26.2.22

Grande Angular – Purificação

Por António Barreto

Da guerra se diz que purifica. Tal como as tempestades e as grandes chuvas que, depois de passadas, deixam o ar puro, as terras lavadas e os espíritos serenos, também as guerras teriam esse efeito redentor de eliminar o acessório e destruir a poluição política, concentrando no essencial e obrigando as pessoas a tomar partido pelo que é importante, clarificando e esclarecendo. Não é verdade. A guerra é odiosa, mata e envenena. Destrói e deixa feridas incuráveis. Vidas, famílias, casas, cidades e países: nada é poupado. Civis e soldados, novos e velhos ou culpados e inocentes: todos são atingidos. É verdade que há guerras justas e de libertação, bem diferentes das injustas e de opressão ou conquista. Mas, na sua maioria, são feitos macabros de violência e irracionalidade. Uma guerra põe entre parêntesis o que de melhor tem a humanidade: a moral, o direito, a bondade, o belo e o amor. Para já não falar da razão e da justiça.

Pode especular-se muito, mas não se sabe quanto tempo vai durar esta guerra, a quantos países poderá alastrar, quantas serão as suas vítimas mortais, quanto vai ser o sofrimento, nem quanta vai ser a destruição infligida às pessoas e às cidades. Mas sabe-se que tem na origem a desmedida ambição de um déspota e de uma elite política.

Esta guerra, iniciada, feita e conduzida pelas piores razões, não escapa a uma das suas regras: depois da destruição, nada ficará melhor, a não ser o poder bruto de alguns. Parece ser verdade que a Ucrânia mantinha em deliberado atraso social e económico as regiões ditas “separatistas”. É também verdade que a Rússia se sentia cercada e ameaçada pelo democrático, isto é, pelo crescente número de membros da aliança inimiga, a NATO de todos os pesadelos russos e soviéticos. São 14 (em 30) os antigos comunistas hoje membros da NATO. Mas nada disso justifica a guerra.

A Rússia recupera a sua posição no mundo: uma das grandes potências. Era a situação em que se encontrava a grande Rússia czarista e a Rússia soviética. Desde o fim do comunismo, da Guerra-fria e do muro de Berlim, a Rússia entrara num processo de decadência absoluta: o seu poder político a diminuir, o seu poder militar definitivamente ultrapassado pelo dos Estados Unidos e o seu poder económico superado pelo da China. A sua projecção no mundo esbateu-se e, ao contrário da China, o número de países seus clientes e satélites foi reduzido à mais ínfima espécie. A humanidade olhava para os Estados Unidos e a China, por causa poder. Para a Europa, pela cultura e as férias. Para a China, ainda, pelo trabalho industrial. Da Rússia, repetidamente humilhada, nada mais se esperava. Mas foram dez ou vinte anos minuciosamente aproveitados para refazer uma potência, para afirmar o poderio do gás e do petróleo e para intervir em conflitos periféricos. 

O ditador Putin revelou uma enorme plasticidade sem escrúpulos, um empirismo sem remorsos nem dogmas ideológicos. Tentou a parceria com os Estados Unidos, o que Trump estava disposto a conceder, mas a derrota eleitoral deste último desfez os seus sonhos. Virou-se para Xi Jinping que aceitou o ridículo mas utilíssimo papel de “compère”. Nada de muito perigoso, mas o efeito foi devastador.

A China e a Rússia, condenadas desde sempre a desentender-se e a rivalizar, encontraram finalmente uma plataforma temporária, débil, aparente, mas que mete medo. Aquelas duas grandes nações, que, como impérios ou como ditaduras comunistas, sempre se desafiaram, encontraram forma de aterrar o mundo e dizer aos Estados Unidos que já não estavam sozinhos no comando. E sobretudo de dizer à Europa que esta já não contava.

Talvez convenha não esquecer umas breves lições que se podem retirar para já. A Europa paga muito caro a sua insignificância militar. A sua decisão, com várias décadas, de ficar dependente dos Estados Unidos e de privilegiar sempre a despesa social, em detrimento da defesa, tem enormes e negativas consequências.

A decisão europeia de se deixar amarrar a uma excessiva dependência energética da Rússia (e de outros…) retira liberdade e põe em perigo a autonomia europeia e dos respectivos países. A aceitação do domínio absoluto dos Estados Unidos na área da defesa ocidental teve consequências aflitivas, a começar pela subalternidade do nosso continente.

As múltiplas decisões europeias de se deixar arrastar para uma absoluta dependência industrial relativamente à China ajudaram à vulnerabilidade da Europa e das respectivas democracias. 

A convicção europeia (e americana) de que a Rússia estava definitivamente de joelhos e de que era possível pôr em prática uma estratégia absoluta de cerco e de alargamento da NATO até às suas fronteiras revelou-se perigoso erro.

Quando substituem o diálogo e a cooperação, quando são pobres alternativas à força da negociação, as políticas de acatamento e conciliação são perigosíssimas. A Europa compactuou com as ditaduras russa, chinesa, árabes e africanas para além de todos os limites da decência democrática. O realismo político tem muitas vezes destas surpresas: vira-se contra nós. A excessiva voracidade do capitalismo e da democracia ocidental têm consequências: os cleptocratas não são apenas dependentes, são também ameaçadores.

A crença europeia e americana em que é ilimitada a capacidade de diálogo e cooperação com as ditaduras está a dar resultados nefastos: os ditadores pensam que é possível abusar e que a interdependência lhes é favorável. Até os financeiros do terrorismo internacional consideram a Europa um continente afável e complacente.

Sem democracia, repousando sobretudo na cleptocracia, o governo russo conseguiu fazer uma caminhada com apreciável êxito. Não para a democracia, com certeza, mas para a recuperação do lugar da Rússia no concerto das potências. 

A Rússia de Putin ficará na história como um caso de êxito de planeamento estratégico furtivo. Durante décadas, dezenas de decisões inofensivas prepararam o regresso do país à primeira fila mundial. As infra-estruturas espaciais e os projectos multilaterais fazem parte desse plano. Tal como a espionagem e a intrusão digital. A exploração e a exportação de gás e petróleo, transformando o país no segundo maior produtor do mundo, imprescindível para um grande número de países europeus democráticos, foram as armas económicas que sustentaram uma política. O armamento foi outro trunfo: está a ver-se.

Público, 26.2.2022

 

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25.2.22

AUTOCOMPLACÊNCIA

Por Joaquim Letria

A tendência autodestrutiva do capitalismo moderno começa na grande empresa e acaba na perversão das finanças, nos destroços ecológicos, no abandono do investimento público, no crescimento do défice fiscal, na especulação e na destruição da riqueza industrial, no desmoronamento do Estado - Previdência e, finalmente, no desemprego endémico destinado à sub-classe dos desfavorecidos, dos imigrantes,, dos desempregados, dos jovens e dos ex-operários.

A paisagem real é terrível, com a violência, drogas, guetos de miséria urbana de um lado, uma minoria de privilegiados, capaz de aforrar mais de metade do rendimento nacional, do outro.

A cultura da satisfação, ou auto-complacência, como lhe chamava Galbraith, converteu-se em sistema, com a sua antropologia, a sua moral própria, ou falta dela, a sua filosofia apressada, os seus aparelhos e as suas influências externas.

Hoje, a cultura da satisfação é dominante à escala mundial. O único alívio que se pode encontrar para as nossas preocupações acerca desta cultura da destruição  é o da esperança de que uma maioria activa venha a eleger presidentes, governos e líderes que se comprometam com os reais problemas e autênticas necessidades humanas.

Publicado no Minho Digital

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24.2.22

E a Espanha aqui tão perto!

Por C. B. Esperança

É escasso o relevo dado pelos media portugueses à Espanha, sobretudo no que respeita à política, apesar do mimetismo que pode contaminar os partidos portugueses homólogos.

O maior partido da oposição e um pilar do regime democrático, embora oriundo do franquismo, tem dado o triste espetáculo de associação pouco recomendável, a ameaçar desfazer-se na praça pública. 

Anteontem, às 15 horas, o líder do PP anunciou a demissão. Ontem, Pablo Casado, no 41.º aniversário do último suspiro do fascismo – o golpe de Estado de 23 de fevereiro de 1981 –, demitiu-se e abandonou solitariamente o Parlamento.

Não bastava a corrupção que atingiu todos os níveis do PP. Pablo Casado, líder que ora deixa o cargo, entrou em conflito com a estrela rival, Isabel Díaz Ayuso, presidente da Comunidade de Madrid. 

Enquanto Isabel Díaz Ayuso o denegria, Casado encomendou uma investigação à principal opositora interna, que governa apoiada pela extrema-direita, e revelou que teria pagado ao irmão a comissão de 288 mil euros na encomenda de máscaras Covid. A violência dos ataques mútuos desfez a reputação de ambos, e muitos eleitores migraram para o partido fascista VOX, e alguns outros, os que decidem eleições, para o PSOE.

Os barões do PP, desde a tralha de Aznar aos mais respeitáveis, amedrontados com as sondagens, retiraram sucessivamente o apoio a Pablo Casado, para evitarem ao partido que fizesse haraquíri em público, obrigando-o a demitir-se, enquanto os colaboradores iam abandonando o barco que se afundava e o isolaram.

O PP, em risco de implosão, voltou aos tempos de crise profunda da Aliança Popular, de onde nasceu, após a demissão de Fraga Iribarne, e das sucessivas vitórias do PSOE nas eleições gerais de 1982 e 1986.

A entrada na UE fez com que o partido modelado pelo franquista Fraga Iribarne, e que Aznar levou ao poder, se tornasse mais democrático, tendo Mariano Rajoy introduzido a moderação dos homólogos europeus, enquanto a corrupção herdada do franquismo continuou a miná-lo.      

A demissão de Casado não cura as feridas internas, mas permite que outro/a líder venha dar um rosto à oposição de direita não fascista.

As últimas sondagens, com o VOX a ultrapassar o PP, alarmaram os barões que ditaram a demissão de Pablo Casado.

Se as convulsões no seio do PP eram um seguro de vida para o PSOE, agora abre-se um novo ciclo que definirá a geografia eleitoral no país vizinho. 

Ponte Europa / Sorumbático  


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19.2.22

Grande Angular - Imperdoável

Por António Barreto

O episódio foi grotesco. Ainda um dia se encontrarão os culpados. Partidos? Funcionários? Juristas? Burocratas? Quais? Quem? De que ministério? Com que funções? Quem respeitou e quem agiu contra a lei? De tudo isso se saberá um dia, um pouco, talvez nunca…

Sobra a recordação de um episódio raro na história de Portugal, da Europa e da democracia. Foram cento e cinquenta mil votos anulados, cento e cinquenta mil pessoas que se deslocaram para adquirir os meios de votar, que tinham a certeza de ter satisfeito um direito, que sabiam ter cumprido um dever, que sentiam pertencer a um país, que se identificavam com milhões de outros como eles, que esperavam contribuir para a formação de um parlamento, que queriam ter um representante seu e que deram o seu veredicto para formar um governo! Apesar da repetição, o episódio está aí, claro no seu significado, turvo no seu sentido.

O que aconteceu não deveria ser esquecido. Nem perdoado. É mau que não se conheçam responsáveis, mas é quase fatal que assim seja. Péssimo é que não haja correcção pronta. Muito desta lei necessita ser alterado, mesmo que não se consiga o mais importante que seria adoptar o sistema uninominal. Mas o incidente teve a consequência feliz de permitir uma vez mais olhar para a nossa democracia e para as suas deficiências.

Os emigrantes não votam nos seus círculos de origem, mas sim em fantasmagóricos círculos “Europa” e “fora da Europa”! Não votam nas eleições autárquicas. Têm apenas o direito a quatro deputados, qualquer que seja o número de inscritos. Padecem de representatividade e de proporcionalidade. Sem comunidade de pertença, sem identidade, um deputado da emigração pesa pouco, mas vale milhares de votos mais do que um deputado nacional.

A história do voto reflecte a tradicional maneira de olhar para a emigração. Tanto durante o Estado Novo como com a democracia. Ninguém gosta de olhar para a emigração. Todos têm um sentimento de culpa. Se há emigrantes é porque o país não chega ou porque se vive mal. Assim é que na ditadura quase se escondia a emigração, até porque alguns eram jovens que não queriam fazer a guerra. Uma grande parte da emigração fazia-se “a salto”, clandestinamente, sem passaporte. Pensar ou estudar a emigração era meio caminho para reparar na pobreza dos campos, na falta de trabalho e na indústria incipiente. Por outro lado, as más condições de vida no estrangeiro eram suficientes para avivar o incómodo das autoridades e dos que ficavam em Portugal. Chegou-se a proibir livros e artigos sobre a emigração. Só que… As remessas dos emigrantes passaram a ser a maior fonte de divisas entradas no país. Foi um descanso para a balança de pagamentos. Além de que, na década de sessenta, foi a emigração que aliviou a questão social.

Depois, a emigração diminuiu. Por vários motivos: mais emprego, mais indústrias, mais oportunidades, condições europeias menos favoráveis, o fim da guerra colonial e outras razões fizeram com que a emigração diminuísse. As remessas continuavam, agora superadas pelas receitas do turismo. Nos anos 90, assistiu-se mesmo a um incrível aumento da imigração. No início do século XXI, mais de 5% da população a residir em Portugal era estrangeira. Pouco tempo depois, a prosperidade desapareceu. Muitos estrangeiros foram embora. O número de portugueses emigrantes voltou a crescer. Quase sem medida, como durante as crises financeiras e o período da Troika. Em certos anos, o número de emigrantes ultrapassou os 100.000, coisa só vista durante a ditadura. A emigração é hoje, novamente, o retrato de um país insuficiente.

A emigração portuguesa raramente é vista como sinal de progresso e de procura de oportunidades. É outrossim olhada como sinal de pobreza e de carência. Desde sempre, no espaço público, se associa a emigração a drama e incerteza… 

Politicamente, a reputação da emigração é muito ambígua. Por um lado, é vista como diáspora, saudade, orgulho, por vezes até grandeza no mundo, espírito de aventura e capacidade de adaptação. Por outro lado, os emigrantes são vistos quase sempre como gente de direita, oportunistas, de mau gosto, convencidos. Mas, para ambas perspectivas, são sempre fontes de receita.

Desde 1975 que os legisladores, as autoridades, os governos e os partidos sempre hesitaram quanto aos direitos e deveres a atribuir aos emigrantes. Eram bons para as romagens de saudade, visitas eleitorais, comprar produtos portugueses e para discursos demagógicos sobre o regresso a Portugal. Mas, quando se chegava às eleições e aos direitos dos emigrantes, as coisas ficavam feias. O sentimento prevalecente do legislador era o de desconfiança. Podem aldrabar os cadernos eleitorais, dizia-se. Podem corromper os funcionários dos consulados, pensava-se. Votam com os ricos estrangeiros, suspeitava-se. Têm a tendência para votar muito mais à direita do que os nacionais, temiam uns. É muito fácil organizar o “cambão”, o “cambalacho” e a “chapelada” eleitoral, imaginavam todos. Assim é que os números de eleitores inscritos começaram muito baixo. Já foram menos de 50 000, são hoje mais de um milhão e meio! A participação eleitoral é geralmente reduzida, pode ser de cerca de 10% ou 20%. Na verdade, o direito de voto dos emigrantes foi concedido “a ferros”. Além dos argumentos acima aduzidos, convém não esquecer uma ameaça que habita os sonhos dos nossos legisladores: e se o voto da emigração fosse decisivo para eleger o Presidente de República ou a maioria parlamentar e o governo? Como é possível deixar a capacidade de decisão nas mãos de emigrantes?

A dúvida e o medo inspiraram o legislador. O voto dos emigrantes foi sempre considerado perigoso, dado a aldrabices e facilmente manipulável. Começou por ser limitado. Quando já não era mais possível eliminar tantos eleitores potenciais, alargou-se o direito às eleições presidenciais e depois aceitou-se a “inscrição automática”. Mas os procedimentos complicaram-se. Verdade é que chegámos ao facto inédito de anular 150 000 votos, ter de repetir uma eleição, deixar arrastar um parlamento eleito mas não em funções, adiar um governo e protelar um orçamento.

Mas o pior de tudo isto é a maneira como se tratam os emigrantes. Como se receiam estes portugueses, como se detestam estes cidadãos e como se desprezam estes trabalhadores, aos quais se pede sempre e sobretudo uma coisa: remessas!

Público, 19.2.2022

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17.2.22

Eleições legislativas 2022 e as perdas da Esquerda

Por C. B. Esperança

Os 11 deputados conquistados pelo PS, tendo o Livre recuperado o seu deputado, foram insuficientes para segurar na área da esquerda os 20 deputados que esta perdeu (BE-14 + CDU-6). Há agora mais 9 deputados na direita, com a agravante de o partido fascista ter mais 11 e os neoliberais mais 7, e ambos tinham 1 único deputado.

Resumindo, a esquerda perdeu para a direita 9 deputados e a direita democrática, depois dos deputados ganhos à esquerda e das trocas internas, perdeu mais 9 deputados (PSD – 1; CDS – 5; PAN – 3), para o partido neoliberal extremista e o fascista, que adicionaram ainda os 9 que a esquerda perdeu.

Esquecendo tolices avulsas, como a que definiu como partidos de extrema-esquerda, alem do PCP e BE, o PAN, aliado, nos Açores, ao PSD e ao partido fascista, para evitar o Governo liderado pelo PS, que, na linguagem da direita, ganhou as eleições (o mais votado), como se estas não fossem para a Assembleia Regional e fossem para o Governo da RA.

PCP e CDS, ainda que afetivamente deixem emoções diferentes, são dois partidos que fazem falta ao regime democrático, o primeiro para equilíbrio do regime e organização sindical, e o segundo para evitar o crescimento do partido fascista e do neoliberal, este o mais jurássico da Europa, ainda a defender a taxa única de IRS, independentemente dos rendimentos que cada cidadão aufere.

Quanto à erosão eleitoral do PCP, li um inteligente artigo do lúcido comunista, Carlos Brito (Público, 10-02-2022). PCP e BE deram a maioria absoluta ao PS.

Em relação ao CDS, há muito que o partido se vinha a afastar da matriz ideológica dos conservadores e demo-cristãos europeus. Nuno Melo e Manuel Monteiro já tinham rompido a fronteira que o separava do fascismo, mas poderia sempre regressar ao lugar de onde partiu.

Em resumo, a esquerda perdeu deputados e na direita é assustadora a dimensão que os extremistas atingiram.

Apostila – A atual maioria é a 6.ª maioria absoluta em democracia e não parece que seja pior do que as 5 anteriores, duas da AD, duas do PSD e uma do PS, sem contar as maiorias absolutas PSD + CDS). Aliás, os governos só são estáveis com maiorias absolutas: de coligação, de um só partido ou de geometria variável, as últimas de duração incerta.

Ponte Europa / Sorumbático 

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12.2.22

Grande Angular - As fronteiras da democracia

Por António Barreto

Muitos democratas têm medo do Chega. Têm medo de ver este partido aumentar a sua popularidade e ganhar importância. Têm medo do fascismo e do populismo. Receio de que o Chega utilize sentimentos comuns de insatisfação perante realidades bem conhecidas. Medo de que o Chega utilize o descontentamento de muitos para dar corpo e voz às suas elucubrações demagógicas.

Os democratas sabem que há corrupção, favoritismo e desigualdades a mais. Mas entendem que eles e só eles podem denunciar tais fenómenos. E não querem que “outros” o façam.

O medo é mesmo mau conselheiro. Em vez de combater os populistas com argumentos, melhores políticas e bom comportamento moral, em vez dessas armas, os democratas recorrem ao insulto, às tentativas de exclusão do espaço público e à discriminação. Quem toma esta iniciativa são radicais de esquerda, mas os democratas aderem a essa retórica destituída de razão.

Os democratas sabem que o Chega (tal como os seus similares na Europa) invoca argumentos verdadeiros (corrupção, nepotismo, desigualdades, burocracia…) para defender as suas ideias fantasmagóricas. Ou tão só para seduzir pessoas que sintam os mesmos problemas. Mas os democratas não admitem que sejam outros a reclamar.

Os democratas escondem os erros de que são responsáveis. Ou entendem que podem ser denunciados, desde que por eles. O que mais custa aos democratas não é que os populistas sejam demagogos. O que lhes custa é que por vezes denunciam factos reais.

A democracia é o regime de todos. Mesmo dos não democratas. Estes não podem ser excluídos, marginalizados ou proibidos a não ser por crime ou violação de lei. Mas a demagogia não é crime. A xenofobia não é crime. O nacionalismo não é crime. Por isso o Chega e afins devem ser derrotados nas eleições e no debate, não através de procedimentos anti-democráticos. Devem ser democraticamente derrotados, por mais excêntricas que sejam as suas ideias. Perante o recurso à violência, ao crime ou a ilegalidades, devem ser castigados pela lei e pela democracia.

Há pessoas que entendem que as democracias são os regimes exclusivos dos democratas. E que os não democratas ou anti-democratas devem ser excluídos! Mas não se conhece nenhum meio democrático de o fazer. A não ser, uma vez mais, através do combate político, das eleições e do argumento parlamentar. Nas democracias não vivem só democratas encartados. Vivem também antidemocratas. Da esquerda ou da direita.

A democracia é o regime de toda a gente. Os democratas podem defender-se. A si e ao regime das liberdades. Para isso, devem utilizar todos os métodos democráticos, o debate, as eleições e a justiça… Todos menos a expulsão, a prisão, a proibição e a censura.

As democracias não têm fronteiras. Não é admissível que os democratas estabeleçam fronteiras para além das quais não são aceites certos cidadãos, partidos ou movimentos. Evidentemente, ninguém é obrigado a entender-se com os não democratas e os antidemocratas. Talvez não sejam boas companhias. Mas não podem ser expulsos das instituições. A não ser que não respeitem a lei.

O Chega tem o direito de apresentar um candidato à vice-presidência da Assembleia da República. Esse direito está protegido pela Constituição e pela lei. Qualquer partido tem o direito de apoiar ou reprovar essa candidatura. Mas não há certeza da eleição. A opinião de um partido não implica que os deputados a sigam. A eleição é secreta e individual. Se a maioria dos deputados considerar que um certo candidato não serve para o cargo, o seu direito é o de votar contra. Se a maioria dos deputados não aceita um candidato, é lá com eles. E as direcções dos partidos, podem tentar influenciar, mas não impor disciplina numa votação secreta.

Aliás, várias vezes candidatos aos cargos da Assembleia ou a funções em que a Assembleia se faz representar não foram eleitos à primeira volta ou mesmo nunca foram eleitos. O voto secreto e individual, mesmo numa Assembleia dominada pelas direcções partidárias, ainda vale alguma coisa.

Parece por outro lado que o Chega deseja alterar profundamente a Constituição. Os democratas consideram antidemocrático esse desígnio. É uma patetice. Há partidos que votaram contra a Constituição e as suas revisões. Há deputados que chegaram a sugerir que a Constituição fosse substituída por outra. E há centenas de deputados que votaram sete revisões, duas das quais alteraram os equilíbrios políticos do país. Para tudo isto, foi necessário querer alterar a Constituição, sem que daí viesse mal ao mundo, a não ser os eternos comunistas que alertavam contra os “golpes constitucionais”.

O êxito, aliás muito relativo, do Chega tem de ser entendido no quadro das crises que as democracias atravessam. Estas estão na origem de uma deriva populista, não democrática ou antidemocrática, de esquerda ou de direita. No mundo inteiro, a democracia é contestada pelas aspirações insatisfeitas, pela desigualdade crescente, pela sociedade digital, pelos valores dominantes do efémero e pelo produto mercantil. Os sistemas democráticos não encontram soluções para os problemas que levantam e não estão à altura das forças que desencadeiam. Os sistemas democráticos fizeram explodir as aspirações e os desejos, que depois não conseguem satisfazer. É possível que, um dia, estas insuficiências sejam ultrapassadas. Talvez. Mas, para já, vivemos em crise.

A democracia parece ter deixado de ser uma aspiração e um objectivo de luta e de vida. Para muitos, a democracia transformou-se num obstáculo, seja à riqueza e à ganância, seja ao poder. Os milionários e os políticos poderosos querem a democracia quando esta lhes dá meios. O novo tribalismo de que tantos falam faz com que as sociedades ocidentais estejam divididas como raramente na história. Nuns casos, países divididos ao meio. Noutros, fragmentados por autênticas guerras civis locais, como dizia Enzensberger.

Os partidos radicais de direita e de esquerda nunca fizeram a democracia. Destroem-na, com certeza, mas não a constroem. Fazem parte da democracia, mas não a consolidam. Antes pelo contrário. Mas a democracia é o regime de todos eles. A democracia é o regime de poucas dezenas de países e não o é de mais de uma centena. Em África e na Ásia e até por vezes na América Latina e na Europa, o regime prevalecente não é a democracia. Em Portugal, também não era. Talvez agora possa começar a ser gradualmente…

Público, 12.2.2022

 

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10.2.22

João Miguel Tavares (JMT) e a sanha da direita tesa

Por C. B. Esperança

O nome em epígrafe pouco dirá aos leitores, salvo a quem lê o Público, onde o escriba tem lugar cativo na última página pela quota da direita que faz fronteira com o partido fascista. É conhecido, se disser que é o orador medíocre e reacionário que o PR alugou para as comemorações de um 10 de Junho itinerante entre Portugal e Cabo Verde.

O plumitivo, na sequência de toda a direita jurássica, que não confundo com a fascista, continua a cruzada contra Sócrates, ainda não julgado, e contra quem for seu amigo.

A vítima escolhida por este avençado demagogo é agora a deputada Edite Estrela, cujo crime, segundo o delator, é ser amiga de José Sócrates. A presunção de inocência não é motivo que apoquente consciências oriundas do madraçal de Cavaco e Passos Coelho, e a amizade de pessoas de esquerda é algo que tem de passar pelo crivo exigente dos que, não tendo idade para terem sido salazaristas, sentem a nostalgia do PàF.

A eventual indigitação de Edite Estrela para presidente da AR será uma afronta, não por ter sido uma excelente autarca em Sintra, o terceiro maior concelho do País, não por ser uma mulher culta e se exprimir em bom português, não por ter sido uma boa deputada e eurodeputada, mas por ser amiga de José Sócrates.

Não vale a pena explicar à ralé da ética e da decência que o facto de o PR ser amigo de Ricardo Salgado, amizade que o seu sentido ético e afetivo reivindica, não o diminui na honra e dignidade, como a Edite Estrela a não belisca a amizade de Sócrates, ainda que os Tribunais o venham a condenar.

O que não diz JMT, o que esconde o dissimulado zelador da ética, é o incómodo que lhe causa Edite Estrela, com currículo político e cívico, por ser mulher, culta e, sobretudo, apoiante de António Costa quando os adversários internos percorriam os diversos canais televisivos a denegri-lo por aceitar o apoio parlamentar do PCP, BE e PEV.

Falta a JMT, guardião da ética e da honestidade, cujo convite do PR para orador do 10 de Junho mediatizou, por ser um erro de casting, a qualidade cívica, moral e intelectual de Edite Estrela. 

Edite Estrela tem, na minha opinião, mérito para qualquer cargo que o PS lhe reserve, mas é preciso ser democrata para aceitar que os lugares de presidente e vice-presidentes da AR dependem cumulativamente dos partidos proponentes e da vontade dos deputados que os elegem por voto secreto.

Felizmente, não são os adversários que escolhem os titulares dos cargos que resultaram das eleições legislativas. E, muito menos, um protofascista.

Ponte EuropaSorumbático

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9.2.22

No "Correio de Lagos" de Janeiro de 2022

 

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6.2.22

No “Correio de Lagos” de Janeiro de 2022


 I — QUANDO eu nasci, o meu tio Emílio teria uns 35 anos — e digo “teria” porque morreu com seis anos de idade, vítima de TÉTANO. E o pior é que foi uma morte absurda pois, embora nessa altura ainda não houvesse vacina para essa doença (só descoberta uns 10 anos depois), já havia tratamento, só que ele foi parar às mãos de um indivíduo que, numa atitude que vemos repetida um século depois a propósito da COVID-19, desvalorizou o sucedido, mandando-o embora — talvez com um penso de tintura-de-iodo e umas palavras do género de “isso não é nada”.

Mas, na minha família, não foi apenas o Emilinho que não beneficiou da descoberta de uma vacina que, para ele, veio tarde demais: sucedeu o mesmo com uma tia nossa (para quem a BCG, contra a TUBERCULOSE, não veio a tempo de lhe salvar a vida), e com um primo, esse ainda vivo, para quem a vacina contra a POLIOMIELITE não chegou a horas de impedir que tenha uma perna praticamente morta desde a mais tenra infância.

 

II — EM 1998, tendo eu de ir em trabalho à República do Congo, fui informado de que teria de ir já vacinado contra a FEBRE AMARELA, cujo certificado apresentaria à chegada. Então e quem fosse “anti-vacinas”? — pensaria eu, se isso fosse agora. Bem... para esses havia o avião de regresso, a menos que se vacinassem no próprio aeroporto, possibilidade que nem sequer sei se existia.

 

III — EM 2013, estando eu a passar uns dias nos arredores de Sintra, apareceu-me à porta de casa um simpático cão, com toda a aparência de ter fugido ou sido abandonado, conclusão que tirei quando vi que, a fazer as vezes de coleira, tinha um arame retorcido e ferrugento — devia ser um cão-pastor, porque era frequente aparecerem por ali rebanhos de cabras, mas não se via nenhum nas proximidades.

E preparava-me eu para me vir embora quando o bicho, aproveitando um momento de distracção, saltou para dentro do carro, onde se deitou, mostrando bem o que pretendia! Mas o pior veio depois porque, quando tentei pô-lo fora, me mordeu uma mão, fazendo uma enorme ferida e trazendo-me à lembrança imagens de pessoas atacadas por cães raivosos, que acabaram por morrer de uma morte atroz. Então, em pânico, corri para o veterinário mais próximo, onde, apesar de confirmarem que o cão não tinha ‘chip’, me sossegaram, afiançando-me que a RAIVA era uma doença já erradicada em Portugal devido à vacinação obrigatória que já existe há muitos anos.

 

IV — MAS ESSES são apenas alguns casos que me vêm à mente quando, hoje, os “filhos mimados de uma sociedade de abundância” desvalorizam doenças e vacinas, pelo menos até ao dia em que o mal lhes calha a eles — nem que seja sob a forma de um prego ferrugento, levando-os a correr para um posto médico, onde lhes será perguntado se a vacina do tétano (que certamente tomaram) ainda está na validade.

Ora, para ilustrar estas pequenas notas autobiográficas, hesitei entre este cartune e um outro, que mostra um “náufrago do deserto” arrastando-se, morto de sede, por entre as dunas do Sahara, e que vê, ao longe, um oásis com água fresca. Sentindo-se salvo, ganha novas forças, mas de súbito hesita, e a legenda explica porquê: é que ele interroga-se, apreensivo, se lá haverá “água com gás”! 

Esses desenhos parodiam a situação absurda que bem conhecemos: num mundo com sete mil milhões de habitantes, onde porventura a maioria não tem (nem terá em tempo útil) acesso a qualquer vacina, há quem se dê ao luxo de desprezar a que a sociedade lhe oferece gratuitamente, ou faça finca-pé na escolha de um determinado fabricante — como no caso do indivíduo que prefere morrer de sede a beber água que não seja a da sua preferência.

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5.2.22

Grande Angular - O que quiser

Por António Barreto

O PSD perdeu, não muito, de acordo com os números, mas muitíssimo politicamente. Vai demorar anos a recompor-se. Sobretudo se o PS governar bem. O mais provável é que haja metamorfose. Até porque a inexorável derrota do CDS, assim como as vitórias do Chega e dos Liberais, abriram a questão da reorganização das direitas. A direita está fragmentada e anémica, à procura de rumo. Sem base social, descrente, o centro-direita está incapaz de iniciativa. Quanto à direita radical, nacionalista e reaccionária, é menos ameaçadora do que se temia. E parece estar pronta a ser integrada no sistema.

Os partidos mais radicais da esquerda, o PCP e o Bloco, sem esquecer o PAN e Os Verdes, estão derrotados e aparentemente sem remissão. Pode haver transfiguração, mas, no essencial, estes partidos pertencem ao passado.

As facções radicais do PS ficaram desarmadas. O eleitorado condenou as aspirações a mais esquerda e aprovou uma política moderada e independente.

Aquilo a que se chama vulgarmente a co-habitação, isto é, a cooperação honesta entre o Presidente da República e o Governo, parece estar assegurada. Nenhum dos dois tem interesse em hostilizar o outro. Só não colaboram se não quiserem. Esta cooperação não depende de grupos de interesses, nem está condicionada por intrigas. Nas actuais circunstâncias, só depende dos dois e do seu sentido de dever e de serviço público.

As organizações de classe, federações, sindicatos e associações já perceberam que têm todo o interesse em usufruir da estabilidade, em proporcionar crescimento à economia e em abrir as portas a novos esforços. O percurso que levou o país de Sócrates à bancarrota, da crise financeira à Troika e da coligação das esquerdas à pandemia deixou as instituições e as empresas exangues. É evidente que todos devem defender os seus interesses, ainda bem. Mas todos sabem que uma nova turbulência destruirá o nervo do país.

A reputação internacional de Portugal, do governo e do Primeiro-ministro está em níveis elevados. Na União, na OCDE, no FMI, na NATO e na CPLP, o país e os seus dirigentes são geralmente bem acolhidos. O que também é verdade nos continentes americano e asiático. Nas últimas décadas, nem sempre foi assim. É bom e útil aproveitar o clima.

Há sinais de recuperação económica e de melhorias na exportação, no desemprego e no consumo. E talvez no turismo, a breve prazo. As perspectivas de apoio financeiro europeu são, como se sabe, excelentes, apesar do perigo que representa mais esta hipótese de financiar o país com recursos externos. Globalmente, a conjuntura económica e financeira, nacional e internacional, não é desfavorável, desde que, evidentemente, seja aproveitada com as boas políticas e com sinais de seriedade nas contas e nos projectos.

Nem tudo é possível. E é quase tudo difícil. Na economia, na sociedade e nas políticas públicas. O volume colossal de endividamento é impeditivo de muitos projectos e condiciona as políticas. A fraqueza dos recursos financeiros nacionais limita o campo do possível. O envelhecimento da população constitui factor condicionante ameaçador. A desigualdade social é factor de desmoralização. O desolador estado em que se encontra a justiça destrói as instituições e o espaço público. Tudo isso é verdade. Mas as dificuldades são menores quando se sabe que as condições políticas são favoráveis. Quando se conhece a disposição de grande parte do eleitorado. E quando é alta a probabilidade de paz institucional.

O Primeiro-ministro pode ter a certeza de que, por um tempo, o vento sopra a favor e as ameaças de tempestade são irrisórias. Os partidos que perderam (PCP, Bloco e PAN) já anunciaram o reforço das lutas de massas, o regresso à rua e a contestação de classe. Só que as massas, a rua e as classes não estão dispostas a isso. Um dia, talvez, caso o governo revele tibieza e desonestidade. Mas, para já, os eleitores e os contribuintes, assim como os profissionais, os funcionários e os pensionistas, querem paz e desenvolvimento.

Parece uma ironia. Muitas vezes, um político quer mas não pode. Está convicto do que quer, das suas boas políticas e dos objectivos, mas não tem condições. Não tem votos nem aliados, a luta de classes impede e as circunstâncias internacionais são desfavoráveis. Perante isto, ou muda de intenções ou abandona. Com António Costa, com o seu governo, acontece o contrário. Pode fazer o que quer, pode fazer quase tudo o que deve, pode levar a cabo um enorme plano de reformas e pode pôr em prática as políticas públicas mais necessárias. Pode. Mas não sabemos se quer.

Se quiser encaminhar os esforços para promover o investimento, para atrair financiamentos externos, para entusiasmar a empresa privada e para fomentar o crescimento, sobretudo o das exportações, pode fazê-lo.

Se estiver disposto a repensar as condições de coexistência da saúde pública e da privada, e da educação pública e da privada, conseguirá reunir as condições necessárias para reformar estes sectores em situação tão frágil.

Se quiser, poderá combater a desigualdade com o crescimento, a produtividade, o investimento, o controlo da imigração e a política fiscal. E se quiser também, poderá repensar o Estado social, com menos burocracia e com especial cuidado para a pobreza.

Se quiser manter altas as expectativas e elevada a atenção que lhe dedicam, o Primeiro-ministro terá de finalmente levar a cabo uma longa e paciente demolição das condições de corrupção e nepotismo e terá de reduzir à ínfima espécie a nomeação de correligionários. Raramente se viveu uma situação como esta, tão propícia à moralização da vida pública. O facto de o partido lhe dever mais do que ele ao partido faz com que tenha as mãos livres para a boa causa da isenção e da decência na Administração Pública. Se quiser, evidentemente.

O Primeiro-ministro sabe que a distância aos interesses organizados e aos grupos de pressão lhe permitirá, se quiser, encontrar a sabedoria suficiente para tentar resolver os “bicos de obra” que já envergonham o país: o aeroporto de Lisboa, a rede ferroviária, a CP e a TAP.

António Costa sabe que muito do que deve e pode fazer para acudir aos problemas actuais entra em contradição com muito que fez anteriormente, nestes últimos quinze anos. Se ele quiser vencer, perceberá depressa que tem de se dissociar e distanciar dos seus próprios erros. Como ele soube tão bem fazer com o legado de Sócrates e de Passos Coelho. É o que ele terá de fazer com o seu próprio legado. Se quiser.

Público, 05.2.2022

 

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4.2.22

AVELINA

Por Joaquim Letria

«Por que raio escreve você  agora no Minho Digital?!»

É com este caloroso cumprimento que alguns conhecidos meus festejaram o início da minha colaboração com o jornal do meu amigo Manso Preto.

Claro que não tenho satisfações a dar-lhes, mas sempre vou dizendo que é por me apetecer, por gosto e porque ninguém tem nada com isso. Mas se tivesse que apresentar justificações mais profundas também o poderia fazer. Mas era o que faltava!

Agora aqui só para nós, que ninguém nos ouve, posso falar-vos  da minha Avelina, uma mulheraça que me encheu de Alto Minho desde a minha nascença. E me moldou para a vida e me divertiu  como nunca mais ninguém o fez, Avelina, minha querida, minha amiga, minha camarada, minha quase mãe.

Quando nasci, a minha mãe, violinista de orquestra sinfónica com 24 anos de idade, morreu com um ataque de eclâmpsia, doença que hoje em dia poucas parturientes mata, felizmente. Fiquei a berrar numa gaveta aberta de lençóis de cama que serviu de meu primeiro berço, no improviso da aflição que foi o início do amor dos meus avós a quem tudo devo. A minha avó nem hesitou:

-Temos de lhe arranjar uma ama de leite!


Foi assim  que a Avelina desembarcou em Lisboa com a minha irmã de leite Esmeralda ao colo, proveniente do Alto Minho, onde amigos da minha família a desencantaram para me dar de mamar. Mamei  nas tetas da Avelina até começar a comer papas e mioleiras e me nascerem os primeiros dentes.  A Avelina ficaria então ao serviço da nossa casa até se tomar de amores por um motorista da Carris com quem embarcou para Angola, tinha eu 14 anos.  

A Avelina era duma aldeia do Alto Minho que não nomeio para não ser indiscreto e tinha engravidado do pároco que ali também tratava das almas. Logo a família e devotas senhoras trataram de pôr a moçoila a andar para não haver escândalo e terá sido assim que ela chegaria a casa da minha família, de mamas cheias e roída de saudades do padre.

Só falo disto agora, e com discrição, pois se a CIA divulga informações sensíveis ao fim de 30 anos, eu penso que posso contar esta história ao cabo de 73, sem magoar ninguém, pois sou o único sobrevivente e decerto que o Senhor a todos já perdoou quando os recebeu no céu, onde me esperam para gozarmos juntos as delícias da vida eterna.

A Avelina encheu-me de arroz de sarrabulho, de rojões, de cozido à minhota, de vinho verde tinto e outros prazeres da vida que perduram até hoje. À  noite, enquanto me fazia companhia quando eu tinha medo do escuro, contava-me histórias de bruxas, de amores e falava-me do Minho até eu adormecer. Escrever aqui é regressar à infância e voltar a encher-me de Minho. Mas não dou satisfações a ninguém por me sentir em casa ao escrever aqui. Era o que faltava!

Publicado no Minho Digital

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3.2.22

A PIDE – Memórias da juventude (Crónica)





Por C. B. Esperança

Quando, em 1961, como professor agregado, fui colocado no Bairro dos Penedos Altos, na Covilhã, não podia imaginar que começaria aí a perseguição do Diretor Escolar a um jovem de 18 anos que, com vencimento de miséria, não tinha sequer direito a assistência médica. Os funcionários públicos só eram assistidos na tuberculose, graças ao desconto obrigatório no vencimento. A ADSE ainda vinha longe.

Ter comunicado que a total ausência de fé me incapacitava para dar aulas de Religião e de explicar o dogma da Santíssima Trindade, levou um padre a substituir-me na aula semanal, obrigatória, de Religião e Moral. Beneficiei de uma hora semanal.

Passei a ser visitado regularmente pelo diretor interino do distrito de Castelo Branco que queria obrigar-me a cortar o bigode, “para não dar maus exemplos aos alunos”, e ficou possesso por lhe retorquir que não seria provável que, na 1.ª classe do ensino primário, os alunos passassem a usar tal ornamento piloso.

O maior confronto sucederia quando reuniu os 45 professores da Covilhã para anunciar que a cidade seria visitada por Sua Ex.ª o PR, almirante Américo Tomás, e que estariam dispensados, e riu alarvemente, os professores com duas pernas partidas. Com uma, iam com muletas, e os seus alunos, alinhados, a bater palmas à passagem de Sua Ex.ª.

Perguntei-lhe se era uma ordem ou pedido, e ficou irado. Perguntou porquê, e disse-lhe, irreverência, que, se era pedido, não acedia e, se era ordem, a queria por escrito. Perante o silêncio dos colegas disse que não iria aturar-me no ‘seu’ distrito. A ordem não veio! 

Chamava-se Manuel da Silva Mendes esse prócere do fascismo, que viria a ser o diretor escolar de Portalegre, presidente da Câmara, depois, e, finalmente, um administrador da Casa da Moeda, em Lisboa. O salazarismo pagava bem aos esbirros que o serviam.

Entretanto, na Covilhã, a companhia de democratas e antifascistas tornara-me o alvo das atenções do comandante da PSP, tenente Gaspar, que mandava um polícia conduzir-me à esquadra, quando terminava a tertúlia com os amigos, no Café Montalto, para me dar conselhos até de manhã. Devia sofrer de insónias, e a intimidação continuou até à minha mudança de cidade e de distrito.

Eu sabia que a Pide, alertada pelo padre Morgadinho, um delator compulsivo, andava a vigiar este “professor novo e atrevido, com cara de idiota”, como o virtuoso clérigo me definiu. Não lhe perdoei que me chamasse novo, já com 19 anos, perto da maioridade. O que não sabia, só viria a sabê-lo muitos anos depois do 25 de Abril, que o execrável governador civil da Guarda também me mandou espiar.

Depois de Alfredo dos Santos Júnior, ministro do Interior quando a ditadura assassinou em Espanha o Gen. Humberto Delgado, o cargo de governador civil, depois da efémera passagem de Luís de Almeida, foi ocupado por Mário Martins Bento Soares, de 1961 a 1967, antes de assumir o cargo de chefe da censura, em Lisboa. 

A Pide vigiava-me há dois anos e o governador da Guarda andava inquieto, comigo e com a minha mãe. Mário Bento Soares, de tanto odiar o honrado homónimo democrata, não permitia que o tratassem por Mário Soares. Deixou cair o apelido paterno e assumiu para todos os efeitos o nome de Mário Bento.

Quando um dia vi que a minha mãe também era vigiada, veio-me à memória o encontro em Lisboa, depois de 28 meses de ausência, por causa da guerra colonial e vi os sulcos que o sofrimento do filho ausente tinha esculpido no rosto, assim como no do meu pai, que ali se deslocaram para me abraçar à chegada.

Lembrar o regime concentracionário da ditadura é um dever cívico.

Ponte Europa Sorumbático

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