Por C. B. Esperança
O padre Isidro, ordenado pelo eterno bispo da Guarda, D. João (III) Alves Matoso (1914 / 52), paroquiava ao Barracão e outras aldeias quando o idoso prelado ou o recém sucessor, D. Domingos, o chamou para a paróquia de S. Vicente, na Guarda, sede do distrito e da diocese, no início da década de cinquenta do séc. XX.
Continuou rural numa cidade que só diferia das aldeias na luz elétrica, água canalizada e saneamento, que já chegavam à maior parte das casas, mas há de ter atraído a inveja de largas dezenas de padres que exibiam a batina, a tonsura e o cabeção romano, pelas ruas da cidade, sem os proventos que a paróquia concedia.
O padre Isidro chegou de bicicleta, com molas a apertarem-lhe as pernas das calças para as não sujar de óleo na corrente que a impulsionava. Era duro pedalar numa cidade de montanha, e não tardou a substituir a velha pedaleira pela barulhenta moto cujo motor se ouvia a larga distância. Depois, havia de comprar automóvel, e outros se seguiram.
Na Guarda tinha à espera a casa paroquial, uma enorme e bela mansão, hoje em ruínas, em cujo quintal era farta a capoeira, com galinhas que trouxera do Barracão e outras que a piedade das devotas lhe levavam. Não faltavam ao pároco, nesse tempo, iguarias com que as boas almas o apaparicavam, convictas de que o pároco facilitava o Paraíso, nem devotas que o cuidavam e lhe asseguravam os serviços domésticos. Foi um privilegiado.
O padre Isidro era piedoso, e não devia muito à inteligência. Medíocre na parenética e esforçado no serviço divino, inspirava simpatia ao bispo e sorrisos aos paroquianos. Havia outros padres a oficiar na cidade, mas era ele ‘o pároco da Guarda’. Vagamente exótico, seria hoje designado ‘cromo’.
Num qualquer domingo depois do Pentecostes, quando oficiava a segunda missa do dia, as mulheres entoavam o habitual cântico litúrgico. Enlevado com o entusiasmo canoro, gritou, “cantai, mulheres, cantai!” e o coro, aturdido, deixou de cantar. Foi um momento de constrangimento, com mulheres ansiosas pelo fim da missa, para finalmente dizerem, benzendo-se, “Deus nos perdoe, o raio do padre é doido, como é que podíamos cantar depois de nos interromper”!?
Aqui, o cronista abre um parêntese para referir que as mulheres, durante muitos séculos, não podiam cantar nas igrejas. Paulo de Tarso, um santo doutor, considerava o cabelo e a voz das mulheres coisas obscenas. A castração de jovens, antes da puberdade, garantia às crianças preservar a sua voz aguda e, durante séculos, foram homens os cantores cuja extensão vocal correspondia à das vozes femininas. Sisto V aprovou o recrutamento de castrati para o coro da Basílica de S. Pedro pela bula papal “Cum pro nostri temporali munere” de 1589. Só em 1870, a castração para esse fim foi proibida em Itália, o último país onde se louvou a Deus sem o sujeitar à voz de mulheres. Em 1902, Leão XIII proibiu definitivamente a utilização de castrati nos coros das igrejas e Deus resignou-se. Já era assim que o padre Isidro homenageava o Altíssimo, o último castrato a abandonar o coro da Capela Sistina foi Alessandro Moreschi, em 1913, quase quatro décadas antes.
Voltemos ao bem-aventurado padre Isidro que se finou sem odor a santidade, apesar da longa e virtuosa vida eclesiástica a pelejar contra o Demo, como o demonstrou a sanha com que tentou impedir a escandalosa exibição de sutiãs em manequins que desafiavam a moral e os bons costumes no Império da Moda, a primeira casa de roupa feminina na cidade da Guarda.
O Império da Moda abriu na R. do Comércio, no Rés do Chão da casa que alguém legou à paróquia para salvação da alma. O proprietário era, pois, inquilino da paróquia, mas a exibição do íntimo adereço feminino era da sua responsabilidade. O padre Isidro tentou demovê-lo de exibir a mercadoria, e a resistência do comerciante exasperou o sacerdote. Enviou-lhe duas freirinhas que lhe pediram, pelo amor de Deus, que retirasse da montra tão lasciva mercadoria, numa rua movimentada onde passavam pudicas adolescentes e inocentes crianças. Não se demoveu o comerciante e a santa ira do pároco revelou-se.
Durante a noite abriu as torneiras do primeiro andar, o prédio era todo propriedade da paróquia, e inundou a loja destruindo os manequins, os sutiãs e outras mercadorias para desagravo do seu Deus.
Não se conformando, o comerciante recorreu ao Tribunal, exigindo uma indemnização por danos sofridos. Após vários anos, o advogado da paróquia recomendou pagar todos os prejuízos causados pelo bondoso pároco para lhe evitar a sentença que o amachucaria e não lhe evitava o pagamento. Ameaça do juiz.
O padre Isidro, a quem em 1960 o bispo nomeou dois coadjutores, um deles o mediático padre Vítor Feytor Pinto, que quis reconduzir ao redil da fé o cronista que ora esboça a biografia do pároco, promovia desobrigas coletivas pascais e, em maio, o Mês de Maria, para converter a Rússia através do terço diário, como a freira Lúcia pedia.
Apesar da dedicação pia, o padre Isidro teve na devota cidade, onde o clero gozava de especial consideração, respeito e medo, desconsiderações que hão de ter ajudado a remir os pecados, se acaso os tinha, quando Deus foi servido de o chamar à divina presença.
Uma ocasião, quando tinha substituído a moto pelo automóvel, o frio e a chuva não lhe consentiam andar de moto, tal como o acidentado da cidade o tinha obrigado a enjeitar a bicicleta, andavam os mordomos a cobrar a côngrua pela cidade. Entraram na tasca do Ti Agnelo, no R/C do último prédio da Rua Dr. Francisco dos Prazeres, a seguir, e em frente, à rampa que subia do colégio de S. José.
Solicitaram o óbolo ao honrado tasqueiro que ganhava a vida a vender copos de vinho e uns deliciosos pastéis de bacalhau que a mulher, a senhora Maria, fritava durante todo o santo dia. A vida não era fácil e, perante a solicitação, lembrou-lhes que o padre chegara à Guarda de bicicleta, que a substituiu por uma moto e, depois, por um automóvel, e perguntou-lhes se a côngrua era para comprar algum avião. Descoroçoados, retiraram-se os mordomos, convictos de que a taberna não era lura de onde saísse coelho, e lá foram bater a outras portas.
O padre Isidro, a quem faltava um biógrafo que o tivesse conhecido, não terminaria na cidade a sua entrega ao serviço do Divino.
A estação da Guarda, hoje integrada na cidade, era o local da confluência das linhas da Beira Alta e Beira Baixa, rodeada de armazéns, habitações de empregados da CP e dos armazenistas, onde paravam as camionetas da Sociedade de Transportes que faziam a ida e volta, com os passageiros dos comboios, num longo desvio pelo Rio Diz e Mileu, trajeto obrigatório mesmo depois de haver uma estrada com metade da distância.
À medida que cresceu e se tornou um aglomerado urbano e denso, desejou a criação de paróquia própria e enviou sucessivas delegações de crentes a implorar ao bispo que lhe concedesse a mercê. Construíram e mobilaram a casa paroquial e aguardaram ansiosos a designação do novo padre.
Um dia o bispo deu-lhes a boa nova. O padre Isidro deixava a cidade para ser o primeiro pároco da nova paróquia. Foi o desânimo e, na impossibilidade de lhe retirarem a casa, levaram-lhe as mobílias quando souberam qual o padre que lhes calhara. Deus castiga os que mais ama, pároco e paroquianos, e foi assim, com o padre Isidro, que a paróquia se iniciou a cuidar das almas e a tornar cristãos os neófitos.
O povo é bom e a fé redime. O padre Isidro finou-se cheio de missas e de anos. Agora tem um largo com o seu nome na última paróquia que lhe coube.
Coimbra, 6 de abril de 2022
Ponte Europa / Sorumbático
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