Por Antunes Ferreira
“E não se esqueça, ó senhor Jeremias, diga lá à dona Rita cozinheira que eu quero a salada com muitooooos pimentos!! O vozeirão da Senhora Dona Elvira fez-se ouvir nas mesas em redor daquela que nós ocupávamos e que, na verdade eram duas juntas pois o nosso grupo era composto por treze bicos mais ou menos encostados uns aos outros ou outras. Assim falou Elvira Monteiro de Oliveira Figueiredo, como assim teria falado um tal Zoroastro que fora um dos primeiros (senão mesmo o primeiro) profetas a defender a existência de um Deus único.
A digna madama, viúva do general Flávio Silveira de Oliveira Figueiredo, impunha-se pela imponência, pelo trato, pela arrogância – e pelo peso: rondava a centena de quilogramas e por tal motivo usava frequentemente uns balandraus que más línguas viperinas insinuavam ter ela aproveitado do que usava o falecido na Grande Loja Soberana de Portugal. O que para o caso não aquenta nem arrefenta.
Cheirava, pois, a sardinha assada nos restaurantes ao ar livre da Feira Popular ali em Palhavã, local por excelência se ia aos fins de semana desanuviar a cachimónia, ir às panelas, à grande roda, ao comboio do terror, à montanha russa, ao water shot, aos carrinhos eléctricos de choque, ao poço da morte e – principalmente para mim, crianço com oito anos – comer algodão doce, muitas cores mesmo paladar.
Os meus progenitores faziam parte da “seita” encabeçada pela matrona; não era um clube nem uma associação, muito menos se pagavam quotas. Mas eram unidos e até os machos iam aos futebóis juntos enquanto as damas ficavam no paleio, tricotavam, cortavam nas casacas alheias e por vezes carteavam umas canastas. Sem ser a pilim – está bem de ver, todas eram pessoas sérias, quando não se riam.
Nessa noite, o Nuno Santos Costa (não tinha nada que ver com o eterno ministro da Defesa e intimo do Salazar) dono das Farmácias Salutar e Santa Iria trouxera uma novidade: a “Colónia Balnear Infantil de O Século” estava de novo enfrentar dificuldades financeiras, As receitas geradas pela Feira Popular não chegavam para as muitas necessidades e a iniciativa tomada pelo director do diário O Século, João Pereira da Rosa, em 1943 parecia estar a dar as últimas.
Não podia ser. A “Colónia” tinha vindo a ser um marco no apoio social a crianças desfavorecidas pela vida – ou pela sorte. Por ela vinham passando todos os Verões centenas e centenas de catraios e catraias que de outro modo nunca teriam tido a hipótese de ver o mar. A sua vida tinha sido acidentada. A colónia de férias para crianças desfavorecidas fundada em 1927 pelo Jornal «O Século» transferira--se em 1943 para o edifício renovado de uma antiga fábrica de conservas, em São Pedro do Estoril, onde ainda continuava. No mesmo ano, para financiar a acção social da colónia, o jornal criou a Feira Popular de Lisboa.
Entretanto chegava o Jeremias mailas sardinhas, as batatas cozidas e as saladas (com muitos pimentos bem assados) e atrás avançava a Joaninha com uma bandeja onde resplandeciam quatro jarrões de tinto carrascão de proveniência indeterminada, o que ela corrigiu: “É de Almeirim dum cunhado do patrão e escorrega pela tripa que nem se dá por ele!...”
Naturalmente sem rótulo; naquela altura ninguém fazia a menor ideia do que era REGIÃO DEMARCADA. Também não era preciso saber isso, bastava que a pinga fosse… pinga verdadeira. E, pelo que ouvia, sentado à beira dum canto, entretido com uma sandes de pão com fiambre e queijo com manteiga e uma limonada, o repasto seguia o caminho natural do sistema digestivo (de que eu na verdade não pescava patavina).
Foi quando a Senhora Maria de Fátima, dona da loja de hortaliça que ficava no rés-do-chão do prédio onde nós morávamos se levantou e disse que estava tudo nos conformes mas que ela ia até ao pavilhão das panelas; tinha mesmo uma fezada e acreditava que iria levar para casa o jogo completo de panelas, tachos e frigideiras tudo em alumínio por uma meia dúzia de rifas, uns tostões quase nada.
O esposo, já com um grãozinho na asa, disse-lhe que fosse sozinha – o pavilhão era ali mesmo ao lado – e que depois de agarrar os ganhos viesse ter com ele a fim de apanhar um táxi; àquela hora da noite tentar um autocarro ou um eléctrico era impossível e com o que ela ganharia no jogo gastar na bandeirada até achava uma piada.
Quando as coisas dão para o torto não há nada para fazer a não ser recolher a penates e bicarbonato de sódio. O evento resumiu-se assim. A Fatinha perdeu vinte e cinco mal réis, o marido fez uma cena, o homem do pavilhão até lhes deu um panelão como prémio de consolação. O pior foi a cigana da barraca de adivinhar o futuro que ao vê-lo de instrumento de cozedura na mão não se conteve: PANELEIRO!!!!
A Feira Popular de Lisboa abriu portas a 10 de junho de 1943 no Parque José Maria Eugénio, em Palhavã, numa iniciativa do diretor do jornal "O Século" para financiar colónias de férias para crianças carenciadas.
A colónia já tinha proporcionado férias a mais de 30 mil crianças e o financiamento estava a tornar-se difícil, pelo que João Pereira da Rosa decidiu criar um financiador empresarial para a obra e pediu autorização para instalar uma feira em Lisboa.
A Feira Popular manteve-se em Palhavã até 1956 e, a 24 de junho de 1961, abriu em Entrecampos, onde permaneceu até 2003.
10 de julho de 1943 no Parque José Maria Eugénio, em Palhavã, foi inaugurada a Feira Popular de Lisboa. Desde aí, segundo aqueles que a conheceram, durante o período em que decorria, a capital parava para viver a experiência. Depois, migrou para Entrecampos e a magia continuou.
Quem por lá passa e faz parte das novas gerações, não imagina que dois terrenos, um em Palhavã, outro em Entrecampos – agora abandonados aos pombos e às ervas daninhas –, já foram, em tempos, os lugares mais apreciados das férias de Verão de miúdos e graúdos, já que foram precisamente os dois locais escolhidos para a instalação da famosa Feira Popular de Lisboa. Mas quem teve a sorte de a conhecer, nem consegue visualizar esse vazio, já que a descreve, muitas vezes, como um lugar de encontros, abraços, de cores florescentes, música, gargalhadas, cheiros intensos, luzes, gritos de excitação, surpresas, danças, decibéis, diversões, terrores, vertigens e muitas emoções.
Um lugar onde o algodão doce assumia um papel quase principal e, por isso, muitas crianças acreditavam estar a “comer as nuvens”, tal como descreveu a atriz Ana Zanatti, em 2016, num texto publicado no blog De Outra Maneira, onde recorda aquilo que mais a marcou nessa época. “Mãe deixe-me comer as nuvens! Pai, compre nuvens! Era mais bonito de se ver do que de comer, mas eu achava que comer nuvens não era para todos!”, admitiu.
A verdade é que outras feiras – algumas com características e objetivos diferentes –, já tinham existido em Lisboa, tais como, a Feira Franca, a Feira do Lumiar, a Feira do Campo Grande, a Feira de Santos, a Feira de Alcântara ou a Feira de Agosto. Contudo, nenhuma delas se igualava à Feira Popular. Foi sob uma ideia de João Pereira Rosa, então diretor do jornal O Século – de que uma Feira pudesse recolher fundos para a “Colónia Balnear Infantil de O Século” –, Leitão de Barros e Gustavo de Matos Sequeira que se criou o “evento”.
A colónia já tinha proporcionado férias a mais de 30 mil crianças, mas o financiamento estava a tornar-se difícil. Então, João Pereira da Rosa decidiu criar um financiador empresarial para a obra e pediu autorização para instalar uma feira em Lisboa. Esta seria inaugurada pelo Presidente da República General Óscar Carmona e pelo ministro das Obras Públicas e Comunicações, o engenheiro Duarte Pacheco, além de outras individualidades, no Parque José Maria Eugénio em Palhavã, no dia 10 de Junho de 1943, onde anteriormente tinha estado instalado o Jardim Zoológico de Lisboa, 45 anos antes. Segundo o Diário de Notícias, a noite da sua inauguração, contou com cerca de 90 mil lisboetas que correram para a abertura.
A Water Shoot
“Era a alegria da minha juventude! Tinha 12, 13 e 14 anos. Era um sítio onde eu ia muitíssimas vezes, quer com os meus pais, quer com um tio meu que adorava levar-me. Era uma espécie de irmão mais velho e fazia sempre questão de me acompanhar! Que delícia recordar-me desses tempos!”, começou por contar Eládio Clímaco, ao telemóvel com o i. “Os Jardins do Cabo de Farrobo eram mesmo o sítio ideal, tão bonito, tão agradável… E depois as diversões que havia”, lembrou, destacando a famosa Water Shoot, a montanha russa presente na feira. “O jardim tinha um grande lago na altura (não sei se continua a ter), bem no meio. Nesse lago havia uma espécie de montanha russa, uma descida a pique que batia dentro de água e splash! Lembro-me tão bem do som que fazia. Adorava! Estava sempre cheio”, revelou. “Recordo também os restaurantes muito bons que serviam de ponto de encontro. As pessoas juntavam-se, comiam, conversavam, gargalhavam… Era uma época diferente”, acrescentou. Além disso, há algo que o marcou e que “lhe dá sempre muita graça”: “A ciganita Dora. Estava à porta de um dos divertimentos e dizia: ‘Consultem a ciganita Dora!’”, recordou entre gargalhadas. “E depois os comboios, a casa de terror… Era uma feira com muito espaço, com muita vida”, sublinhou.
A zona era rodeada de muros altos, cinza escuro e, só por si, acabava por constituir um motivo de excitação pela curiosidade do que lá estaria dentro. Os carrinhos de choque com uma vara ao alto que faiscava; o poço da morte que, segundo Ana Zanatti, “deitava um cheiro estranho a óleo ou petróleo”; o comboio fantasma onde se “atravessava selvas com gorilas”; “grutas com teias de aranha”, e esqueletos que “abraçavam” quem se atrevia a aventurar-se na diversão; a famosa sala de espelhos que deformava os corpos e que faziam Ana Zanatti rir, “da figura que os adultos faziam”. “O homem fenómeno, anão ou gigante, excessivamente gordo ou magro, a cigana que lia a sina, uma figura de mulher desconjuntada à porta da tenda que se rebolava e me fascinava pelo insólito, meio real, meio fantástica onde nunca me foi permitido entrar”, recordou a artista tal como Eládio, no seu texto.
O Poço da Morte e a 1.º Emissão da RTP
“Lembro-me do Poço da Morte, uma esfera de gradeado com um tipo magrinho, andrajoso e sujo de óleo numa motoca ferrujenta, às voltas lá dentro. Um cheiro a óleo de linhaça queimado pairava no ar. Lembro-me do Túnel do Medo que percorríamos de carrinho nuns carris. Lá dentro bruxas e esqueletos surgiam arrepiantes ao dobrar das curvas. Umas franjas no escuro roçavam-nos a cabeça. Com atenção, era possível num esforço conjugado agarrarmos os fios e puxar, fazendo cair o efeito especial e interrompendo o andar do comboiozito. Os gritos de susto do resto do pessoal eram a recompensa dos delinquentes, que só tinham que se escapulir rápido para evitar a inevitável fúria do dono do negócio”, detalhou também José Luís Vaz Carneiro, um dos autores do De Outra Maneira, no próprio blog. “Lembro-me do comboio fantasma – que era suposto fazer medo! Era básico: passava-se pela ‘selva de gorilas e feras’, sentíamos aranhas na cara e lembro-me que a viagem acabava com todos os passageiros a gritar à boca da saída – o que atraía e seduzia os incautos – porque ‘uma mão’ apertava uma perna – o que não estávamos à espera! Alguém pagou para o fazer!”, continuou, lembrando também a voz enrolada dos carrinhos de choque: “Vamos a uma voltinha? As crianças não pagam, mas também não andam!”, escreveu.
Além disso, Eládio Clímaco recordou as primeiras emissões da RTP - Rádio Televisão Portuguesa, que aconteceram precisamente nesse espaço, no último ano em que a feira ali esteve instalada. “A partir desse momento começaram as enchentes, claro! Lembro-me que eles se encontravam num pavilhão mais abaixo. Nós em cima tínhamos uma espécie de balcão, onde nos debruçávamos para ver as luzes da feira e os locutores. Nessa altura eram os intelectuais, como a Maria Fialho Gouveia… Finalmente o mundo tinha chegado até nós!”, reforçou o apresentador.
Júlio Isidro também ia para a feira popular ainda em pequenino e, na verdade, foi lá que alimentou o “bicho” por aquilo que acabou por se tornar a sua profissão: “Eu nasci na Avenida João Crisóstomo, perpendicular à Marques Sá da Bandeira que tem um dos muros da antiga feira popular. Portanto, mesmo muito pequenino ia com os meus pais”, afirmou o também apresentador de televisão ao i. Desses tempos, recorda-se do lago com barcos a gasolina que “cheiravam muito mal”, da selva, do castelo fantasma, da grande roda e, tal como Eládio Clímaco da Water Shoot. “Nessa eu não andava muito”, admitiu. O que mais lhe salta à memória, revelou, são os restaurantes: “Lembro-me que um deles tinha uma vaquinha, e das suas tetas saia vinho, em vez de leite”, contou. “Havia também os sorteios de panelinhas e era engraçado ver as pessoas que passeavam com elas nas mãos depois de as terem ganho”, acrescentou.
No entanto, o mais importante para si foi precisamente as emissões da RTP. Nessa altura, com 10, 12 anos, Júlio já ia à Feira Popular sozinho e permanecia a observar aquilo que viria a ser a sua “vida”. “Eram as sessões experimentais da televisão! Portanto, assistia a um trabalho feito ao vivo de profissionais que mais tarde viria a conhecer, também já a trabalhar na televisão. Lembro-me do Fernando Pessa, da Vera Lagoa, enfim...”, lembrou, sublinhando ter muito boas memórias da antiga Feira Popular, que para si será sempre a “única”.
A “migração” da feira
A Feira Popular de Lisboa manteve-se em Palhavã entre 1943 e 1956 e, a 24 de junho de 1961, abriu em Entrecampos, onde permaneceu até 2003.
“Nasci em 1994, por isso, quando a feira fechou em 2003, tinha uns oito aninhos. Contudo, recordo-me bem dos momentos que lá passei!”, afirmou ao i Vicente Oliveira. Ficava “doido” quando sabia que ia para lá: “Era uma alegria andar nos carrosséis todos e, fica-me muito na memória o algodão doce. Tão nostálgico pensar nisso. Se me perguntam qual foi um dos meus sítios preferidos no princípio da infância é a Feira Popular de Lisboa que me vem imediatamente à memória. Era como ir à Disneylândia. Fiquei muito triste quando soube que ia fechar”, lamentou. Até porque, segundo o jovem, atualmente com 27 anos, era também um ritual de família. “Eu só morava com a minha tia, mãe, prima e avó. Mas tinha muitos primos em Angola. Eles vinham nessa altura e fazíamos esse tipo de programas familiares. Estávamos juntos! E felizes! Comíamos churros, jogávamos todos os jogos, tentávamos ganhar peluches. E depois os carrosséis, as montanhas russas. Era uma excitação brutal, mas o que me fazia realmente brilhar os olhos eram os carrinhos de choque. Delirava por saber que os ia conduzir”, explicou.
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