da dupla legitimidade constituem um inventário pouco favorável a este sistema. A concorrência de legitimidades provocou mais danos do que êxitos. Esta dualidade, nefasta para a resolução de problemas e de crises, é de especial afecto de muitos juristas e políticos portugueses, amigos de invenções complicadas. Com esta solução, pouco original, não só porque vinha de França, mas também porque se aproximava das primeiras décadas do Estado Novo, os constituintes tentavam evitar Afonso Costa e o seu caos jacobino, mas também as tentações de Sidónio Pais, de Álvaro Cunhal e de Vasco Gonçalves. Com um pouco mais de poderes, o Semipresidente também seria antídoto contra Salazar, adepto do sistema, mas numa variante especial com ditadura do primeiro-ministro.
O primeiro grande mérito do Presidente Marcelo terá sido o de ter conseguido usar o sistema, cumprindo-o, mas colocando-se sempre do lado da estabilidade e do apoio aos poderes parlamentares e executivos. Ao contrário dos seus antecessores, quase todos, não se especializou em dar alento às oposições, nem contrariar o governo com intriga e boatos. Também não criou obstáculos inaceitáveis às leis do Parlamento e não vetou quantidade excessiva de diplomas do governo. Nem sequer, para surpresa de muitos, “plantou” notícias nos jornais ou “semeou” recados nas televisões.
Correu tudo de tal maneira que o sistema semipresidencialista fica quase reabilitado. Quase! Na verdade, o mandato e a legislatura resultaram porque ambos precisavam vitalmente um do outro, Marcelo e Costa, Presidente e Governo. Nunca se tinha ido tão longe no entendimento. A razão é simples: sem governo, sem partido, sem movimento, sem corpos intermediários e apenas em ligação directa através de abraços e de selfies, Marcelo precisava de um profundo entendimento com o governo. Teve o mérito de o perceber. E de o praticar.
Sem maioria, sem apoio parlamentar inocente, fugindo a uma coligação formal, as habilidades de António Costa alimentaram-se do apoio presidencial, sem o qual de nada serviriam. Sem maioria, prisioneiro da extrema-esquerda, com vontade de liderar um governo moderado no essencial e radical no acessório, o primeiro-ministro necessitava de um presidente. Este foi o seu sésamo e o seu pára-raios.
Com o Partido Socialista de António Costa, Marcelo garantiu uma espécie de bloco histórico (socialistas e sociais democratas, católicos e laicos, esquerda e direita moderadas) e permitiu uma longa duração ao mais esquerdista de todos os governos desde 1976. Num ciclo de queda da direita quase irreparável, Marcelo permitiu a sobrevivência de um estado de espírito e de uma memória da direita democrática.
Em algumas áreas importantes, Marcelo perdeu, não conseguiu ter influência, pelo que se distanciou: na Justiça, no SEF, no financiamento do Serviço Nacional de Saúde, na TAP, no Novo Banco… O que se lamenta, pois foram as nódoas negras que ainda hoje afligem o país. Mas tantos fiascos tiveram um lenitivo: foi de influência decisiva em certos casos dramáticos, como os de Tancos e dos incêndios de Pedrógão e de Castelo Branco.
Há ainda o caso da segurança, isto é, das Forças Armadas e das polícias, dos efectivos e do equipamento, assim como da legislação e dos órgãos de supervisão. O Presidente não pode evidentemente limitar-se a observar. Nem apenas ficar à espera, não se sabe de quê. No seu segundo mandato, espera-se que o sempre difícil problema da segurança mereça do Presidente a atenção que deve. Estranhamente ausente no recente caso do SEF.
As suas qualidades pessoais superam largamente os seus defeitos. É culto, talentoso e tem graça. Tem rara consciência do carácter europeu do país, ao mesmo tempo que guardou uma espécie de afeição pelas antigas amizades africanas. É certamente o presidente que melhor conseguiu conjugar as duas inspirações ou as duas ligações.
A Presidência de República é, em Portugal, uma ficção. Vistosa e ilusória. Episodicamente, pode revelar-se muito importante. Dá a impressão que tem poder. Julga-se que tem enorme influência. Pode conter drama e paixão. Desperta mais indiferença do que inveja. Raramente satisfaz quem dela espera algo de decisivo. Pede-se-lhe tudo, mas quase nada se obtém. E se nada vem, também não faz mal. Não tem adeptos fervorosos, tem sobretudo áulicos e cortesãos. Mas tem desmedido poder de atracção. É uma verdadeira ficção. Que pode ser uma obra-prima, como se sabe.
Público, 19.12.2020
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Por Joaquim Letria
Este ano vamos ter um Natal muito diferente. Mas sendo diferente não tem de ser triste. Naturalmente que todos sabemos porquê, depois de termos vivido um tempo assustador, único e desconhecido em todo o Mundo.
Nas grandes guerras houve quem respeitasse tréguas nesta quadra. Na I Grande Guerra foram os próprios soldados, muito jovens, quer alemães quer aliados, que decretaram as tréguas e chegaram a fazer confraternizações e a cantarem e trocarem músicas e mensagens de paz, de trincheira para trincheira. Este ano, a Pandemia não nos dá tréguas.
Este ano o Natal não vai ter Pai Natal, ninguém se vai lembrar das renas nem dos trenós. Mas vai haver Menino Jesus porque é o seu nascimento que celebramos. Recordo que na minha meninice os meus avós sempre celebravam o Menino Jesus e as prendas eram pedidas por carta ao filho de Deus.
Só quando eu tive filhos é que mudámos para o Pai Natal, que fazia barulho a entregar brinquedos, roupas e pijamas pela chaminé antes de nos entregarmos ao arroz doce, às rabanadas, às fatias paridas e aos sonhos, de calda grossa e deliciosa.
As celebrações, este ano, vão ser diferentes. Ou pelo menos deveriam ser. A consoada só com a família de nossa casa, o Dia de Natal só com os avós e mais tarde, em outros dias, e cada grupo à vez, os tios e os primos. Pelo menos assim deveria ser, com máscaras, sem beijos nem abraços e todos distantes uns dos outros.
Se todos respeitarmos estas regras, usando máscaras e lavando e desinfectando as mãos, poderemos talvez para o próximo ano celebrar um grande Natal como fazíamos antes, com todos juntos a comer bacalhau, a ir à missa do galo e a empanturrarmo-nos de doces. Se tivermos paciência, se resistirmos e compreendermos as regras a que devemos obedecer será isso que acontecerá, todos protegidos por uma das vacinas que nos irão proteger.
Então, a Pandemia será uma triste recordação que a muitos levou entes queridos e a outros deixou sequelas de difícil recuperação. Uma memória para os mais novos e uma lembrança para os que eram crianças e brincavam com as máscaras. Uma vaga ideia para a posteridade que falará de nós e deste pesadelo como nós falamos da Gripe Espanhola e da Pneumónica.
Oxalá esse tempo chegue depressa.
Publicado no Minho Digital
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C. B. Esperança
Todos sabemos como a data que celebrava o nascimento anual do Deus Sol no solstício de inverno foi apropriada pela Igreja católica no séc. III para converter os povos pagãos do Império Romano, e passou a comemorar o nascimento de Jesus, o Cristo.
Independentemente do que representa para o imaginário cristão, é a festa da família que anualmente repete uma das melhores tradições familiares e nos remete para as afetuosas recordações de infância, quando três ou quatro gerações se reuniam à mesa da consoada.
Não havia, então, nas aldeias portuguesas, eletricidade, água canalizada ou saneamento, faltavam as luzes que piscam, os presentes caros e os embrulhos reluzentes, mas havia o Presépio da escola primária e da igreja onde os musgos seguravam esmeradas figuras de barro, saídas de olarias rudimentares, que gerações de artesãos anónimos moldavam e pintavam com desvelo e arte.
Com ou sem presépio, este substituído pela árvore de Natal, como o Menino Jesus pelo Pai Natal, também de proveniência exógena, a data mantém a forte carga simbólica que prende os laços familiares e os afetos que a vida moderna torna cada vez mais frágeis.
O Governo, sabendo dos sentimentos da população, transigiu em tempos de pandemia, e corre-se o risco de esquecer as preocupações sanitárias e de, na excitação das saudades matadas, não resistir aos braços que nos abraçam e aos beijos de que andamos carentes.
A autorização do Governo não é um convite ao abrandamento das normas sanitárias que nos remetem ao confinamento e à privação do contacto físico com os entes queridos, é a cedência a quem prefere o risco de festejar o último Natal para se encontrar em janeiro no primeiro funeral, de quem troca a alegria breve da celebração da vida pelo perigo de uma perda irreparável e da pungente dor da perpétua ausência de quem ama, que teve no ágape familiar o derradeiro encontro e a causa de ser o último.
Se pudesse persuadir alguém, dir-lhe-ia para reprimir a saudade e conter a ansiedade e as lágrimas, para evitar ao sistema de saúde a rutura e aos seus profissionais a exaustão.
A pandemia não faz pontes, não vai de férias, não dá tréguas e, manda a prudência que as normas sanitárias, com ou sem coerção, sejam cumpridas, sobretudo neste Natal.
Deem uma oportunidade a vida.
Aliás, a diferença entre o “ver de longe” e o “ver de perto” é semelhante à que existe entre o “visitar” e o “conhecer”, pois “conhecer” é algo bem mais profundo — que, no caso de povoações, implica viver nelas durante algum tempo.
Sucedeu isso comigo, aqui em Lagos, onde desde a juventude eu vinha passar um par de semanas estivais, mas de onde abalava, depois de me saciar de sol e praia, sem ter ficado a conhecer minimamente o que me rodeava. Foi só mais tarde, quando me mudei para cá, que isso se alterou, dedicando então longas horas a calcorrear a cidade, mergulhando nas realidades da terra e das suas gentes, passando a ter uma visão em nada semelhante à superficialidade da anterior.
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ALIÁS, já nos finais dos “anos 70” eu me vira confrontado com um outro caso idêntico, ao passar longas temporadas na terra onde os meus sogros viviam (uma simpática aldeia que eu apenas conhecia de passagem), e onde a primeira perplexidade foi a ausência de energia eléctrica. E, de facto, apesar de estar a poucas horas de Lisboa e a dois passos da capital do distrito, ainda em 1980, para ter luz no quarto, tive de construir um cadeeiro com lâmpadas de automóvel, que ligava à bateria do carro com um cabo saindo pela janela!
Ora, e se, AINDA HOJE, em pleno séc. XXI, CTT, JF, C.M., bancos, farmácias, restaurantes, indústrias e comércio estão a mais de 5 km (e não há transportes públicos!), imagine-se como seria nessa época — para já não falar das muitas terras em redor, ainda mais distantes da Civilização.
Quanto a telefones, ainda em finais do séc. XX havia apenas um posto-público (por sinal na casa dos meus sogros, que tinham de o disponibilizar a qualquer hora do dia ou da noite), e poucas pessoas os tinham, porque quase todas viviam de uma agricultura de subsistência ou de pensões de reforma, para quem o custo do aluguer do aparelho e das chamadas tinha um peso significativo.
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ENTRETANTO, muitas coisas se modificaram, a começar pela demografia (com o êxodo para as cidades a levar os mais novos, e a lei-da-vida a levar os mais velhos), mas, apesar de ali ao lado agora correr uma IP e uma autoestrada, muitas das antigas limitações continuam a existir. Sim, ainda há, neste país, quem nem sequer tenha telefone! Claro que, entretanto, os telemóveis se generalizaram, mas não basta ter dinheiro para os comprar, é também preciso gastá-lo para os manter activos e, naturalmente, muitas pessoas conservam os modelos antigos — além de que há quem não os tenha, de todo. Imagine-se, então, o que foi, para estas, ouvirem na TV, no mês passado, os políticos a falar de Internetes e Apps como se fossem as coisas mais naturais do mundo! E imagine-se o que sentiram quando, nesse seguimento, o Governo as ameaçou de serem multadas (num valor superior ao que auferem por mês!) se não tivessem, e sempre à mão!, um telemóvel moderno, devidamente carregado, com Internet móvel (com o pagamento em dia), e com uma aplicação de nome inglês devidamente instalada!
Qualquer das hipóteses é assustadora, mas é o que temos...
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Etiquetas: CMR, Correio de Lagos
Por António Barreto
O acordo a que os europeus chegaram esta semana agrada a toda a gente. Aos defensores do Estado de Direito, mas também aos que descaradamente violam alguns princípios, direitos e garantias. Aos países que formam uma maioria estável europeia, mas também aos que procuram excepções, como sejam os do Sul, os do Leste, os “Frugais” e os “Despesistas”. Aos que detêm o poder do livro sagrado dos valores europeus, mas também aos que criam regimes de excepção fundamentados em traços nacionais e na tradição. Mais um fim feliz para esta União, prodígio florentino de arranjos e rendilhados. É possível que assim consigamos viver mais um tempo, anos talvez, mas sabemos que se trata de novo adiamento.
No âmago dos problemas, estão, evidentemente, a questão nacional, a autonomia política dos Estados e a interpretação do ideal democrático que cada país ou família política defende. Nas principais crises europeias dos últimos anos, esteve sempre presente a questão nacional. Na Grã-Bretanha, a independência, como fundamento ou pretexto, está no centro do Brexit. Assim como com as Irlandas e a Escócia. Na Grécia, a nação foi factor de crise iminente. Na França e na Itália, os poderes nacionais estão no centro, real ou retórico, dos conflitos. Agora, na Hungria e na Polónia, os seus dirigentes tão pouco democratas recorrem ao argumento nacional, para contrariar as tendências dominantes da União. No Norte da Itália e na Catalunha, conhecem-se os contornos nacionais e regionais do problema.
Os mais importantes países europeus, assim como a União no seu todo, não souberam tratar deste tema convenientemente. E cada vez que julgam que está resolvido, regressa sempre. A galope! O êxito da direita e dos radicais franceses, italianos, austríacos, alemães e outros ficou sempre ligado à retórica nacional. E entre os radicais de esquerda, comunistas ou não, nunca falta o patriotismo: “cá em casa mandamos nós…”
Actualmente, esta espécie de patriotismo americano de Trump, que nos aflige há quatro anos, foi um bálsamo para as direitas europeias e os “nacionais” de qualquer bordo. Trump ajudou tudo e todos. Ajudou Boris Johnson e o Brexit. Ajuda a Irlanda se esta estiver contra a Europa. Ajudou os iliberais. Ajudou Orban e Morawiecki. Como apoiou Erdogan e Putin. Ajudou os que querem partir a União e enfraquecer a Europa.
Verdade é que a Europa e a UE andam a esticar há vários anos. O establishment europeu limita-se a condenar os patriotas e os nacionalistas, negando o problema. Foi o que fez com os italianos e os gregos. Com alguns espanhóis. Com os húngaros e os polacos. Com os franceses da Frente Nacional. O que é certo é que tudo quanto é antidemocrático na Europa aproveitou a oportunidade para fazer prova de vida.
É bem provável que já não seja possível classificar de plenamente democráticos os regimes em vigor na Hungria e na Polónia. Se admitirmos que a democracia e a liberdade podem ter graus, esses dois países estão certamente em défice. Os sistemas eleitorais, a liberdade de expressão e os sistemas judiciais, pelo menos, revelam já feridas indiscutíveis. Apesar de a União Europeia não ter uma medida nem um medidor, é razoável que os Estados membros e a União possam advertir esses países, dizer-lhes que passaram as marcas e ameaçá-los de represálias. Podem mesmo suspender os seus estatutos ou até expulsá-los. Tudo isso é grave, mas nada disso é surpreendente. A UE tem uma estrutura mais ou menos democrática, mas apoia-se ou reúne países democráticos. A democracia é a sua inspiração. Quem não a respeita vai-se embora, sai ou é expulso.
A imposição de regras de direito, de normas políticas e de procedimentos democráticos aceites pelos membros da UE, em países que têm uma versão própria da democracia, que tolhem a justiça, que condicionam a magistratura independente, que limitam as liberdades de informação e de expressão, é legítima e bem-vinda, mas totalmente absurda! A UE não pode vender nem impor democracia, a não ser por medidas de suspensão e expulsão. A Europa tem experiência suficiente para saber que a imposição de regras democráticas à força, com dinheiro ou exércitos, é uma receita desastrosa. Em África, na América Latina e na Ásia, nunca resultou.
Cada vez que os nossos aliados americanos, alemães ou ingleses têm uma qualquer reticência relativamente à política portuguesa e à nossa concepção de justiça, logo se ouvem reclamações de dignidade nacional e de independência. Protestamos contra a imposição de qualquer regra vinda do exterior, mesmo da União, mas, se nos faz jeito impor regras a outros, nomeadamente para receber fundos, não nos importamos com a ideia de exportar ou impor a democracia.
A UE e os seus países mais fortes não podem pretender trocar liberdades por dinheiro, democracia por fundos. As violações à liberdade ou à democracia pagam-se politicamente, não financeiramente. Acertem-se os sistemas de votação e revejam-se as condições de permanência, mas não se tente impor o direito e a democracia à força, com dinheiro.
É bom que os portugueses percebam que, se e quando chegar a nossa vez, teremos perdido a legitimidade para invocar a “dignidade nacional”. Se os países da Europa do Norte ou os países ricos da União ou qualquer outro grupo de países entende pôr em causa o valor do Estado de Direito em Portugal a tarefa é fácil. Os atrasos da justiça, especialmente em casos de corrupção; a prática impune de violação do segredo de justiça; a desigualdade de tratamento, pelo sistema judicial, dos pobres e das mulheres; o primado do Estado em qualquer processo entre os cidadãos e a Administração Pública; o mais desbragado machismo em casos de violência doméstica; a distorção, sempre desfavorável ao cidadão, do processo judicial fiscal; a existência de cláusulas secretas em alguns contratos de parceria público privada; as regalias e os privilégios de que gozam os arguidos muito ricos; estes factos chegam para pôr em causa o Estado de direito em Portugal e seriam suficientes para interromper os fluxos de fundos da União!
Ao mesmo tempo que a União deu prova de resposta concertada, no caso da pandemia, esta crise veio mostrar a fragilidade da construção europeia. Ora, mais uma vez se comprova que a Europa foi longe de mais. A União foi longe de mais. Recuar é difícil, mas vai ser necessário. Como é evidente, compete aos povos polaco e húngaro, assim como aos vizinhos do grupo dito de Visegrado e aos bálticos, guardar e enriquecer a democracia local. Como fizeram os americanos com o seu ameaçador presidente.
Público, 12.12.2020
Etiquetas: AMB
Por Joaquim Letria
A Liga dos Antigos Combatentes evocou a Paz do Armistício da I Guerra Mundial e a Paz do fim da Guerra Colonial. E foi mais longe ainda, evocando também a Paz Individual, que tem ainda um longo caminho a percorrer.
Seria importante que os ex-combatentes que serviram a Pátria sentissem a paz interior do reconhecimento, algo que ninguém se preocupa em lhes dedicar, nem quando eles se juntam e celebram em conjunto esse sentimento, reunindo-se em convívios em que recordam situações difíceis, os pesados anos da sua juventude e muitos camaradas de armas desaparecidos.
No reconhecimento que persiste aos antigos combatentes há muito pouco. Quase não existe apoio social e nele não consta apoio à saúde. Basta dizer que a Lei 3 de 2009 seja revista no apoio de pensão e respectivo Acréscimo Vitalício.
Também o Estatuto do Antigo Combatente deveria ser revisto e actualizado. Basta dizer que só 1772 combatentes foram contemplados e há mais de 300 mil à espera de deixarem de receber uma esmola que não é mais do que que recebem para vergonha nossa: 50Euros por ano uns, 75 Euros anuais outros e 100 Euros outros. A única vantagem do Estatuto apenas implica a isenção da taxa moderadora, isto para centenas de milhares de homens que durante anos arriscaram a vida e serviram a Pátria. Apoio médico e medicamentoso não existem nem tão pouco o direito de serem tratados e internados no Hospital das Forças Armadas.
Muitos encaram esta situação com um sorriso triste. Dizem que a esperança nunca morre, mas lembram que lhes sobra muito poucos anos de vida. Para nós não passam de uma vergonha.
Publicado no Minho Digital
Etiquetas: JL
Por C. B. Esperança
A Revolução do 25 de Abril, em Portugal, deixou atónitos os numerosos fiéis do maior genocida ibérico de todos os tempos. Soaram campainhas de alarme no país vizinho e, entre a aventura da invasão de Portugal e o medo de uma Revolução onde o sangue tem tradições, os liberais da ditadura espanhola, logo que o facínora se finou, começaram a tecer a difícil e incerta transição para a democracia.
Adolfo Suárez foi o artífice da complexa teia de compromissos, a quem a Espanha deve a Constituição democrática sem derramamento de sangue, que a memória dos familiares das vítimas da Guerra Civil, de ambos os lados, ainda temia.
Foi em ambiente de medo e ansiedade, com a coragem e sagacidade de um conservador espanhol, que nasceu a Constituição, com a monarquia que o ditador impôs e os postos-chave da administração pública, Tribunais, autarquias, Forças Armadas e de Segurança, nas mãos de empedernidos falangistas, com a Igreja católica a permanecer franquista.
A adesão à União Europeia consolidou a democracia. A alternância partidária tem sido possível, apesar de tentativas golpistas e do clima de medo que as Forças Armadas e de Segurança e a Igreja católica, cúmplices dos crimes franquistas, se têm encarregado de prolongar.
A manutenção das estruturas fascistas permitiu o ambiente conspirativo das instituições que foram cúmplices ativas do genocídio franquista e das que o defenderam.
As conspirações contra a democracia, nomeadamente contra o pluralismo partidário e a liberdade de imprensa, nunca cessaram, mas a dimensão e perigosidade do que se soube nos últimos dias ultrapassou tudo o que era previsível num país da UE.
Militares na reforma discutiram golpe de Estado e fuzilamento de milhões de espanhóis no WhatsApp tendo o apoio do partido fascista VOX, o que obrigou o chefe do Estado-Maior a garantir lealdade à Constituição, como se essa lealdade não fosse condição sine qua non para o cargo. O jornal digital Info Libre publicou várias conversas do chat que juntava os membros do XIX Curso da Academia Geral da Força Aérea onde decidiram escrever ao rei para criticar as relações entre o Governo e os partidos independentistas catalães e bascos, como se a condução da política, num Estado de direito democrático, pudesse ser ameaçada pelos humores e rancores dos oficiais aviadores.
A ministra da Defesa remeteu para o Ministério Público mensagens e Áudio do líder do Vox a demonstrar apoio, que circulou no grupo, e que também escreveu ao rei Felipe VI.
O risco de um grupo de militares, ainda que na reserva, a discutirem planos de um golpe de Estado em Espanha, com a apologia da ditadura franquista e a defesa do fuzilamento de “26 milhões” de pessoas é de uma gravidade extrema.
Os militares da reserva mostraram as garras que os do ativo ainda têm provisoriamente recolhidas. A democracia corre perigo e o silêncio que rapidamente se fez, abafado pela pandemia e pelas angústias e incertezas que esta provoca, não pode ignorar o barril de pólvora do ativismo franquista à procura de lume para o rastilho.
Etiquetas: CBE
O caso do cidadão ucraniano detido, batido, torturado e assassinado por agentes da polícia de estrangeiros nos corredores esconsos do aeroporto já deveria ter suscitado, pelo menos, uma atitude de arrependimento, de correcção ou de julgamento. Conforme está, fica-se pelos piores terrenos, os da indiferença, do despotismo e da insuportável arrogância dos virtuosos no poder.
Sabemos que os tempos não são bons e não correm de feição. Toda a realidade está dominada pela pandemia. Toda a vida social e económica está hipotecada pela doença e pelas tentativas de a combater. Mal ou bem, as autoridades fazem o que podem e o que sabem. O problema é que parecem poder pouco e saber menos. Felizmente que as soluções estão a ser encontradas no quadro da União Europeia, o que permite que os países menos apetrechados, como o nosso, tenham respaldo.
Não sabemos como as autoridades se vão sair desta tragédia, nem sabemos como vão dirigir a campanha de vacinas para a qual não há evidentemente treino, meios e equipamentos. Por enquanto, imagina-se que haja algumas competências institucionais, boas vontades profissionais e dedicação individual, mas, como se sabe, nada disso chega para resolver o essencial: vacinar uns milhões de pessoas em pouco meses. Já se preparara o mercado negro de vacinas. Já há planos para as cunhas, os favores, as falsas prioridades, a ruptura de stocks e os atrasos injustificados. É neste terreno da organização que as causas se ganham ou perdem. E que em Portugal tantas vezes se perdem, como com os incêndios, os temporais e respectivas reparações.
Obcecado com a política, as sondagens e as futuras eleições, o governo entregou-se à infinita habilidade de António Costa e a uma poderosa máquina de comunicação que de tudo faz propaganda. Até da doença. O principal plano do governo parece resumir-se a uns pontos claros. Não precisar da oposição. Governar sozinho. Obter os dinheiros da União Europeia. Aguentar as sequelas do desastre económico. É pouco.
Da oposição, não vem mais nem melhor. Uma oposição de esquerda vendida e calculista. Uma oposição de direita desorientada e oportunista. Oposições unidas num desígnio maior: o de vigiar de perto a impotência do governo e espreitar os seus erros para aproveitar eleitoralmente. Nunca, na história recente, se viu tamanha sarna à espera que o governo falhe e que a população sofra uma tragédia. Uns esperam que a pandemia destrua o governo, outros gostariam que a impotência das autoridades se pague com uma derrota. Conhecemos a frase feita: quanto pior, melhor! É o santo e a senha das oposições contemporâneas.
A aprovação do orçamento foi um caso aberrante. Berros e negociações inadmissíveis, chantagens e oportunismo por excesso, perda de vista de tudo o que é essencial, com visível favor a tudo o que possa ser resolvido com as habilidades do costume. Um governo de um país em séria crise que depende, para os seus orçamentos, de duas deputadas independentes caprichosas e rebeldes, de abstenções tácticas e com reserva mental e de dádivas de medidas que se prestam à demagogia barata… Não é boa receita. Não é auspicioso. Nem bom sinal. O governo que faz estas coisas, que assim se porta, que perde de vista o que é essencial, não merece confiança nem nos dá esperança.
Bastavam a dívida pública, a TAP, o Aeroporto de Lisboa e o Novo Banco para exigir um governo com autoridade, maioria e estabilidade. Com a pandemia e as consequências desastrosas para a economia e a sociedade, um governo com autoridade é ainda mais necessário. Até porque não se trata apenas de resolver os problemas visíveis e urgentes, a começar pela saúde, pelas falências e pelo desemprego. Trata-se também de não perder de vista que há um país adiado, atrasado, impune, que não sabe resistir à intriga, ao roubo e à corrupção.
É bem possível que, um dia, vacinada a população, consolidada a imunidade e depois de feito o luto necessário multiplicado por milhares, regressemos aos nossos problemas, à economia e à sociedade, com relevo para a justiça, que não deveria ficar mais uma vez adiada ou, pior, suspensa até mais ver, sem dia marcado.
As intenções legislativas, excelentes mas pouco práticas, da Ministra da Justiça, no combate à corrupção, parece ficarem em terra de ninguém. Algumas novas directivas da Procuradoria-geral da República levantam as mais sérias dúvidas em quase toda a comunidade judicial. As negações de justiça de que são vítimas tantas mulheres são arrepiantes. Valerá a pena recordar os casos de Justiça? Isto é, a lista estonteante de casos não resolvidos, de casos eternos, de casos à espera, de casos sempre adiados, de casos de que não se vê fim nem solução?
Será que temos de esperar com indiferença pela prescrição, pelo mistério e pela decisão inconclusiva, relativamente aos casos do nosso subdesenvolvimento político e moral? Será que estamos condenados a deixar passar os processos que mais prejudicaram o país e que mais honra destruíram? Será que a falta de maioria política, a ausência de uma clara legitimidade democrática e a obsessão com a habilidade nos vão condenar a deixar passar os arguidos da Operação Marquês, os responsáveis visados pela Operação Monte Branco, os trafulhas dos Vistos Gold e os culpados citados pelas operações do BES, do GES, do Banif, do BPN, do BPP, da PT e da EDP?
Será que estamos mesmo condenados a ter os mais ilustres corruptos e bandidos da Europa, em cujo elenco se incluem Primeiro ministro, ministros, secretários de Estado, deputados, presidentes de câmara e vereadores, directores-gerais, secretário-geral de ministério, presidente de Instituto, chefe de polícia, magistrados de primeira instância e da Relação, alguns dos mais importantes banqueiros, gestores e administradores de algumas das mais importantes empresas privadas e públicas, oficiais das Forças Armadas e dirigentes de polícia militar?
A pandemia não pode ser desculpa para a injustiça. Nem para a falta de Justiça.
Público, 6.12.2020
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