Por António Barreto
Tanta gente quer aproveitar a pandemia para ajustar contas! Os argumentos parecem suspiros. Uns dizem com ar compenetrado “Nada ficará como dantes!”, após o que os optimistas mostram como se deve aproveitar para mudar a sociedade e corrigir defeitos, enquanto os cépticos, além do desemprego, antecipam perda de direitos, regresso da censura, aumento da exploração, explosão da dívida e crescimento da desigualdade. Os mais políticos garantem que “é necessário corrigir políticas a fim de evitar outras crises”.
Assim é que não faltam os que querem aproveitar a oportunidade. Uns consideram que é a altura ideal para acabar com o capitalismo. Dado que o Estado tem obrigatoriamente de intervir, depois de resolvidos os problemas, fica por lá e nacionaliza empresas: a TAP, por exemplo, a EDP, a GALP, os bancos e outras. Não se admite, dizem, que o Estado tome conta quando há problemas e saia quando estes estão resolvidos. Como a economia não é tudo, a mesma decisão de centralização assegura o exclusivo do Estado na saúde e a educação. Hospitais e escolas devem ser nacionalizados o mais rapidamente possível, só assim se põe termo à evidente desigualdade de tratamento durante a epidemia.
Por via do comércio de produtos farmacêuticos, de desinfectante, de máscaras, de luvas e de viseiras, esta crise revelou a necessidade absoluta de reexaminar o funcionamento da economia desses sectores: muitos defendem com convicção a necessidade imperiosa de os nacionalizar imediatamente.
Outros afirmam que é o momento adequado para acabar com o racismo. Durante a pandemia, todos têm de ser tratados por igual, o que faz com que os dispositivos de discriminação positiva fiquem em vigor por longos anos. No mesmo ímpeto, os estatutos dos estrangeiros, as autorizações de residência, as portas abertas aos pedidos de refúgio e uma atitude tolerante relativamente à imigração devem entrar imediatamente em vigor.
Outras espécies de cidadãos julgam ter bem percebido a origem da pandemia. É evidentemente do estrangeiro que vem, foi na China que tudo começou e é através das migrações que o contágio se processa. Não restam dúvidas: travão a fundo na imigração e proibição de residência a Asiáticos e Africanos. Há mesmo quem inclua Judeus e Muçulmanos nesta lista de perigos. Segundo estes preclaros defensores da portugalidade, a Nação e a Europa estão em perigo. Salvar uma e outra implica fechar portas e impedir mestiçagens.
Depois há os que querem acabar com a União Europeia. A falta de solidariedade entre europeus, a ausência de um poder democrático e eficiente, o império da Alemanha e das grandes empresas privadas, a influência das maçonarias e os novos costumes fazem com que o “projecto europeu” se tenha transformado num mau serviço prestado aos cidadãos.
Não escondendo um oportunismo de gigantescas proporções, os planeadores e os engenheiros de almas e de sociedades não disfarçam as suas ambições de melhorar radicalmente o mundo em que vivemos. Assim, aproveitar a crise e a emergência para reforçar o poder do Estado, acabar com a desordem urbana, liquidar os excessos de consumo e de lucros são condições para um futuro melhor.
Os partidários de uma racionalidade bem diferente, amigos declarados da autoridade e defensores de uma cuidadosa vigilância, consideram urgente controlar os cidadãos, combater os excessos de defesa da privacidade, registar os movimentos de cada um, vigiar as redes sociais, gravar conversas e seguir os passos de todos: só assim se conseguirá evitar mais contágio e novas epidemias. É urgente, dizem, aproveitar esta oportunidade.
Os pensadores mais abstractos e seguramente mais ameaçadores elevam o tom do debate e consideram, todos os dias nas páginas dos jornais e nos ecrãs de televisão, que é urgente mudar o modelo de sociedade, substituir os valores vigentes e alterar os padrões de consumo. Para esses visionários, só nos salva um novo paradigma de relações sociais e de hábitos! É este o momento!
Infelizmente, em muitos aspectos, as condições excepcionais da pandemia em nada alteraram os debates tradicionais. Os simpatizantes da esquerda apoiam tudo o que for aumento do Estado e eliminação do que seja privado. Os simpatizantes da direita… vice-versa! É um confronto de posições adquiridas, não é um debate político. É um confronto que serve para contar partidários, não para elaborar ideias.
É verdade que da situação actual podem resultar perigos e ameaças. Direitos dos cidadãos ameaçados. Privacidade violada. Trabalho sem protecção. Despotismo dos poderosos no Estado ou na empresa. E mais… Mas não tenhamos dúvida de que grandes perigos vêm dos que querem salvar a humanidade, mudar paradigmas e substituir modelos de sociedade. São esses engenheiros, por ninguém mandatados, intelectuais de boulevard ou da favela, que inventam sociedades e transformam a crise em alavanca. Para eles, a miséria é purificadora e precede o renascimento. A história e a mitologia estão cheias desses momentos de redenção. O mais famoso talvez seja o Dilúvio, inundação planetária contada nos livros do Génesis ou nos Puranas hindus. As Pragas do Egipto, contadas no Êxodo, são outra forma de castigo. A peste, Negra ou Bubónica, faz parte do mesmo rol. Muitas outras catástrofes, inundações, fomes, terramotos, vulcões e grandes incêndios marcaram, ao longo dos séculos, a história dos povos. Muitas atingem números inimagináveis de dezenas de milhões de mortos! Sem falar noutras desgraças, como a varíola, a tuberculose, o SIDA e o sarampo cuja acção fatal se prolonga por vários anos ou décadas.
Como é sabido, grandes pragas ou desastres podem transformar-se depois em pretextos para esclarecer o poder. O nosso Marquês de Pombal é um exemplo, real ou mitológico, de como é possível aproveitar um desastre para estabelecer um ditador.
Tal como os que desejam aproveitar as catástrofes, também os belicistas defensores do apuramento da humanidade repetem a ideia de que é necessária uma guerra para purificar. Porque há gente a mais. Porque há fome. Porque há declínio das sociedades com costumes degradados. Perante estes desenvolvimentos, uma nova guerra poderia fazer jeito. Reduziria as bocas e diminuiria a pressão dos estrangeiros.
A ideia central destas reflexões é a de que uma guerra purifica. Partindo do princípio de que morrem os maus e ficam os bons. Com a pandemia actual, não andamos muito longe desses devaneios. É impressionante o número de pessoas que esperam que uma catástrofe seja a oportunidade para resolver problemas. Eles não sabem o que dizem…
Público, 19.4.2020
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